Por Wagner Gutierrez Barreira
Aventuras na História
O vapor Alagoas, que levava a família imperial para o exílio em novembro de 1889, afastava-se do continente sul-americano para o mar aberto, ao largo da costa da Ilha de Fernando de Noronha. Emocionados, dom Pedro e seus parentes resolveram enviar uma última mensagem à pátria.
Apanharam um pombo a bordo e discutiram o conteúdo de seu derradeiro recado em território brasileiro. Escolheram uma única palavra – saudade – e soltaram o bicho, que deveria voar em direção ao país com a homenagem singela.
Mas o pombo não tinha vocação para correio. Suas asas haviam sido aparadas. O resultado: a “saudade” foi ao fundo do oceano com seu portador, a poucos metros do navio.
Talvez a cena da última tentativa de comunicação entre a família imperial e o povo brasileiro funcione como metáfora do que foram os anos da monarquia. As intenções sempre eram as melhores. As atitudes, por vezes desastrosas.
O órfão da nação
O menino tinha apenas 5 anos quando foi arrancado da cama e levado da Quinta da Boa Vista para o Paço Imperial do Rio de Janeiro. Assustado, chorava sem parar, encolhido no banco de trás da carruagem. No caminho, o veículo foi parado por populares, que tiraram os cavalos e se encarregaram de levar eles mesmos a carga preciosa ao seu destino. Havia cheiro de pólvora, vindo de tiros de artilharia.
Uma multidão tomava as ruas. O pequeno Pedro, tornado imperador do Brasil naquela noite de 7 de abril de 1831, ocuparia o lugar do pai, que acabara de abdicar. Sua mãe, Maria Leopoldina, havia morrido quando ele era um bebê. Enquanto o garoto era levado ao paço, Pedro I já estava a bordo da fragata inglesa Warspite. Pai e filho nunca mais se viram outra vez.
Por quase meio século, o chamado “órfão da nação” ocuparia o papel de fiador do império. O golpe que lhe garantiu a maioridade aos 14 anos transformou Pedro de Alcântara no condutor do Segundo Reinado. Enquanto os vizinhos latino-americanos se fragmentavam em pequenas repúblicas, comandadas por caudilhos, o Brasil, grande e unido, era visto pelo resto do mundo como uma ilha de civilização em meio à barbárie.
Pedro foi criado por tutores (o primeiro deles foi o Patriarca da Independência, José Bonifácio) e por funcionários do palácio. Sua formação foi uma só: seus professores trataram de lhe ensinar como ser magnânimo, justo, educado, comprometido e fiel ao Brasil.
Pedro cumpriu à risca o que lhe foi ensinado. Quando morreu no exílio, aos 66 anos, em 1891, seu obituário no jornal The New York Times afirmou que ele “foi o mais ilustrado monarca do século”.
Dom Pedro II foi um escravo de seu país desde a abdicação de seu pai. Seus passos eram vigiados, suas atividades se transformavam em relatórios analisados no Parlamento. O Marquês de Itanhaém, o tutor que sucedeu Bonifácio, preparou um regulamento para o garoto que incluía acordar diariamente às 7 da manhã. A partir daí, cada hora tinha uma atividade específica e até as conversas seguiam um tema definido.
A rubrica “diversão” durava duas horas diárias. O dia acabava às 21h30 e o sono era precedido de mais leituras. O objetivo do tutor, como relata José Murilo de Carvalho, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, era criar um paladino.
“Itanhaém queria formar um monarca humano, sábio, justo, honesto, constitucional, pacifista, tolerante”, afirma Carvalho na biografia D. Pedro II. “Isto é, um governante perfeito, dedicado integralmente a suas obrigações, acima das paixões políticas e dos interesses privados.”
A vida pessoal de Pedro, como se vê, não pertencia a Pedro. Visitas de parlamentares para checar in loco a educação do príncipe eram comuns. O Parlamento recebia relatórios sobre os avanços do futuro monarca. O de 1837, por exemplo, dava conta que Pedro falava e escrevia em francês e era capaz de traduzir do inglês.
Mas, como registra José Murilo de Carvalho em seu livro, o deputado Rafael de Carvalho criticava a falta de exercícios e divertimento. “Segundo os observadores, era um menino tímido, ensimesmado e, seguramente, muito carente de afeto”, definiu o historiador.
Imperador na puberdade, dom Pedro logo encontrou uma palavra que o acompanharia ao longo de toda a vida para descrever as cerimônias, rapapés e atividades inerentes ao mandato: “maçada”.
Fez uso dela ao comemorar seu primeiro aniversário na condição de imperador, quando anotou em seu diário, depois de um dia que começou às 7 da manhã e incluiu missa, te-deum, beija-mão e teatro: “Agora, façam-me o favor de me deixarem dormir. Estou muito cansado, não é pequena a maçada”. Diversos diplomatas, ao longo de seu reinado, observaram o tédio que brotava do imperador brasileiro. Sobravam palavras como triste, infeliz e enfadado para descrevê-lo. Para Carvalho, porém, tratava-se de uma máscara. “O laconismo e o aparente enfado eram, sem dúvida, recursos de que o rapaz fazia uso para acobertar a enorme insegurança.”
Talvez o golpe mais duro na vida do jovem imperador tenha sido seu casamento – e a vida em família. Para começo de conversa, encontrar uma noiva foi tarefa complicada. O imperador governava um país distante e atrasado. Não havia no Rio de Janeiro nada que nem de perto lembrasse uma corte (diga-se, os títulos nobiliários do império brasileiro não eram herdados).
A cidade era impraticável no verão – e ainda havia a fama de garanhão do pai de Pedro II. Para piorar, o imperador era um sujeito alto e de lindos olhos azuis, mas sua voz… “Bastava que abrisse a boca para que essa boa imagem inicial rapidamente se esvanecesse: a voz era aflautada, fina e aguda, como em falsete, mais própria de um adolescente em início da puberdade do que de um adulto”, registra o jornalista Laurentino Gomes no recém-lançado 1889.
A princesa carola
O encarregado de encontrar uma princesa para dom Pedro II, Bento da Silva Lisboa, rodou a Europa por dois anos em busca de uma candidata. Acabou por negociar com o rei Fernando, das Duas Sicílias, o casamento do imperador com sua irmã mais nova, Teresa Cristina. O ramo Bourboun de Fernando era uma casa de pouco prestígio na nobreza europeia e o rei tinha fama de déspota. Ainda assim, o noivo gostou do que viu ao receber um retrato da futura imperatriz.
A achou “mui bela”. O casamento foi feito por procuração, e, um século antes da invenção do Photoshop, Pedro não demoraria a se arrepender do comentário. Quando Teresa Cristina chegou ao Rio, em 3 de setembro de 1843, o imperador ficou mui decepcionado.
Ela era quase 4 anos mais velha, baixa, manca e feia. “Enganaram-me, Dadama”, queixou-se à sua aia. Depois, chorou no ombro do mordomo imperial. Do casamento nasceu Afonso, em 1845, que morreu aos 2 anos. No ano seguinte chegou Isabel e, depois, Leopoldina. Em 1848 nasceu Pedro Afonso, que faleceu ainda bebê.
O imperador ofereceu às filhas o mesmo ritmo de estudos a que foi submetido na infância. “A rotina diária de estudos prolongava-se por nove horas e meia, seis dias por semana. Incluía aulas de latim, inglês, francês e alemão, história de Portugal, da França e da Inglaterra, literatura portuguesa e francesa, geografia e geologia, astronomia, química, física, geometria e aritmética, desenho, piano e dança”, escreve Laurentino Gomes. “Mais tarde, passaram a incluir também o italiano e o grego, história da filosofia e economia política. No começo, o imperador encarregava-se pessoalmente das aulas de geometria e astronomia. Chegou a escrever um tratado sobre astronomia para as princesas.”
Tanta cultura assim, porém, acabou fazendo mal às moças. A historiadora Mary del Priore, autora de O Castelo de Papel, sobre Isabel e seu marido, Gastão de Orléans, o Conde d’Eu, afirma que a erudição não deixou marcas na princesa Isabel. “Horas de aulas particulares massivas não significam a justa apreensão da matéria”, diz Mary. “Que o diga a cartinha enviada ao pai quando chegou ao Recife: ‘O que mesmo haviam feito por lá os holandeses?’ Ela não se lembrava mais.” A historiadora vai além: “Suas leituras eram censuradas pelo pai e pelo marido e seus melhores conhecimentos eram focados na vida doméstica”.
O casamento de Isabel, tal como o do pai, foi um grande arranjo. Gastão de Orléans, filho do Duque de Namours, chamava a futura esposa em correspondência com o pai de Negócio nº 1 (o Negócio nº 2, claro, era a princesa Leopoldina, que se casaria com seu primo).
Tal como Pedro, Gastão não gostou da prometida. Em carta à irmã, descreveu a noiva em tom pouco lisonjeiro: “Para que não te surpreendas ao conhecer minha Isabel, aviso-te que ela nada tem de bonito; tem sobretudo uma característica que me chamou a atenção. É que lhe faltam completamente as sobrancelhas. Mas o conjunto de seu porte e de sua pessoa é gracioso”.
Mesmo assim, toda a correspondência e a pesquisa historiográfica posterior mostra que o casal era apaixonado e fiel. Havia apenas um problema – e gravíssimo. Isabel não engravidava. A primeira gestação da princesa ocorreu quase dez anos depois do casamento, e no lugar errado. O casal estava na Europa.
O contrato pré-nupcial obrigava que o herdeiro do trono nascesse no Brasil. Atravessaram o Atlântico e no dia 25 de julho de 1874 Isabel teve as primeiras contrações. “Mãe e filho passaram 50 horas em dores e sofrimento”, relata Mary del Priore. A criança, uma menina, morreu no útero.
Para retirá-la – e salvar a vida da princesa – os ossos da feto, inclusive os do crânio, foram quebrados. O episódio dá início a um triste distanciamento entre Isabel e o pai, a quem ela culpou pela viagem de volta ao Brasil. Isabel e o marido mudaram-se para Petrópolis. A perda do bebê radicalizou a carolice da princesa, que se ligou cada vez mais à família e à religião. O casal teve mais três filhos.
O imperador não gostava do genro, considerado liberal demais. Na Guerra do Paraguai, Gastão se ocupou de perseguir Solano Lopes depois que o futuro Duque de Caxias tomou Assunção. Uma de suas primeiras providências foi abolir a escravidão no país vizinho.
A imprensa, a quem dom Pedro II permitia uma liberdade raramente vista no país, via em Gastão um estrangeiro que tinha os olhos grandes no império brasileiro e manipulava a mulher. Além disso, o culpava de ganhar dinheiro explorando pobres nos cortiços no centro do Rio de Janeiro, que alugava.
Falta de apoio
Nas narrativas tradicionais sobre o Segundo Reinado, cabe a Isabel papel preponderante. Ela era “A Redentora”, responsável pelo grande gesto do fim do século 19, a abolição da escravidão. A Lei Áurea, aliás, é um requinte de minimalismo com seus dois artigos curtos: abole-se a escravidão e revogam-se as disposições em contrário.
Na prática, não foi bem assim. Em 13 de maio de 1888, Isabel perdeu o apoio do último grupo que sustentava a monarquia, os fazendeiros, ainda que, como um canto do cisne, seu gesto tenha levado a monarquia à sua fase mais popular no Brasil. “Vossa alteza redimiu uma raça mas perdeu seu trono”, anteviu o Barão de Cotegipe, um dos últimos chefes de governo do império. A propósito, é de Cotegipe uma das boas frases sobre os estertores da monarquia brasileira: “Não precisamos ir para a República; ela vem para nós”.
Na prática, Isabel estava isolada. Os jornais a tratavam por carola. O fato de Gastão de Orléans ser francês ajudava os propagandistas do temor de que o Brasil poderia ser governado por um estrangeiro – e a princesa submissa ao marido ajudava na avaliação. Gastão, em sua correspondência com o pai, atestava essa visão: “Ela estava habituada a nunca ter vontade”, escreveu.
“O campo estava livre para exercer todas as audácias de seu caráter.” O próprio dom Pedro II não via na filha a melhor pessoa para assumir o papel de imperatriz. Deixava-a à margem das decisões da política. “A impressão que se tem, ao estudar a história do Segundo Reinado, é que dom Pedro nunca acreditou de fato que a filha pudesse assumir o trono”, afirma Laurentino Gomes.
Quando o imperador se mostrou preocupado com o futuro da monarquia brasileira e perguntou ao seu ministro José Antonio Saraiva o que seria o reino de Isabel, ouviu como resposta: “O reinado de vossa filha não é deste mundo”. Uma óbvia indicação de que a carolice da sucessora não encontrava eco no Brasil do fim do século 19.
De acordo com Mary del Priore, não há nada que indique que dom Pedro tenha intencionalmente alijado Isabel do poder. “Mas não há dúvidas, comprovadas pela correspondência do Conde d’Eu com a França, que ele nunca incentivou o casal a ter envolvimento político maior, quer participando das reuniões ou das entrevistas com o ministério, quer circulando pela cidade para angariar simpatias.” Ao contrário, diz Mary, dom Pedro não se importou quando o casal se afastou da corte para morar em Petrópolis. “Onde cultivaram poucas amizades e contatos, que lhes faltaram no momento do golpe.” Em defesa do imperador, diga-se que Isabel tinha ojeriza à política.
Em carta ao pai, como regente em uma das viagens de dom Pedro ao exterior, Isabel contou como organizara a agenda: “Já marcamos as audiências para as quintas-feiras seguida de despacho; as recepções para as segundas e o corpo diplomático para as primeiras terças dos meses”, registrou. “Por ora, eis meus únicos atos oficiais. Quem me dera não ter nenhum a fazer!!!” Durante suas viagens pelo país, as anotações em seu diário têm pouco espaço para discussões políticas, mas brotam comentários sobre jardins, concertos e jantares.
Contra o Terceiro Reinado nas mãos de Isabel também pesava uma questão pessoal. Desde a regência que substituiu dom Pedro I, havia alternância de poder, ainda que as eleições fossem viciadas. Mas nenhuma mulher podia votar no século 19. Mesmo que Portugal, de onde o Brasil herdou o ordenamento legal da monarquia, permitisse que mulheres assumissem a coroa, uma presença feminina no trono incomodava. “No Brasil, conservador e patriarcal, dom Pedro sabia que o exercício político de Isabel era tarefa difícil”, afirma Laurentino Gomes. “Uma mulher no trono seria um desafio enorme. O imperador manteve a princesa próxima do trono apenas dentro dos limites do protocolo.”
Dom Pedro tinha clareza de que emplacar a filha como sucessora era uma tarefa complicada. E a história mostra que ele não se empenhou muito em mudar esse destino. “Nunca pareceu interessado em preparar um terceiro reinado, para a filha ou para dom Pedro Augusto (acima), o filho mais velho de Leopoldina”, anota José Murilo de Carvalho na biografia do imperador. “Educou Isabel como tinha sido educado, mas não lhe entregou o governo nem mesmo quando já não tinha condições de governar.” Para a historiadora Mary del Priore, o empenho de dom Pedro na sucessão simplesmente não existiu.
“Sem agenda definida para o império, acho difícil imaginar que, tal como outros imperantes, dom Pedro tivesse interesse em organizar a transição. Em coroas europeias, essa era uma preocupação permanente”, afirma Mary. “Mas não consegui identificar, na relação de dom Pedro com o casal D’Eu, nenhum impulso de ajuda ou incentivo nesse sentido.
Imperador republicano
Para complicar ainda mais a aspiração de Isabel, dom Pedro não parecia muito preocupado em perder o trono. Seus momentos de vida mais felizes ocorreram quando ele deixou o peso da farda de imperador para tornar-se apenas o cidadão Pedro de Alcântara, como gostava de ser tratado em suas viagens internacionais. Há evidentes sinais de que, para ele, a República era algo inevitável no Brasil. “Aparentemente, dom Pedro se resignou à marcha da história”, afirma Laurentino Gomes.
De fato, em algumas correspondências, o imperador não esconde que vestiria melhor o figurino republicano. Em seu diário, em 1862, muito antes da explosão do movimento pela República no Brasil, ele anotou: “Nasci para consagrar-me às letras e às ciências, e, a ocupar posição política, preferiria a de presidente da República ou de ministro à de imperador”.
Quando o golpe que levou à República eclodiu no Rio de Janeiro, dom Pedro estava em Petrópolis. Poderia ter fugido para o interior e comandado a resistência. Poderia ter parlamentado com o marechal Deodoro da Fonseca, seu amigo e, ainda que alçado a líder do movimento, sem grandes pendores republicanos. Mas ele simplesmente se acomodou e aceitou os fatos. “O imperador mantinha-se abúlico e fatalista”, descreve José Murilo de Carvalho em D. Pedro II. “Quando lhe disseram que a República já podia estar proclamada, respondeu: ‘Se for assim, será a minha aposentadoria. Já trabalhei muito e estou cansado. Irei então descansar’.” No dia 16, a princesa Isabel, que na véspera pedira ao pai para que convocasse o Conselho de Estado, simplesmente pôs-se a chorar. Reuniu-se aos filhos e preparou-se para embarcar para o exílio.
Na Europa, pai e filha dedicaram-se ao que realmente gostavam. Pedro de Alcântara aproximou-se ainda mais de cientistas e intelectuais, como Louis Pasteur (a quem, como imperador, angariou doações ao seu hoje célebre instituto).
O médico que assinou seu atestado de óbito, por exemplo, era Jean-Martin Charcot, um dos pioneiros da psiquiatria. Dom Pedro morreu de complicações de uma pneumonia em 1891, mas Charcot havia chegado a outro diagnóstico ao imperador em sua última viagem à Europa como mandatário brasileiro: ele sofria de surmenage, fadiga física e mental. Curiosamente, no filme Augustine, recentemente em cartaz, o médico francês aparece em algumas cenas com um pequeno macaco de estimação, um presente de dom Pedro.
Isabel dedicou-se à família. Seu marido comprou o Castelo d’Eu, na Normandia. Durante a Primeira Guerra, a princesa se ocupou de gerir cozinhas comunitárias e o marido representava a Cruz Vermelha na região. Com uma baioneta, fazia a ronda noturna no vilarejo próximo ao castelo. Isabel morreu em 14 de novembro de 1921. Tal como o pai, sem nunca ter voltado ao Brasil.
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D. Pedro II, de José Murilo de Carvalho
As viagens de D. Pedro II: Oriente médio e áfrica do norte, 1871 e 1876, de Roberto Khatlab
As Barbas do Imperador, de Liliam Schwarcz