Por que os latino-americanos estão desencantados com a democracia

Manifestação de apoio ao jornalista Glenn Greenwald na quarta-feira, em São Paulo.

Por Jorge Galindo

El País

A democracia, outrora um farol com o qual o Ocidente pretendia iluminar o mundo, está perdendo adeptos. E a América Latina não é exceção. Não falamos (somente) dos líderes autoritários que florescem no continente assim como no resto do mundo, mas também daqueles que decidiram segui-los em seu desapego. O último Latinobarômetro delimitou a extensão do desencantamento: o apoio à democracia não chega à metade dos cidadãos do continente.

O complementar Barômetro das Américas confirma o panorama: na última década, o percentual de pessoas que têm certeza de que a democracia não é o melhor sistema de governo possível aumentou, mas também, e principalmente, cresceu o número daqueles com posições mais indeterminadas. O dado desagregado por países confirma que é aí, na indiferença, onde a maioria está instalada, com poucas exceções (Argentina, Uruguai, Costa Rica). As nações mais populosas do continente, Brasil e México, abrigam milhões de habitantes que se movimentam no amplo espectro do desencanto. Não surpreende que ambos tenham escolhido recentemente presidentes dispostos a atacar consensos e instituições para consolidar seu poder e o dos seus. No Brasil, 16% da população discorda que a democracia seja o melhor sistema político, e 50% está em cima do muro.

A avaliação da democracia se instala assim na ambiguidade, mais do que na rejeição visceral. Os protagonistas do desencanto são principalmente jovens e de pouco poder aquisitivo. Ambos os grupos mostram uma probabilidade substancialmente menor de manter uma clara preferência pela democracia do que seus pares mais velhos e em melhor situação econômica.

No entanto, são precisamente as classes mais abastadas que estão perdendo mais entusiasmo pela democracia. Também os millennials (nascidos depois de 1980, incluindo os primeiros centennials de meados da década de noventa).

Essas quedas são particularmente alarmantes porque abrigam a capacidade de mudar o ponto de encontro entre oferta e demanda eleitoral. As elites econômicas têm maior capacidade de definir a agenda e moldar o futuro de nossas instituições. Para moldar, em resumo, a oferta política. Por seu lado, aqueles que são jovens hoje se tornarão o centro da demanda amanhã, decidindo com seus votos se desejam um modelo alternativo ao da democracia pluralista.

Podemos representar as opiniões daqueles que estão desencantados com a democracia: respeitam menos essas mesmas instituições, principalmente os partidos políticos, veem mais corruptos entre os líderes do que no resto dos cidadãos e carregam certo viés autoritário, conservador.

Mas, embora os críticos com democracia nascidos depois de 1980 mantenham todas essas características, existem outros que são menos proeminentes entre eles e questionam alguns mitos.

Não se apreciam expectativas econômicas piores do que entre o conjunto dos democéticos. Mesmo a ausência de interesse político, embora estruturalmente presente, é menor nas novas gerações de desconfiados do que nas velhas. Algo semelhante acontece com as classes mais abastadas.

O que está acontecendo, então, para que se instale o desencanto sistêmico entre as novas gerações? Para os cientistas políticos Yascha Mounk e Roberto Roa, que trabalharam a questão da erosão dos valores democráticos como poucos em sua disciplina, talvez estejamos diante de uma visão incompleta devido à ausência de referências: já que essas gerações têm menos experiência com regimes autoritários do que as anteriores, não valorizam na mesma medida as vantagens de viver sob uma democracia. Se isso for verdade, deveríamos observar um maior diferencial de desencanto ou ambiguidade entre os nascidos antes e depois de 1980 nos países com transições mais antigas.

Existe, de fato, certa correlação entre o tempo que cada nação tem de eleições livres ininterruptas e o plus de ceticismo com a democracia demonstrado pelas novas gerações. A fragilidade da relação sugere, no entanto, que tem de haver algo mais.

Esse “algo mais” não parece ser uma radicalização das posições: segundo os dados do próprio Barômetro, os nascidos de 1980 em diante têm opiniões menos extremas sobre o aborto, o casamento igualitário e inclusive a luta contra a desigualdade do que essa mesma geração em 2012.

Mas talvez o que esteja acontecendo seja um pouco menos espetacular, mas potencialmente tão perigoso quanto. O descontentamento com a falta de resposta do sistema às demandas não incorporadas sempre esteve presente na América Latina, um continente onde o presidencialismo elitista e a desigualdade produziram democracias pouco inclusivas, de acesso restrito. Essa pulsão não desapareceu, mas talvez a ela tenha se juntado outra, aparentemente contraditória: uma espécie de preferência pela ordem sobre o conflito.

O Barômetro das Américas pergunta aos entrevistados sobre até que ponto estão de acordo com algo tão básico quanto conceder o direito de voto àqueles que são críticos do sistema de governo. Essa questão permite medir o grau de tolerância que cada indivíduo tem em relação à crítica extrema.

Acontece que aqueles que demonstram um maior desencanto com a ideia explícita de democracia também são mais favoráveis à manutenção dos direitos de voto dos críticos. Provavelmente porque eles se veem como parte desse grupo. Esses “democratas paradoxais”, que desconfiam da democracia atual, entrariam na categoria do descontentamento perene, inevitável até que os regimes se tornem mais inclusivos. Também estão aqui os segmentos de autoritarismo puro: aqueles que rejeitam a democracia em termos abstratos e concretos, que disputam o direito de voto da oposição. É impossível para eles incorporá-los à alternância de poder, porque apenas aspiram a suprimi-la. Mas é o grupo intermediário que mostra um comportamento mais sugestivo e consistente: indiferentes à democracia como conceito e indiferentes também com o direito de voto dos críticos extremos. Para uma maioria relativa de latino-americanos, a possibilidade de canalizar o conflito não é uma prioridade. O mais preocupante é, novamente, a coincidência desse padrão entre as novas gerações e as classes mais abastadas.

Porque, e se estamos assistindo ao nascimento de uma geração que anseia por ordem, funcionalidade? O autoritarismo seria então um subproduto, mais do que uma reivindicação central. O modelo chinês vem à mente: uma ditadura que, aos olhos do mundo, foi capaz de criar bem-estar para a maioria, embora em troca de um (enorme) custo para as minorias. Talvez seja esse o tipo de espelho em que os desencantados se refletem: uma ‘morte doce’ do pluralismo. ‘Doce’, é claro, apenas na aparência, e apenas para aqueles segmentos da população dispostos a consolidar sua boa posição diante da supressão do conflito formalizado. O continente tem vasta experiência com líderes que oferecem melhorias para a maioria em troca de que a população renuncie ao direito de votar contra. Videla, Pinochet, Chávez, Fujimori e Castro, entre muitos outros, fizeram carreira com essa ideia. Não faria mal, à luz desses dados, refrescar a memória com o que acaba acontecendo quando um ditador promete harmonia.

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Reportagem especial

Canal Bruno Barreto