Codicismos

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Nos sistemas jurídicos filiados à tradição romano-germânica, tem vigorado o primado da lei, fonte quase que exclusiva do direito. E, mais do que isso, a partir do século XVIII, ocorre na Europa um movimento codificador, que encontrou o seu ápice no Código Napoleônico, precursor das muitas codificações modernas, granjeando o aplauso tanto de legisladores como de estudiosos do direito, da época e de hoje.

Houve até um tempo de um tipo de “codicismo”, digamos, hiperinflacionado. Nos albores da vigência do Código Napoleônico, sob o domínio da Escola da Exegese, a lei era aplicada exatamente como ela estava escrita, sem fazer “interpretações”, mesmo que fossem necessárias. Para os defensores desse tipo de “codicismo”, não havia um só caso concreto que não fosse previsto no Código. Nenhuma hermenêutica, ainda mais quando externa ao texto codificado, era minimamente permitida. Dogmatismo legal à décima potência.

Argumentos em prol da supremacia da codificação das leis são fáceis de colecionar. Anota Felix M. Calvo Vidal (em “La Jurisprudencia: fuente del Derecho?”, Editora Lex Nova, 1992) que os “critérios de segurança, de permanência, de estabilidade aparecem sempre como proeminentes. Para a doutrina, a codificação apresenta uma série de vantagens que não se dão em outros casos em que o direito não haja sido condensado em normas legais harmonizadas e organizadas”. E, citando boa doutrina, arremata: “se o Código supõe uma facilidade para o teórico, não é esta menor para o prático, que sabe com relativa facilidade onde buscar com segurança as leis com as quais vai resolver um caso determinado”.

Todavia, o sistema que prega a legislação, seja ela codificada ou não, como uma única fonte do direito, mostra-se, hoje, insuficiente, sobretudo no que diz respeito à necessária correspondência entre o que está previsto em tese na legislação e a realidade nos tribunais e juízos, seja no campo do direito material, seja no campo do direito processual.

E mais: a crise por que passa o direito brasileiro, em especial o seu Poder Judiciário (frequentemente vítima de campanhas orquestradas e injustas), atinge profundamente verdades que se têm por estabelecidas. Aproveitando uma feliz assertiva do já citado Vidal, essa nova situação política e institucional há de implicar também “uma grande flexibilidade técnico-jurídica de adaptação não somente às novas circunstâncias históricas normais, mas também às circunstâncias excepcionais e transitórias”.

Foi por isso que fiquei muito feliz quando li, no site do Senado Federal, que a futura lei para regulação do dito “processo estrutural”, segundo a Comissão ali criada para elaborar o respectivo anteprojeto (presidida pelo ex-procurador-geral da República Augusto Aras), deverá “ser concisa e adaptável para assegurar resultados concretos”. Para quem não sabe, “a expressão processo estrutural surgiu entre as décadas de 1950 e 1970 nos Estados Unidos. O termo se refere a demandas que chegam ao Poder Judiciário quando políticas públicas ou privadas são insuficientes para assegurar determinados direitos. Nesses casos, a discussão é transferida para a Justiça, que usa técnicas de cooperação e negociação para construir uma solução efetiva para o problema”. Temática importantíssima.

Meu receio era que a comissão caísse em um segundo tipo de “codicismo”, que é a mania, em voga na França até hoje, de se criar códigos, longos e detalhadíssimos, para tudo.

Mas não. O anteprojeto será curto. Terá um texto flexível, que privilegie o consenso entre as partes e não a opinião do juiz. Como afirma o relator da referida comissão de juristas, Desembargador Edilson Vitorelli, o papel do anteprojeto de lei “é não atrapalhar”, “é construir”. E, como arremata o vice-presidente da comissão, o potiguar Marcelo Navarro Ribeiro Dantas, a futura lei não pode trazer retrocessos. Há de se encontrar um texto moderado em prol da eficiência: “todos querem flexibilidade porque o processo estrutural, embora exista e funcione, trabalha na base da tentativa e do erro. Se você amarrar muito as coisas, não pode fazer experimentações. Mas essa flexibilidade não pode prejudicar o fluxo do processo estrutural porque há também um compromisso de que a coisa termine”.

Pois, então, abaixo os codicismos! E viva a moderação!

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

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