Por Marcelo Alves Dias de Souza*
Se a memória não me falha, já é o quinto verão seguido que passo na companhia do australiano Morris West (1916-1999), um dos meus romancistas favoritos. Invariavelmente bestseller, West sempre combinou entretenimento com boa literatura, no conteúdo e na forma. E, se de fato sei o que fiz nos verões passados, acho que já escrevi aqui sobre “As sandálias do pescador” (“The Shoes of the Fisherman”, 1963), “Os fantoches de Deus” (“The Clowns of God”, 1981) e “A eminência” (“Eminence”, 1998), livros que, bem ao estilo do autor, ex-seminarista que manteve a sua fé católica, premonitoriamente mistura as coisas da Igreja, sua mística e sua política, com as ideologias e a política internacional.
Desta feita, ao avaliar minhas opções na biblioteca de casa, foi por um singelo insight – que explico logo a seguir –, que decidi trazer para a praia “O advogado do Diabo” (“The Devil’s Advocate”, 1959), para muitos a magnum opus do autor, numa antiga edição de bolso da Editora Rio Gráfica (de 1986), muito leve, já surrada, perfeita para adormecer com a gente, sem maiores consequências, na preguiça de uma rede.
E é da contracapa dessa minha sofrida edição que podemos, sem fazer spoiler, dar uma ideia da trama em que se mete o “Advogado” de West: “O sacerdote inglês Blaise Meredith recebe do Vaticano uma das maiores missões da sua vida: investigar a fundo a história de Giacomo Nerone, legendário eremita venerado pela população de um miserável lugarejo da Calábria. Na busca de elementos que impeçam a canonização de Nerone, o padre depara com as estranhas personagens: a amante e o filho do eremita, um médico ateu, um pintor homossexual, uma condessa rica e entediada. Todos fazem parte de um passado que não desejam revelar – cabe a Meredith desvendar o mistério que cerca o silêncio daquela gente”. Uma trama, aliás, que transversalmente perpassa a ciência jurídica, suas ramificações e suas inusitadas personagens. Afinal, para a beatificação de um Servo de Deus, como aponta West, seria necessária a designação de dois cultos sacerdotes como verdadeiros “profissionais do direito”, “um, como Postulador da Causa, para iniciar a investigação e levá-la avante e, o outro, como Promotor da Fé, ou Advogado do Diabo, para submeter as provas e as testemunhas a severo escrutínio, segundo as cláusulas pertinentes do direito canônico”.
Mas não foi a excelência de “O advogado do Diabo”, nem muito menos suas passagens jurídicas, que me fez escolhê-lo como releitura de verão. Afinal, tinha várias outras boas opções na estante e fiquei sobretudo na dúvida em trazer “As sandálias do pescador”, já que, também pelo que me lembro, havia escrito mais sobre o filme homônimo de 1968, direção de Michael Anderson (1920-2018), do que sobre o livro propriamente dito. O que me fez optar por “O advogado do Diabo” foi uma lembrança instantânea, quando da seleção do livro, que chamei acima de insight, do nosso Servo de Deus Padre João Maria (1848-1905). Com uma vida consagrada em prol dos mais necessitados – escravos, retirantes da seca, vítimas da varíola, doença que acabou contraindo e dela falecendo –, o “Anjo de Natal” está, faz já alguns anos, com as devidas intervenções do Postulador da Causa e do Advogado do Diabo, em processo de beatificação, com inúmeras graças a ele atribuídas sendo canonicamente registradas. E li ainda dia desses – pelo menos é a minha lembrança – que a Arquidiocese de Natal teria finalizado a fase local/diocesana do procedimento, sendo então a causa enviada ao Vaticano para análise e definição. Numa terra de tantos pecadores, roguemos que tenhamos pelo menos um santo.
De toda sorte, depois de tantas lembranças, ao começar a releitura de “O advogado do Diabo”, constatei algo deveras curioso: lido há muitos anos, já não me lembrava de mais nada do “Advogado” de West. É verdade que alguns “esquecimentos” têm sido comuns depois que passei dos 50 anos. Depois dessa idade, dizem, tudo que entra na nossa cabeça implica a saída ou esquecimento de outra. Tenho às vezes me queixado disso. Mas, desta vez, tomei o esquecimento como uma verdadeira dádiva (dizer milagre do Padre João Maria seria talvez um exagero). Pois agora vivo o romance tão maravilhado como se fosse uma primeira vez.
*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.
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