O Brasil está muito estranho. Estamos sendo obrigados a ter que explicar o óbvio que muitos não percebem num ambiente toscamente polarizado entre “coxinhas” x “mortadelas”, “bolsominions” x “petralhas”.
Em primeiro lugar mortes são mortes. As famílias vão sofrer uma dor inimaginável que não temos condições de mensurar. Mas o que vai comover os estranhos são as circunstâncias. São eles que vão gerar mais falatório.
O interesse da mídia também vai variar conforme alguns aspectos como a localização geográfica da tragédia ou o apelo das pessoas envolvidas. A morte de um ator jovem comove muito mais do que a de artista beirando os 100 anos.
Eu mesmo já fiquei indignado com as diferenças de tratamentos que levam em conta a localização geográfica porque entendo que a vida humana tem o mesmo valor nos EUA ou na África. Mas a minha crítica se refere a tragédias climáticas e atos terroristas, há uma assimetria na desgraça com comoções diferentes na mídia.
Um latrocínio (assalto seguido de morte) e uma execução são crimes de homicídio de naturezas diferentes. A vítima do latrocínio é escolhida ao acaso. A vítima de uma execução é alvo de uma morte planejada e o motivo é variado como as ideias que defende ou simplesmente por ser mulher, negra ou homossexual.
O Rio Grande do Norte está chocado com a morte da policial militar catarinense Caroline Pletsch. Mas setores conservadores querem impor nas redes sociais que a comoção pela morte dela seja igual a da vereadora carioca Marielle Franco. Isso não vai acontecer porque foram tragédias de naturezas diferentes. Uma vítima da banalização da violência. Outra alvo de uma execução com fortes indícios de crime político.
Não por ser uma homossexual e outra heterossexual. Não porque uma era negra e a outra branca. Não é porque uma lutava pelos direitos humanos e outra policial (como se policiais não pudessem lutar por justiça e quem luta por justiça não pudesse defender os policiais).
No caso de Marielle, o fato dela ser mulher, negra e homossexual gera uma carga simbólica maior por ela reunir em si alguns dos grupos mais discriminados no país. Mas o fator principal é ser vítima de um crime de execução com forte indício de motivação política, repito. É muito parecido com o assassinato da freira Dorothy Stang, assassinada em 2005 por sua atuação em defesa dos menos favorecidos no conflito por terras no Pará. A religiosa estadunidense não era negra nem homossexual e, ainda por cima, era do país onde um tiro para cima tem repercussão mundial. A morte dela gerou comoção por ter uma motivação política.
Reforçando para quem ainda não entendeu a diferença dos casos:
- Caroline Plescht: foi assaltada como qualquer um de um de nós pode ser;
- Marielle Franco: foi vítima de um crime premeditado após sofrer ameaças por sua atuação política.
Resumindo: a vida de Caroline Plescht é tão importante quanto a de a Marielle Franco. A comoção no caso desta última é pela natureza do crime.
Caroline Pletsch foi vítima de um assalto, lutou bravamente para conter os bandidos. Já tive um amigo de infância, também policial, que morreu tragicamente dessa mesma forma, por coincidência em um lugar muito próximo ao da tragédia da segunda-feira.
A questão aí é de segurança pública, é do risco exposto aos turistas que visitam o Rio Grande do Norte e da morte de uma pessoa que estava apenas querendo descansar (um direito de todos) e conhecer as nossas belezas naturais.
O caso de Marielle foi outro. Ela foi executada após fazer denúncias de violência contra negros pobres em comunidades carentes. Morreu em defesa de uma causa.
Aqui em Mossoró a cidade está comovida com a história da professora Márcia Regina que foi vítima de doze cutiladas de tesoura pelo próprio marido. Mas aí já é um outro tipo de comoção. A reflexão provocada por um caso desse é diferente da de Marielle Franco e da Caroline Plescht. Trata-se de uma tentativa de feminícidio.
As pessoas que cobram o mesmo tratamento entre Marielle Franco e Caroline Pletsch não estão incomodadas com a maior ou menor atenção de um e outro caso. A questão é política: é sobre quem se “apropriou” do cadáver.
A última preocupação em um e outro caso é com a dor das famílias. A dor pela morte de um ente querido derrapou na política rasteira.
Ps.: trecho que trata das ameaças à Marielle Franco suprimido por equívoco do autor.