Portaria não é lei

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Por Rogério Tadeu Romano 

I – O FATO

O Ministério da Saúde publicou, no dia 28 de agosto do corrente ano, uma portaria com novas regras para atendimento ao aborto nos casos previstos em lei. O texto obriga profissionais de saúde a avisarem a polícia quando atenderem pacientes que peçam para interromper uma gestação em razão de estupro.

Até então, essa notificação não constava de documentos da pasta, segundo especialistas ouvidos pela Folha.

A portaria também estabelece uma série de medidas que devem ser cumpridas pelas equipes de saúde para que gestantes tenham acesso ao procedimento. Entre elas, a exigência de que os médicos informem à mulher a possibilidade de ver o feto em ultrassonografia —algo que alguns especialistas consideram esta uma maneira de demover a paciente.

O texto também determina que as pacientes assinem um termo de consentimento com uma lista de possíveis complicações do aborto.

“É obrigatória a notificação à autoridade policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro”, diz a portaria publicada no Diário Oficial e assinada pelo ministro interino da Saúde, o general Eduardo Pazuello.

Para Debora Diniz, do Instituto Anis Bioética, a portaria “transforma a operação de um serviço de aborto legal em uma delegacia policial”. “Ela cria uma série de barreiras e parte de uma clara ideologização da ciência, uma ciência seletiva, cuja única finalidade é amedrontar as mulheres que buscam o aborto.”

Como se lê do Brasil de Fato, para Sonia Coelho, integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF), a medida é uma forma de “criminalizar e impedir” o acesso ao aborto legal, visto que a norma anterior visava a facilitar o acesso da vítima de violência sexual aos serviços de saúde, porque, muitas vezes, a mulher tem medo de ameaçar o estuprador, que em parte dos casos é um ente da família.


II – A NATUREZA JURÍDICA DA PORTARIA

A portaria traz medidas que extrapolam os seus limites de norma secundária para estabelecer obrigações em confronto a direitos fundamentais instituídos na Constituição.

Hospital não é delegacia de polícia.

O profissional de saúde não pode ser agente de investigação criminal.

Ora, de acordo com o art. 5º, inciso II, da Constituição Federal, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Assim, a portaria não pode criar regras gerais.

A portaria não traz novidade, própria da edição de uma regra jurídica, pois é regra secundária que está limitada por normas primárias.

A portaria é norma secundária. Ela não é editada pelo Parlamento, criando-se nos gabinetes da Administração.

Necessário estudar a natureza jurídica da portaria diante da lei.

Como bem ensinou Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo, 17ª edição, pág. 337):

“Se o regulamento não pode criar direitos ou restrições à liberdade, propriedade e atividades dos indivíduos que á não estejam estabelecidos e restringidos na lei, menos ainda poderão fazê-lo instruções, portarias ou resoluções. Se o regulamento não pode ser instrumento para regular matéria que, por ser legislativa, é insuscetível de delegação, menos ainda poderão fazê-lo atos de estirpe inferior, quais instruções, portarias ou resoluções. Se o chefe do Poder Executivo não pode assenhorear-se de funções legislativas nem recebê-las para isso por complacência irregular do Poder Legislativo, menos ainda poderão outros órgãos ou entidades da Administração direta ou indireta”.

Na lição de Paulino Jacques (Curso de Introdução à Ciência do Direito, 2ª edição, pág. 81), as instruções, normas típicas secundárias, dispõem, em geral, sobre a execução dos serviços públicos ou de normas legais ou regulamentares. Daí tem-se a lição de Carré de Malberg de que as instruções só produzem efeito “no interior do serviço, porque se originam do serviço e se editam em virtude das relações que o serviço engendra entre chefes e subalternos”(Teoria general del Estado, tradução de J. L. Degrete, México, 1948, pág. 605, n. 224), não obrigando assim os particulares.

Em verdade, com relação a portarias, há regras dadas às autoridades públicas, prescrevendo-lhes o modo por que devem organizar e pôr em andamento certos serviços.

Portaria ministerial não integra o processo legislativo disciplinado pela Constituição. Trata-se de ato normativo interno, destinado a ordenar os serviços executados por servidores de determinado estabelecimento ou repartição. Não atribui direitos, nem impõe obrigações e penalidades a terceiros.

A portaria não é lei.

Aliás, ninguém pode fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei(artigo 5º, II, da Constituição Federal).


III – O QUE É LEI?

 Lei, no sentido material, é o ato jurídico emanado do Estado com o caráter de norma geral, abstrata e obrigatória, tendo como finalidade o ordenamento da vida coletiva, como já dizia Duguit. Esses caracteres e o de modificação da ordem jurídica preexistente, que decorre da sua qualidade de ato jurídico, como dizia Miguel Seabra Fagundes(“O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário”, segunda edição, José Konfino, pág. 30), se somam para caracterizar a lei entre os demais atos do Estado. Mas entre eles só é específico o da generalidade.

Entre os italianos, Ranelletti, além de outros, entende que o caráter especifico da lei, no sentido material, está na novidade ou modificação(“novità), e não na generalidade, se bem que seja esta uma característica habitual trazida à norma jurídica.

Ranelletti, com razão, nega o caráter de lei às regras que o Estado regula a sua própria atividade, por lhe parecer que não produzam efeito jurídico em relação a terceiros.

Ao lado da generalidade é, sem dúvida, elemento intrínseco, inapartável da lei, a modificação do direito preexistente alterando situações juridicas anteriores. A novidade de que falou Ranellleti.

Ora, no Brasil, não ocorre no ato administrativo normativo (decreto), mas somente na lei, generalidade e novidade.

Aliás, dita o artigo 5º, inciso II, da Constituição, quanto ao princípio da legalidade e da reserva de lei, que ninguém poderá ser obrigado a fazer ou não fazer senão em virtude de lei.

A lei que se fala é formal e material de modo que é ato normativo oriundo de reserva do Parlamento.

Há, para o caso, uma supremacia e preeminência de lei formal.

O princípio da legalidade eleva a lei à condição de veículo supremo da vontade do Estado.

A lei é uma garantia, o que não exclui, como bem se avisa, a necessidade de que ela mesma seja protegida contra possíveis atentados à sua inteireza e contra possíveis máculas que a desencaminhem de sua verdadeira trilha.

Necessário expor, ainda que em poucas palavras, o princípio da legalidade no direito penal, no direito administrativo e no direito tributário.

Diante do princípio da legalidade do crime e da pena, pelo qual não se pode impor sanção penal a fato não previsto em lei, é inadmissível o emprego da analogia (forma de autointegração da lei) para criar ilícitos penais ou estabelecer sanções criminais.

A única fonte direta do direito penal é a lei, diante do princípio da reserva legal.

O princípio da legalidade está inscrito no artigo 1º do Código Penal, reserva legal, no sentido de que “não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”.

Assim também é na Constituição Federal, no artigo 5º, XXXIX, quando se dispôs que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

Na esfera administrativa discutem-se as características do princípio da legalidade.

O princípio da legalidade da função executiva, de que a legalidade da Administração é simples aspecto, desdobra-se nos princípios da preeminência da lei e o princípio da reserva de lei.

O princípio da preeminência da lei, princípio da legalidade em sentido amplo, fórmula negativa ou regra da conformidade, traduz-se na proposição de que cada ato concreto da Administração é inválido, se e na medida em que contraria uma lei material.

Por sua vez, o princípio da reserva de lei, princípio da legalidade em sentido restrito, surgiu originalmente com o sentido de que cada ato concreto da administração que intervém na liberdade ou propriedade do cidadão, carece de autorização de uma lei material; mas veio mais tarde a evoluir no sentido de exigir a mesma autorização para todo e qualquer ato administrativo, ainda que, de forma direta, não contendesse na aludida esfera privada dos particulares.

Entende-se pela experiência doutrinária que, se o princípio da preeminência da lei representa muito mais a defesa da própria ideia de generalidade numa fase de evolução do poder administrativo concebido essencialmente como uma ampla esfera de autonomia ou mero âmbito da licitude, o princípio da reserva legal desempenha uma função de garantia dos particulares contra as intervenções do poder.

Na doutrina alemã, do que se lê das observações de Peters, Huber, Wolff e Forsthoff, o princípio da legalidade reveste no direito administrativo o seu conteúdo mínimo de uma simples regra de preeminência da lei. Assim, no direito administrativo brasileiro, há o entendimento de que apenas se deve exigir uma reserva de lei no que se diz respeito à criação de deveres, de conteúdo positivo ou negativo. A Constituição dita: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”(artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal).

Fala-se em reserva de lei material e reserva de lei formal. No primeiro caso, basta que a conduta da Administração seja autorizada por uma norma geral e abstrata, seja ela a lei constitucional (norma paratípica), a lei ordinária (norma típica primária) ou mesmo o regulamento (norma típica secundária). No segundo caso, torna-se necessário que o fundamento legal do comportamento do órgão executivo seja um ato normativo dotado com força de lei, de ato provindo de órgão com competência legislativa normal e revestido da forma externa legalmente prescrita.

A atividade administrativa que não se traduz na criação de limites à liberdade pessoal ou patrimonial dos cidadãos, apenas se encontra submetida à regra da preeminência da lei.


IV – CONCLUSÕES

Diga-se que toda vez que se tratar de limitação dos direitos fundamentais, a lei é imprescindível.

É o que se chama de reserva de lei restritiva.

Postula esse princípio não poder a Administração intervir limitativamente nos direitos fundamentais dos cidadãos, sem autorização legal, indo além. Afirma também não ser bastante qualquer autorização legislativa, mas somente aquela que traga consigo determinações quanto ao conteúdo, fins, tempo, e medida da matéria a regular pela Administração.

A Administração, assim, somente poderá executar tarefas que a lei lhe confira.

Parece óbvio, pois, que a portaria discutida extrapola os limites da lei, excede as fronteiras da Administração para dizer a uma categoria de profissionais de saúde o que devem ou não fazer.

Isso é tarefa da lei.

A portaria noticiada se excede ao determinar autorizações em branco.

Como disse Canotilho, o princípio do Estado de Direito não tolera a autorização legal total de ingerência administrativa sobre o cidadão, sem determinação do conteúdo, objeto-fim e medida do ato administrativo.

A portaria não pode ser um “cheque em branco” para a Administração limitar o ir e vir do particular.

Será caso, pois, de que os legitimados possam apresentar ao Congresso a sustação da norma secundária editada que contrasta com os limites da lei.

No preservação das garantias individuais do ir e vir, poder-se-á ajuizar habeas corpus diante da evidente inconstitucionalidade da providência normativa enfocada presente um caso concreto.

Uma portaria não pode criminalizar aborto legal por estupro, que é permitido pela legislação penal.

O teor da Portaria 2.282/20 não deixa dúvidas. Seu objetivo não é regulamentar uma atividade médica. Sua finalidade é persecutória e intimidatória. Em vez de cuidar da saúde, o Ministério da Saúde ocupa-se, no meio de uma pandemia, de patrocinar política ideológica, à custa de gestantes vítimas de estupro, muitas delas menores de idade. Essa tática não é apenas ilegal. É desumana, como bem acentuou o Estadão, em Editorial, no dia 8 de setembro do corrente ano.

A Portaria 2.282/20 é ilegal e transforma médicos em agentes de investigação criminal.

A Portaria 2.282/20, em verdade, afeta pessoas que não são criminosas, mas vítimas. Algumas delas menores e daí a sua afronta a valores fundamentais.

 

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Reportagem especial

Canal Bruno Barreto