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Por Cynara Menezes
Uma semana depois de o secretário de Cultura do governo Jair Bolsonaro cair por simpatizar com o nazismo, dois jornalistas do site The Intercept Brasil resolveram se unir à extrema direita para acusar a esquerda de “defender ditadores e genocidas”. No artigo, publicado nesta quarta-feira, o alvo principal era a deputada federal do PSOL Taliria Petrone, que “ousou” homenagear no twitter o líder da revolução russa Vladimir Lenin pela passagem dos 96 anos de sua morte.
https://twitter.com/taliriapetrone/status/1219607167638130688?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1219607167638130688&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.socialistamorena.com.br%2Fpor-que-homenagear-lenin-e-elogiar-genocida-e-idolatrar-churchill-nao%2F
Outro criticado pela dupla do Intercept foi o historiador marxista pernambucano Jones Manoel, que, afirma o texto, “não corou em falar publicamente que matar pessoas em uma revolução ‘é uma contingência que acontece’. Fuzilar uma família aqui, matar outros tantos milhões de fome ali, torturar e assassinar indiscriminadamente e promover o terror entre os dissidentes. Assim mesmo. É normal, efeito colateral”. Como se Jones não estivesse falando o óbvio: é óbvio que revoluções armadas resultam em mortes.
Igualando Lenin a Josef Stalin, sobre quem pesa inclusive a suspeita de ter envenenado o antecessor para tomar o poder, os autores do artigo defendem que homenagear o líder soviético é elogiar “ditadores”. Fazem o mesmo com Nicolás Maduro, da Venezuela: para eles, a esquerda não deve defender Maduro da sabotagem, da tentativa de intervenção e do bloqueio dos EUA ao país, porque isso seria idêntico a “apoiar ditadura”, uma atitude pouco “estratégica” no momento.
Eu sou de esquerda e abomino a figura de Stalin. Concordo inteiramente com o escritor cubano Leonardo Padura, para quem Koba era “um psicopata”. Stalin tem todas as características de um: paranoia, complexo de perseguição; era sanguinário, vingativo e cruel. Um genocida. Mas não consigo entender por que os “grandes líderes” do capitalismo na História, afagados e homenageados pela direita, também não são chamados assim.
Tomemos como exemplo Winston Churchill, o primeiro-ministro ídolo do conservadorismo, que “nunca escondeu sua crença na ‘supremacia branca’”, que “considerava os indianos uma ‘raça inferior’” e que “tinha visões antissemitas”, segundo matéria, vejam só, da BBC, a televisão estatal britânica. Churchill “defendeu o uso de ‘gás venenoso’ contra curdos, afegãos e ‘tribos não civilizadas’ –seus defensores dizem que ele se referia ao gás lacrimogêneo. Mas também defendeu o uso de gás mostarda contra tropas otomanas”, lembra a reportagem.
Em janeiro de 2019, Ross Greer, um membro nacionalista do Parlamento da Escócia, causou rebuliço no Reino Unido ao acusar Churchill de ser um “assassino em massa” cujas decisões políticas contribuíram para a “grande fome” que matou cerca de 3 milhões de pessoas na província de Bengala, na Índia, quando o território ainda era colônia britânica, em 1943. A Índia pertenceu à Inglaterra entre 1858 e 1947.
A “grande fome” de Holodomor, na Ucrânia, é reconhecida como “genocídio” por 16 países. Já a “grande fome” de Bengala, na Índia, que levou a um número similar de mortes, não. Stalin é chamado de “genocida”, mas Churchill é louvado como “estadista”
“De acordo com o autor do livro A Guerra Secreta de Churchill, Madhusree Mukerjee, o primeiro-ministro se recusou a atender aos pedidos da Índia por trigo e continuou a insistir para que a colônia fornecesse arroz e combustível para o esforço de guerra”, continua a reportagem da BBC, citando que Churchill disse: “Odeio indianos. São pessoas horríveis com uma religião horrível”. Ele teria culpado os próprios indianos pela fome, acusando-os de “se reproduzir como coelhos”, e questionado por que Gandhi continuava vivo se a situação era tão ruim.
A “grande fome” de Holodomor, na Ucrânia, em 1933, frequentemente utilizada pela extrema direita para equiparar nazismo e comunismo, é reconhecida como “genocídio” por 16 países. Já a “grande fome” de Bengala, que levou a um número similar de mortes, não. Embora tenham estado lado a lado na guerra contra os nazistas, Stalin é chamado de “genocida” pela direita. Mas Churchill é louvado como “estadista”.
Quantos milhões de vítimas o imperialismo britânico fez no total? A União Soviética pós-Stalin apoiou fortemente o Congresso Nacional Africano na oposição ao apartheid na África do Sul. Em 1990, pouco antes de a URSS acabar, Nelson Mandela foi condecorado com o Prêmio Lenin Internacional da Paz.
É sobre História mesmo que se trata esta disputa? Ou é sobre tentar criminalizar uma ideologia em favor de outras? À luz dos fatos e das circunstâncias, não é possível apontar o dedo para os crimes cometidos por governantes ditos comunistas se não for feito o mesmo com governantes capitalistas
Os britânicos, ao contrário, se utilizaram do regime racista sul-africano para espoliar o país de suas riquezas minerais. Considerado o maior diamante lapidado do mundo até 1985, o Cullinan I orna o cetro da rainha Elizabeth, que recebeu dezenas de diamantes sul-africanos de presente desde a juventude. Mas nunca vimos ninguém na direita cobrando a execração da monarca britânica, cujo neto é casado com uma negra, por “opressão ao povo africano”, “racismo” e até “roubo”.
Os britânicos também tiveram campos de concentração na África do Sul, embora muita gente pense que a prática se restringiu aos nazistas. Foram pioneiros, aliás: entre 1900 e 1902, 30 antes dos primeiros Gulags soviéticos, o Reino Unido confinou mulheres e crianças bôere, famílias inteiras deixadas para morrer lentamente de desnutrição ou vitimados por epidemias.
Durante a Segunda Guerra Mundial, os EUA também mantiveram ao redor de 120 mil pessoas, a maioria delas japonesas, mas com cidadania norte-americana, em campos de concentração, cercados com arame farpado e vigiados por guardas armados. Quem fugisse levava bala. Qualquer semelhança com o que outro ídolo da extrema direita, Donald Trump, faz hoje em dia com os imigrantes latinos não será mera coincidência.
O massacre perpetrado pelo rei belga Leopoldo II no Congo entre 1895 e 1908 continua desconhecido, talvez porque ele não era comunista. A população inteira do país foi subjugada e suas riquezas, roubadas. Alguém aí já viu recorrerem ao genocídio no Congo para atacar o capitalismo?
Tampouco a noção de “holocausto” se restringe historicamente ao que fizeram os nazistas contra os judeus. O massacre perpetrado pelo rei belga Leopoldo II no Congo entre 1895 e 1908 continua desconhecido, talvez porque ele não era comunista. A população inteira do país foi subjugada e suas riquezas, roubadas pelo monarca. Os “desobedientes” tiveram seus membros decepados ou foram mortos. Alguém aí já viu recorrerem ao genocídio no Congo para atacar o capitalismo?
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Outro holocausto de que ninguém fala para questionar as brutalidades do capitalismo foi o genocídio armênio durante a Primeira Guerra Mundial, quando cerca de 1,5 milhão de pessoas foram exterminadas pelos turcos. A União Soviética foi um dos primeiros países a reconhecer o genocídio e inaugurou, em 1967, um memorial em homenagem às vítimas armênias. Já os Estados Unidos só reconheceram o massacre armênio como genocídio, por incrível que pareça, no ano passado.
É sobre História mesmo que se trata esta disputa? Ou é sobre tentar criminalizar uma ideologia em favor de outras? À luz dos fatos e das circunstâncias, não é possível apontar o dedo para os crimes cometidos por governantes ditos comunistas se não for feito o mesmo com governantes capitalistas. Não se pode apoiar a invasão do Irã pelos norte-americanos para “libertar os iranianos” se não se apoiar a invasão da Arábia saudita para “libertar os sauditas” –para a esquerda, em ambos os casos, são os sauditas e iranianos que devem decidir seu próprio destino, somos anti-intervencionistas, favoráveis à soberania dos povos, mas quando dizemos isso somos acusados de “defender o Irã”.
Obcecados pela ideia de parecer “isentos”, os dois jornalistas do Intercept defendem que, na “guerra de narrativas”, nossa estratégia seja não “elogiar ditadores”. Se não fizermos isso, sustentam, “continuaremos perdendo”. Ora, durante os anos em que permaneceu no poder, o PT fez exatamente isso: expulsou do partido as “alas radicais”, abriu mão de se definir como um partido socialista, e fez concessões à direita. Foi por “elogiar ditadores” que “perdemos” ou foi porque, pelo contrário, deixamos de encarar batalhas importantes por medo?
Uma “esquerda” que ataca a própria esquerda com argumentos falaciosos da direita é que municia a direita. E uma esquerda que municia os inimigos não me parece nada estratégica. O foco hoje deveria ser tirar o país das mãos dos fascistas, e não colaborar com a tentativa de criminalizar os comunistas. Justiça seja feita, de esmagar nazistas eles entendiam como ninguém.