O chamado caso das joias

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Por Rogério Tadeu Romano*

 

Segundo o G1 Política, em 5.7.24, a Polícia Federal concluiu a investigação e atribuiu ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) crimes que, somados, têm penas que podem alcançar 25 anos de prisão. De acordo com a PF, Bolsonaro cometeu crimes de lavagem de dinheiro, associação criminosa e peculato, que consiste na subtração ou desvio, por funcionário público, de dinheiro, valor ou qualquer outro bem de que tem a posse em razão do cargo.

A Polícia Federal, em inquérito enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF), disse que o dinheiro das joias sauditas, vendidas ilegalmente por auxiliares de Jair Bolsonaro, entrou para o patrimônio do ex-presidente e que ele tinha conhecimento de leilão para vender os itens.

A matéria passou por vários atos normativos, como bem demonstrou o portal de notícias do Estadão, em reportagem, em 10.7.24.

Sancionada pelo então presidente Fernando Collor e o ministro da Justiça, Jarbas Passarinho, a primeira legislação sobre o tema foi publicada em dezembro de 1991. A Lei Brasileira dos Acervos Presidenciais dispõe sobre a preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República. Nela foi criada a Secretaria de Documentação Histórica da Presidência da República.

Decreto publicado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) regulamentou o recebimento de presentes pelos chefes do Executivo federal e estabeleceu o que deve ir, ou não, para o acervo privado dos presidentes. De acordo com a regra, “documentos bibliográficos e museológicos recebidos em cerimônias de troca de presentes”, como viagens de Estado ou visitas oficiais, pertencem à União. A principal mudança de 1991 para 2002 foi a definição mais clara sobre a natureza pública dos presentes recebidos durante o mandato presidencial, diferentemente da lei anterior que não especificava isso detalhadamente.

Em novembro de 2018, portaria publicada pela Secretaria-Geral da Presidência da República durante o mandato de Michel Temer define o que são itens de natureza personalíssima ou de consumo direto. Segundo o texto, são bens que se destinam ao uso próprio do recebedor, a exemplo de condecorações, vestuários, roupas de cama, artigos de escritório, joias, semijoias e bijuterias.

A Secretaria-Geral da Presidência da República revogou, em novembro de 2021, a portaria publicada na gestão Temer que definia joias, semijoias e bijuterias como itens de caráter personalíssimo. O novo texto não dispõe um rol do que seria essa categoria.

Finalmente, Plenário do TCU determinou cautelarmente que Bolsonaro entregue joias sauditas e as armas presenteadas pelos Emirados Árabes Unidos. O presidente do Tribunal, ministro Bruno Dantas, afirmou que “de acordo com a jurisprudência desta Corte de Contas desde 2016, para que um presente possa ser incorporado ao patrimônio pessoal da autoridade é necessário atender a um binômio: uso personalíssimo, como uma camisa de futebol, e um baixo valor monetário”.

O TCU notificou a Secretaria-Geral da Presidência da República sobre a necessidade de ex-ministros de Bolsonaro devolverem relógios de luxo recebidos durante uma viagem oficial a Doha, no Catar, em 2019. Relator do processo, o ministro Antonio Anastasia afirmou que o recebimento de presentes caros extrapola os “princípios da razoabilidade e da moralidade pública”, previstos na Constituição.

O ex-presidente da República foi indiciado, dentre outros delitos penais, pelo crime de peculato, como já afirmado, pela Polícia Federal. Teria havido um peculato-apropriação.

Foi dito que os valores foram incorporados ao patrimônio de Bolsonaro em dinheiro vivo, o que pode configurar o crime de lavagem de dinheiro. Os presentes desviados foram avaliados em pelo menos R$ 6,8 milhões, como foi dito.

Estar-se-ia, para tais conclusões, diante de uma norma penal em branco, salvo melhor juízo.

Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fábio M. de Almeida Delmanto (Código Penal Comentado, 6ª edição, pág. 9) ensinam que normas penais em branco “são assim chamadas as leis que não possuem definição integral, necessitando ser complementadas por outras leis (decretos ou portarias). Costumam ser divididas em: a) Homogêneas (ou normas em branco em sentido lato), quando são complementadas por normas originárias da mesma fonte ou órgão; b) Heterogêneas (ou normas em branco em sentido estrito), quando seu complemento provém de fonte ou órgão diverso.”

A regra ou ato integrativo de norma penal em branco, para ser eficaz, há de ser anterior à ação criminosa (SRF, RTJ 120/1095).

Na lição de Guilherme de Souza Nucci (Código penal comentado, 8ª edição, pág. 76), “as normas penais em branco apenas conferem ao órgão legislador extrapenal a possibilidade de precisar o seu conteúdo, fazendo-0, por inúmeras vezes, com maior rigor e mais detalhes do que os denominados tipos abertos, que dependem da imprecisa e subjetiva interpretação do juiz”.

Disse Paulo José da Costa (Comentários ao Código Penal, volume I, 2ª edição, pág. 9) que “não são as normas em branco incompletas ou imperfeitas. Faltam-lhes apenas, como ensina Leone, concreação e atualidade. Não se trata pois de uma sanção cominada à inobservância de um preceito futuro, mas de um preceito genérico, que irá concretizar-se com um elemento futuro, que deverá, entretanto, proceder o fato que constitui crime”.

Por outro lado, Julio Fabbrini Mirabete (Manual de Direito Penal, volume I, 7ª edição, pág. 50) ensinou:

“Referem-se os doutrinadores às chamadas normas penais em branco (ou leis penais em branco). Enquanto a maioria das normas penais incriminadoras é composta de normas completas, possuem preceito e sanções integras de modo que sejam aplicados sem a complementação de outras, existem algumas com preceitos indeterminados ou genéricos, que devem ser preenchidos ou completados. As normas penais em branco são, portanto, as de conteúdo incompleto, vagos, exigindo complementação por outra norma jurídica (lei, decreto, regulamento, portaria, etc) para que possam ser aplicadas ao fato concreto. Esse complemento pode já existir quando da vigência da lei penal em branco ou ser posterior a ela.”

Ainda no ensinamento de Mirabete (obra citada) as leis penais em branco em sentido estrito, não afetam o princípio da reserva legal, sempre haverá uma lei anterior, embora complementada por regra jurídica de outra espécie.

O caso narra crime funcional cometido por funcionário público.

Os chamados crimes funcionais cometidos por funcionário público, dividem-se: a) em próprios; b) impróprios.

Nos crimes funcionais próprios, a qualidade do funcionário público é elementar do tipo. Ausente a qualidade de servidor público a conduta é atípica: concussão, corrupção passiva, prevaricação.

Nos chamados crimes funcionais impróprios, observa-se que o fato seria igualmente criminoso mesmo se fosse cometido por particular. É o caso do peculato, que se for cometido por particular, e não por aquele, é crime de apropriação indébita, sendo crime contra o patrimônio.

Nas Ordenações Filipinas, no livro V, Título 74, tratava-se do crime dos oficiais del Rei que furtam, ou deixam perder sua fazenda por malícia, impondo-se a pena que era cominada aos ladrões.

O Código de 1830 (artigo 170) previa o peculato entre os crimes contra o tesouro público e a propriedade pública, punindo-o com perda do cargo público, prisão com trabalho por 2 (dois) meses a 4 (quatro) anos e multa de 5 (cinco) a 20 (vinte) por cento da quantia ou valor dos efeitos apropriados, consumidos ou extraviados.

O primeiro Código Penal republicano o incluía entre os crimes contra a boa ordem e a administração pública.

A Consolidação das Leis Penais tratou do crime de peculato.

Em direito comparado, tem-se, na Itália, o crime de apropriação indébita funcional e ainda, na Suíça, no Código Penal, artigo 140, alínea 2, tem-se a apropriação indébita qualificada.

Na Itália, chama-se o crime pela palavra malversação, como se vê a partir do Código Zanardelli (1889).

Comete o crime de peculato, previsto no artigo 312 do Código Penal, o agente público que se apropria de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou os desvia, em proveito próprio ou alheio.

O agente deverá ter a posse que lhe foi confiada em razão do cargo, ou seja, em virtude de sua competência funcional.

O peculato diz respeito a coisas fungíveis ou infungíveis. Envolve o que o Código Toscano, no artigo 56, chamava de quebra de caixa, que se configurava quando o funcionário deixava de apresentar os dinheiros devidos na época da respectiva prestação de contas.

Pratica o peculato o servidor que se apropria de bem público.

Pressuposto do crime é o fato de que o agente tenha a posse legítima de coisa móvel (dinheiro, valor ou qualquer outro bem). Não é a posse civil bastando a detenção.

Se o sujeito ativo não tiver a posse estamos diante de peculato-furto, previsto no artigo 312, § 1º, do Código Penal.

A posse da coisa, poder de disposição, deve resultar do cargo, sendo indispensável uma relação de causa e efeito entre o cargo e a posse.

A conduta deve recair sobre os objetos móveis enumerados pela lei penal. Se não for assim estar-se-ia perante uma conduta atípica.

São condutas típicas para efeito do crime de peculato: apropriação ou desvio, podendo o tipo configurar-se mediante o dolo específico, principalmente com relação ao peculato-desvio.

Apropriar-se significa assenhorear-se da coisa móvel, passando dela a dispor como se fosse sua.

Desviar é dar à coisa destinação diversa daquela em razão de que lhe foi entregue ou confiada ao agente.

Data máxima vênia de entendimento contrário não se trata de hipótese de erro de proibição a aplicar-se, para o caso, na conduta do ex-presidente.

O erro é a falsa percepção da realidade, que pode recair tanto sobre elementos constitutivos do tipo como da ilicitude do comportamento.

Ilicitude de um fato é a correlação de contrariedade que se estabelece entre esse fato e a lei, norma escrita elaborada pelo Parlamento, órgão legislativo no Brasil.

O certo é que, a teor do artigo 21 do Código Penal, é inescusável o desconhecimento do injusto. Assim são erros inescusáveis:

  1. a) Erros de eficácia, que são os que versam sobre a não aceitação da legitimidade de um determinado preceito legal, na suposição de que contraria outro preceito;
  2. b) Erros de vigência: quando o autor ignora a existência de um preceito legal, ou ainda não teve tempo de conhecer uma lei;
  3. c) Erros de subsunção: quando o erro faz com que o agente se equivoque sobre o enquadramento legal da conduta;
  4. d) Erros de punibilidade: quando o agente sabe ou podia saber que faz algo proibido, mas imagina que não há punição para essa conduta.

A falta de consciência de ilicitude não pode ser confundida com ignorância da lei.

Bem lembrou Luciano Schiappassa (Qual a diferença entre o erro de permissão e o erro do tipo permissivo, in Ius Brasil, publicado por Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes):

“Para a doutrina, o erro de tipo permissivo está previsto no artigo 20 , § 1º do CP , segundo o qual “é isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima . Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo”.

A análise do tema exige certa compreensão acerca das teorias da culpabilidade. Para a teoria limitada da culpabilidade, se o erro do agente incidir sobre uma situação fática que, se existisse, tornaria a conduta legítima, fala-se em erro de tipo (erro de tipo permissivo); mas, se o erro recair sobre a existência ou, os limites de uma causa de justificação, o erro é de proibição (erro de proibição indireto/ erro de permissão). Em contrapartida, a teoria extremada da culpabilidade não faz qualquer distinção, entendendo que, tanto o erro sobre a situação fática, como aquele em relação à existência ou limites da causa de justificação devem ser considerados erros de proibição, já que o indivíduo supõe lícito o que não é.

A partir disso é mister fazer a dicotomia erro do tipo e erro de proibição.

Abordou-se que o erro pode recair sobre um elemento constitutivo de um fato típico como ainda sobre a ilicitude de um comportamento.

Quando o erro incide sobre um elemento constitutivo do tipo legal ele é um erro do tipo. Se ele incide sobre a ilicitude da ação há o que se chama de erro de proibição.

Afasta-se a dicotomia do erro sobre o fático e o jurídico, mudando-se o foco para a solução do problema.

É mister citar a lição de Francisco de Assis Toledo (Princípios básicos de direito penal, 4ª edição, pág. 267) coloca-se a distinção entre tipo e antijuridicidade (ou ilicitude). O erro ou recai sobre elementos ou circunstâncias integrantes do tipo legal do crime (fático ou jurídico normativos, ora recai sobre a ilicitude da ação. Assim, no primeiro caso, tem-se erro sobre elementos ou circunstâncias do tipo, o erro do tipo. Na segunda hipótese, tem-se erro sobre a ilicitude do fato real, o erro de proibição.

É correto fazer a distinção entre tipo e ilicitude com a correspondente distinção entre erro do tipo (artigo 20 do CP) e erro de proibição.

Por sua vez, o erro de proibição, na redação que foi dada ao artigo 21, caput, e parágrafo único, do Código Penal, pela Lei 7.209/84, Parte Geral, assim está previsto: ¨O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena: se evitável, poderá diminui-la de um sexto a um terço. Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.

Correto o entendimento de que no erro de proibição há três elementos fundamentais: a lei, o fato e a ilicitude. A lei como proibição, o ente abstrato; o fato como ação, entidade material; a ilicitude como relação de contrariedade entre o fato e a norma.

O erro de proibição exclui a culpabilidade.

Correto o entendimento dos que entendem que ou seria reconhecida uma exculpação por fato de consciência ou ainda por reconhecimento da figura do autor por convicção.

Assim a falta de consciência da ilicitude do fato irá excluir a culpabilidade. Porém, quem agir sem a consciência da ilicitude, quando podia e devia ter essa consciência, age com culpa. Para o fato, tudo indica, pelo informado no relatório da Polícia Federal, havia consciência da ilicitude do fato.

Para que um presente possa ser incorporado ao patrimônio pessoal da autoridade é necessário atender a um binômio: uso personalíssimo, como uma camisa de futebol, e um baixo valor monetário, o que não é o caso narrado.

Teriam sido afrontados diante da conduta historiada os princípios da moralidade e da razoabilidade, o que destaca a ação delituosa e o seu injusto.

Não se está diante de um erro do agente que incidiria sobre uma situação fática que, se existisse, tornaria a conduta legítima.

*É procurador da República aposentado com atuação no RN.

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