Liberdade de expressão não é salvo-conduto para a reprodução do racismo: o caso da condenação de Léo Lins

Foto: divulgação

Por Fernando Rocha*

Se o humor autorizasse, em nome da liberdade de expressão, o escárnio contra pessoas negras, homossexuais e com necessidades especiais, então todos estariam legitimados a reproduzir essa mesma semântica em igrejas, teatros, músicas e artes plásticas. Essa normalização da intolerância, sob o disfarce do riso, levaria à completa corrosão do pacto civilizatório que sustenta uma sociedade democrática.

O caso da condenação do comediante Léo Lins a oito anos de reclusão pelo crime de racismo recoloca no debate público uma questão essencial: até onde vai a liberdade de expressão?

A Constituição Federal e os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário garantem a liberdade de expressão como um direito fundamental. Contudo, como todo direito, esse também encontra limites jurídicos e morais, sobretudo quando entra em colisão com outros bens igualmente protegidos — como a dignidade da pessoa humana e o combate à discriminação racial.

Léo Lins, em seu show humorístico amplamente divulgado nas redes sociais, afirmou, entre outras falas

“Sou gordo, adoro comer e não gosto de fazer exercício. Como vou emagrecer? Pegando AIDS! (…) Sai comendo gay sem camisinha, uma hora dá certo!”

“O rico tenta ter filho e não consegue. Vai pra África buscar um. Lá tem plantação. Lá você escolhe no pé! Esse tá bem escurinho, vai dar like no insta!”

“Tem gente que fala: ‘O negro não consegue arrumar emprego!’. Mas na época da escravidão já nascia empregado e também achava ruim!”

“Aliás, se o Dia da Consciência Negra é feriado pelos negros, Quarta-Feira de Cinzas devia ser judeu!”

Essas “piadas” não apenas reproduzem estereótipos ofensivos — equiparando negros a produtos agrícolas, escarnecendo da escravidão, desumanizando vítimas da AIDS e zombando da memória do Holocausto — como incitam, induzem e promovem o preconceito racial, exatamente como previsto no artigo 20 da Lei 7.716/89:

“Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”

A própria lei agrava a pena quando o crime é cometido no contexto de atividades culturais, artísticas ou destinadas ao público — exatamente o caso em questão. O fundamento é claro: a arte alcança, influencia e forma mentalidades. Por isso, deve também se submeter a responsabilidades.

E o impacto dessas piadas não se limita à moral pública. Pesquisas da psicologia social, como as conduzidas por Ford e Ferguson, mostram que o humor preconceituoso tem efeitos reais e mensuráveis. Em testes controlados, participantes expostos a piadas machistas tornaram-se mais tolerantes ao machismo no ambiente de trabalho e tomaram decisões concretas que prejudicaram mulheres. O simples riso reforça vieses inconscientes e molda o comportamento.

A psicóloga Giovana Abreu destaca que “mesmo que pela piada, quanto mais eu reforço estereótipos sobre grupos minorizados, mais o meu cérebro vai inconscientemente ativar o preconceito na hora de tomar uma decisão”. O riso, portanto, não é neutro. Ele pode ser um vetor de exclusão.

Além disso, estudos de neurociência, como os conduzidos por Susan Fiske, revelam que a exposição repetida a representações desumanizantes de grupos vulneráveis — como pessoas em situação de rua, com deficiência ou dependência química — ativa, no cérebro, regiões ligadas ao nojo e à repulsa, e não à empatia. Isso é desumanização medida por imagem cerebral. O humor preconceituoso não apenas reflete o preconceito — ele o intensifica.

Karl Popper, em sua obra A sociedade aberta e seus inimigos, alertava para o paradoxo da tolerância: se tolerarmos ilimitadamente a intolerância, acabamos por destruir a própria tolerância. O direito penal, nesse contexto, cumpre função civilizatória, impedindo que o discurso de ódio volte a se naturalizar como prática cotidiana, como já ocorreu em contextos históricos brutais — da escravidão ao nazismo.

A defesa da liberdade de expressão não pode ser confundida com o aval para a degradação pública de grupos vulneráveis. O humor tem função social, sim. Mas também tem responsabilidade. Permitir que o racismo se esconda sob o riso é permitir que ele se enraíze novamente em nosso tecido social, com consequências concretas para milhões de brasileiros que diariamente enfrentam discriminação em escolas, repartições públicas, hospitais e no mercado de trabalho.

Portanto, a condenação de Léo Lins não é uma censura à arte, mas uma afirmação clara e necessária dos limites éticos e jurídicos da liberdade de expressão. A Justiça não puniu o riso. Puniu o racismo — e fez bem. Afinal, não há sociedade verdadeiramente democrática onde o ódio se apresenta de paletó e microfone, e sai impune apenas porque fez alguém rir.

*É promotor federal.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.