Gilmar toma lá, Maia dá cá

Por Conrado Hübner Mendes*

Reformar o STF é dos temas urgentes no projeto de recuperação da democracia brasileira, quando essa hora chegar. O exercício deveria enfrentar problemas estruturais do tribunal: a arbitrariedade e o tamanho da pauta, o voluntarismo individualista, o ilusionismo que sonega explicação sobre o que decide e não decide, a ausência de prestação de contas etc.

Parte da ingovernabilidade do STF, afinal, é da arte e engenho de seus próprios ministros. Não foi um “vírus chinês”, um hacker no Planalto ou Sara Winter e seus 300 amigos. Nem a klan presidencial pedindo seu fechamento por intervenção militar.

Reformar o STF significa, antes de qualquer coisa, proteger a instituição da intrincada teia de interesses antirrepublicanos que orbitam a relação entre comunidade jurídica e ministros. A disfuncionalidade do tribunal costuma ser funcional aos atores que dispõem de portas privilegiadas no edifício. Quem é compensado política e financeiramente por esse labirinto de Babel não será aliado de reforma que valha a pena.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, conversa com o ministro Gilmar Mendes, do STF, durante solenidade em Brasília
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, conversa com o ministro Gilmar Mendes, do STF, durante solenidade em Brasília – Pedro Ladeira – 5.out.17/Folhapress

Rodrigo Maia instalou dias atrás comissão para elaborar anteprojeto de lei que consolide regras do processo constitucional. A comissão é exemplo magnífico da confraria jurídica brasileira. Seu presidente é ele, sim, o indefectível Gilmar Mendes.

Dos 24 membros indicados, há 19 homens brancos e 5 mulheres brancas (80% a 20%). Há 11 de Brasília, 7 de São Paulo, 3 de Porto Alegre, 2 de Curitiba e 1 do Rio de Janeiro. Todos juristas. Cientistas sociais que mapeiam a realidade empírica desse mastodonte judicial ficaram de fora. A sociedade civil também.

Tamanha representatividade e pluralidade vieram acompanhadas por uma gota de promiscuidade. O secretário da comissão é advogado pessoal de Gilmar. Gilmar também é empresário da educação, mesmo que a Constituição lhe proíba. De sua escola de direito, a comissão tem quatro funcionários. Um deles é seu ex-sócio.

Foi isso que 15 minutos de pesquisa amadora permitiram notar. Repórter experiente nos corredores de Brasília poderá ver outras coisas que a vista do Google não alcança. Sabemos que a fraternidade jurídica não pratica os valores que professa (nem declara os valores que pratica). Quem vasculha, acha.

Ninguém perguntou, mas vale insistir: por que ministro do STF deve presidir elaboração de lei que disciplina o próprio STF? Mesmo que seja um ás no assunto e tenha a virtude da autocrítica e clarividência, seu tribunal pode vir a julgar a lei. Confusão elementar de papéis que a manutenção do Estado de Direito não recomenda.

Supondo que essa tradição seja inofensiva, por que chamar justo um dos grandes artífices das patologias do STF? A contribuição de Gilmar à desinstitucionalização do STF foi radical e holística: começou pela quebra de padrões de ética e decoro judicial, passou pelo desrespeito corriqueiro a seus pares e terminou na revogação disfarçada de regras legais e regimentais.

Deve ser só coincidência, mas Rodrigo Maia se beneficiará nos próximos dias de mais uma decisão abusiva do Supremo, sob relatoria de Gilmar. Já descrevi o caso em coluna anterior. Vem mais contorcionismo verbal e desfaçatez por aí. A Constituição proíbe recondução de membros das mesas do Congresso para mandato subsequente (artigo 57, parágrafo 4º). Proíbe a reeleição de Maia e Alcolumbre.

Ministros concluirão que a Constituição não diz o que diz. Tentarão nos convencer que, num escaninho do texto a que eles têm acesso exclusivo, a Constituição quis expressar o contrário. É fraude, não argumento.

Tratados de hermenêutica jurídica falam em diferentes métodos de interpretação das regras legais: pela literalidade dos termos, pela história subjacente, por seu propósito, pela forma como se integram no conjunto.

Também propõem métodos adicionais para as especificidades da Constituição: buscar coerência com precedentes; dialogar com a filosofia moral e política debaixo de direitos como liberdade e dignidade; balancear direitos em colisão; estimar consequências sociais e econômicas e calibrar a decisão para minimizar eventuais danos.

​Nenhum método jamais permitiu que a norma “é proibido” possa significar “está liberado”. O vale-tudo é a cara do STF, não do Estado de Direito. Quando o Congresso virar Alerj, com a ajuda do STF, o STF vai virar o quê? Um TJ-SP?

*É professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.

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