Charlatão que empurra vermífugo é corresponsável pelos recordes da covid

Famílias sofrem pela perdas de parentes em Manaus (Foto: BBC)

Por Leonardo Sakamoto*

Com a ajuda de Jair Bolsonaro, remédios sem eficácia comprovada contra covid-19 têm sido empurrados para “tratamento precoce”. E médicos, que recitaram o juramento de Hipócrates, prometendo não causar mal, agem como charlatães ao prescrever produtos enganosos, ajudando a construir o caos que temos hoje.

O Brasil registrou, nesta quarta (17), uma média móvel de mais de 2 mil mortes por dia pela primeira vez – para ser exato, 2.031. Foram 2.736 óbitos apenas hoje, totalizando 285.136, segundo dados do consórcio dos veículos de imprensa.

Médicos charlatães que empurram vermífugo também são responsáveis por esse recorde e os outros que estamos quebrando dia após dia. Pois sentindo-se protegidos pela existência de um (falso) “elixir mágico” que promete resolver a pereba logo no início e que, ainda por cima, tem como garoto-propaganda o próprio presidente da República, cidadãos rompem o isolamento social, se contaminam e contaminam os outros.

Afinal, acreditam que se pegar é só tomar o remédio e correr para o abraço.

Conversei com dois médicos que estão na linha de frente, um de um hospital público do interior de São Paulo e outro de um hospital particular na capital paulista. Ambos, que pediram para não serem identificados, falaram de pacientes que chegaram ao pronto-socorro com baixa oxigenação e pulmões parcialmente comprometidos após terem se automedicado por dias.

Em comum nas histórias, o fato de que chegavam dizendo que não sabiam a razão de terem ficado tão doentes. “Fiz tudo direitinho, tomei o kit covid desde cedo”, ouviu um deles.

O conteúdo desse pacote de remédios varia de local para local, mas normalmente contém hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, zinco, vitaminas, analgésicos, entre outros.

Alguns dos pacientes desses dois médicos sobreviveram para ter a chance de reclamar com os médicos e os governos que fizeram eles acreditarem em uma mentira. Outros, infelizmente, não tiveram tanta sorte.

Pessoas estão morrendo por causa de remédios sem eficácia

O repórter Hygino Vasconcellos trouxe, nesta terça (16), no UOL, a história dos irmãos gêmeos Genilton e Jailson Rodrigues, de 47 anos, que morreram de covid-19 com uma diferença de dois dias em Ponta Grossa (PR).

Quando procuraram atendimento médico, receberam um kit covid e voltaram para casa. A situação deles piorou e tiveram que ser internados.

Mas já era tarde.

Outra reportagem do UOL, de Leonardo Martins, traz relato de médicos e enfermeiros com pacientes internados em leitos de UTI que confessaram terem tomado vermífugo (ivermectina) de forma preventiva ou diante dos primeiros sintomas. O próprio fabricante desse produto diz que não encontrou resultados que comprovassem a eficácia dele contra a doença.

“Quando vou intubar a pessoa, ela reclama: ‘doutor, eu tomei ivermectina em casa, não é possível’. Eu tento explicar que ele não tem verme, mas não ajuda em nada na covid”, afirmou um dos enfermeiros ouvidos por Martins.

A infectologista Marise Reis, membro do comitê científico do Rio Grande do Norte, afirmou, em entrevista à TV Globo, que mais de 90% dos pacientes internados nas UTIs com covid-19 no estado tomaram remédio sem eficácia comprovada para a doença.

“Não adianta as pessoas se esconderem por trás de um comprimido de ivermectina, achando que ele vai te proteger. Não vai”, afirmou.

Isso sem contar as tristes ironias que vão ficando pelo caminho. No último sábado (13), o deputado estadual mato-grossense Silvio Antônio Fávero (PSL) morreu por complicações da covid-19 após nove dias internado. Ele havia defendido na Assembleia Legislativa a distribuição do kit covid por parte do poder público.

E em fevereiro deste ano, apresentou projeto de lei “para assegurar o direito de o cidadão escolher ou não pela vacinação”.

Em um dos lances mais bizarros desde que começou a pandemia, terraplanistas biológicos do Ministério da Saúde, sob o comando de Eduardo Pazuello, pressionaram a Prefeitura de Manaus a distribuir hidroxicloroquina e ivermectina como tratamento precoce para a covid em janeiro.

Enquanto isso, manauaras com covid morriam sufocados nos hospitais por falta de fornecimento de oxigênio.

Remédios, como a ivermectina, são uma ilusão contra a covid

 

Na esmagadora maioria dos casos, nosso sistema imunológico é capaz de dar conta da doença, produzindo anticorpos e eliminando o coronavírus de forma eficaz. Ao apontar um remédio ineficaz como solução para casos leves, políticos e médicos estão, na verdade, tentando roubar o mérito por algo que o organismo já faria por conta própria.

E isso cola em uma parte da população. Afinal, o que tem mais a cara de ser responsável por vencer uma guerra contra uma doença mortal: estruturas microscópicas que cada um tem dentro de si, os glóbulos brancos, ou um produto milagroso distribuído com pompa e circunstância e que é alvo de elogios semanais do presidente em suas lives?

E nos casos em que a doença evolui para a morte? Daí é a estratégia discursiva adotada por Bolsonaro tem sido a do “eu lamento todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”, como afirmou em 2 de junho.

Sem rodeios, o médico sanitarista e fundador da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), Gonzalo Vecina, afirmou à TV Cultura: “na minha área tem muito médico burro, que ainda dá cloroquina”.

Deveríamos estar distribuindo auxílio emergencial no valor suficiente para as famílias sobreviverem com dignidade e não a miséria que o governo Bolsonaro vai começar a pagar. E fechando o que for possível no país para garantir que o vírus pare sua escalada, garantindo o máximo de proteção possível para os trabalhadores que tiverem que continuar usando transporte público, por exemplo. Distribuindo máscaras PFF2/N95, por exemplo. Há médicos guiados pela ciência que salvam vidas.

E há aqueles guiados por Bolsonaro, que as colocam em risco.

*É jornalista e doutor em ciência política pela USP.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

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