Por Audren Azolin*
Basta andar pelas vias das grandes cidades brasileiras para constatar o significativo aumento de pessoas em situação de rua, popularmente chamados de moradores de rua. Especialistas alegam que crises econômicas profundas que se prolongam no tempo é um fator que explica o aumento dessa população. E a tendência no Brasil é de aumentar ainda mais, uma vez que temos 12 milhões de desempregados e 54,8 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza — isto é, um quarto da população brasileira.
As políticas públicas destinadas às pessoas em situação de rua são frágeis. O Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE) não conta com pesquisas periódicas que classifiquem e contabilizem essa população. Os dados referentes, além de não serem levantados constantemente, carecem de padronização metodológica. Na verdade, há enormes problemas quanto ao diagnóstico. Assim, qualquer política pública nesse quesito opera às cegas.
Mesmos com falhas graves de diagnóstico relativos às pessoas em situação de rua, na Câmara dos Deputados foram apresentadas na 55ª Legislatura (2015-2018) 23 proposições legislativas que se referem à temática. É a partir dessa produção legislativa que identificamos os problemas que afligem a pessoa em situação de rua, na perspectiva do legislador. Em outras palavras, o que o Legislativo entende como grandes problemas para essa população.
A metodologia que utilizamos consistiu em analisar qualitativamente cada proposição legislativa referente a essa população, buscando identificar os problemas que a proposição visava resolver. Na ótica do legislador, considerando toda a 55ª Legislatura, o maior problema referente à pessoa em situação de rua foi o relacionado à assistência social (39,13%). O segundo maior problema foi saúde pública (21,74%). E em terceiro lugar ficou a segurança pública (17,39%).
Os problemas relacionados a gestão (4,35%), cultura (4,35%), educação (4,35%) e habitação (4,35%) ficaram na última colocação. O que chama atenção é que a expressão pessoa em situação de rua refere-se às pessoas que não têm moradia e mesmo assim ‘habitação’ não foi entendida enquanto um dos maiores problemas. Contudo, temos que considerar a possibilidade de que não ter onde morar seja efeito (e não causa) de outros fatores, como emprego e falta de empregabilidade, que não figuraram enquanto problemas nas proposições legislativas analisadas.
Outra análise que realizamos considerou as proposições legislativas por problema por ano da 55ª Legislatura. As proposições legislativas que figuraram enquanto discussão de assistência social concentraram-se nos anos de 2016 e 2017, cada ano com 33,33%, totalizando 66,66%. Enquanto problema de saúde pública, o ano de 2015 concentrou 80% das proposições. Por sua vez, o desafio enquanto segurança pública concentrou-se no ano de 2016, na ordem de 50%. Já habitação enquanto problema para pessoa em situação de rua figurou apenas em uma proposição legislativa no ano de 2015.
Todas as proposições legislativas protocoladas na 55ª Legislatura que trataram de questões afetam à pessoa em situação de rua foram arquivadas por decurso de prazo, conforme reza o artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Todas as proposições legislativas em tramitação são arquivadas quando finda a legislatura.
Daquelas proposições referentes à pessoa em situação de rua protocoladas na Legislatura anterior, 82,61% foram desarquivadas neste ano (2019) e estão ainda em tramitação (verificadas no dia 16 de novembro de 2019). Assim, das 23 proposições legislativas protocoladas na Legislatura anterior, 19 foram desarquivadas. Destas, 7 ainda estão aguardando parecer dos relatores, isto é, 36,84%.
Em suma, nenhuma das proposições legislativas protocoladas na 55ª Legislatura que se relacionam à pessoa em situação de rua foi transformada em norma jurídica (lei).
A política pública relativa ao tema não encontra dificuldades apenas quanto ao diagnóstico, mas também quanto à formulação. Vejamos o exemplo do Projeto de Lei 2663/2015 que propôs a permissão para que concessionárias de energia elétrica, água, telefone e TV por assinatura, criem um campo nas faturas de cobranças para que os usuários preenchessem o valor de doações voluntárias.
Os beneficiários das doações seriam asilos, creches, orfanatos, bem como entidades beneficentes de assistência social e de filantropia. É difícil aceitar que o relator desse Projeto de Lei na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público tenha dado parecer contrário. No entanto, o parecer apresentou um argumento bastante eloquente: a impossibilidade de fiscalizar se realmente as doações chegariam ao seu destino.
Analisando a tramitação do Projeto de Lei 2663/2015 podemos perceber duas questões importantes. A primeira é que nem sempre uma lei bem-intencionada será eficaz. Neste sentido, o argumento no parecer para rejeitar o Projeto de Lei é bastante convincente. A segunda questão foi a falta de emendas ao Projeto de Lei para melhorar a redação inicial, visando sanar a deficiência apresentada no parecer. O Projeto de Lei 2663/2015 não recebeu nenhuma emenda e se encontra, até o momento, arquivado por decurso de prazo.
Abaixo a tabela sumarizando o ranking de problemas na perspectiva do Legislador.
Assim, para o legislador, tendo como exemplo o Projeto de Lei 2663/2015, proposições legislativas são inviabilizadas enquanto políticas públicas por motivos de implementação, fiscalização e avaliação. E para ele essas inviabilidades alcançam também a pessoa em situação de rua, agravada pela falta de diagnósticos precisos e metodologias padronizadas.
Inviabilidades de outras naturezas assolam as políticas públicas relativas à pessoa em situação de rua, em particular, e às demais políticas públicas: inviabilidade jurídica, política, técnica, orçamentária e de gestão.
*É professora do curso de Bacharelado em Ciência Política do Centro Universitário Internacional Uninter.