Nesta semana vivi, a partir das redes sociais, uma experiência interessante sobre como o racismo estrutural está entranhado em nossa sociedade.
A experiência envolve a deputada estadual Isolda Dantas (PT) e o tema das cotas. Foi algo involuntário a partir de postagens noticiosas, mas que se tornou um exemplo da necessidade de nossa sociedade debater a questão do racismo em profundidade.
Na segunda-feira, 2 de dezembro, postamos a notícia sobre um projeto de lei de Isolda sugerindo cotas para negros em concursos públicos. Em poucos minutos dezenas de comentários criticavam a proposta com alegações que explicam muito bem porque o Brasil vão tão mal no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), exame que avalia a qualidade do ensino nas maiores economias do planeta.
Logo surgiram questionamentos do tipo: “por que não faz contas para brancos?”, “os negros são tão inteligentes quanto os brancos” ou “os negros não precisam disso”. Parece até que nossas repartições públicas têm mais negros que brancos, né? Infelizmente a realidade é diferente.
Os questionamentos são constrangedores por alternarem avaliações racistas com desconhecimento sobre a nossa história e o legado perverso deixado pela escravidão.
Pois bem.
Dois dias depois, quarta-feira, noticiamos que a mesma deputada criticou a iniciativa do presidente Jair Bolsonaro de acabar com as cotas para pessoas com deficiência em empresas, proposta rejeitada pelo congresso. A postagem não gerou polêmica nem um grande número de comentários.
Por que cotas para pessoas com deficiência não incomodam tanto quanto cotas raciais? Afinal de contas muitos dos que criticaram a primeira postagem alegaram ser contra cotas, independente do perfil delas.
Por trás disso está algo inconfessável: o racismo. Após Lei Áurea, o Brasil nunca teve uma segregação racial legalizada como nos Estados Unidos e África do Sul. Temos em nosso país um racismo de cochichos que se consolida de forma estrutural.
Como assim? A nossa estrutura socioeconômica exclui a população negra. Isso é visível, mas não percebido por ausência de pessoas pondo o dedo de uma ferida que insiste em se manter aberta 131 anos após a escravidão.
A origem de nossas desigualdades vem da escravidão e estrutura excludente dos negros se perpetua.
Joaquim Nabuco, branco e abolicionista, avisou ainda no Século XIX que o fim da escravidão não seria uma garantia de melhoria para os negros em frase lapidar:
“Enquanto a nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante mesmo que não haja mais escravos”.
Na década de 1880, ainda na escravidão, já existia uma classe média de negros libertos que começava a ocupar espaços. Machado de Assis era nosso maior escritor, José do Patrocínio era um dos principais jornalistas do país. Ambos eram negros.
Esse processo, que daria outra conotação ao país, foi interrompido após a abolição dos escravos ironicamente. O Brasil optou por atrair mão de obra europeia para substituir os escravos. Os negros foram empurrados à marginalidade morando em barracos, fazendo bicos e excluídos do ensino público.
Ainda deu tempo de essa fase permitir que tivéssemos nosso primeiro presidente negro, Nilo Peçanha, 21 anos após o fim da escravidão. Depois disso não mais porque a presença do negro na classe média foi reduzida.
Ainda não conseguiu compreender o que explico sobre o racismo estrutural? Vamos a questões práticas.
Quantas vezes em sua vida você foi atendido por um médico negro? Quantos juízes negros você conhece? Quantos apresentadores de telejornais são negros? É comum narrador de futebol na TV ser negro? Quantos técnicos dos times são negros?
Onde estão os negros no mercado de trabalho? Nas funções subalternas. Já reparou que é raríssimo um mendigo ser branco?
Isso não acontece por falta de capacidade dos negros, mas de oportunidades. Veja: eles são maioria da população, mas minoria no exercício das principais funções.
O nome disso é racismo estrutural.
A mudança dessa realidade não vai ser por meio da mão invisível do mercado. Não vai ser através do silêncio omisso que o racismo estrutural será derrotado. É preciso ter políticas afirmativas como cotas raciais ou sociais para mudarmos uma realidade perversa.
Se você, meu caro leitor reacionário, pensa que isso é coisa de esquerdista deveria se informar como a pátria do mercado fez para incluir negros por meio de cotas tornando sua sociedade menos injusta.
Foi graças às cotas que os negros se tornaram maioria nas universidades públicas pela primeira vez no Brasil. Os resultados estão começando a aparecer agora porque uma geração de formados nas universidades está começando a por os filhos nelas.
Justamente por terem a mesma capacidade, mas não as mesmas oportunidades no futuro, se Bolsonaro não atrapalhar, as cotas deixarão de ser necessárias porque teremos uma classe média de maioria negra consolidada no país.
Mossoró já conhece essa realidade inclusiva através da UERN onde 89% dos alunos são oriundos de escolas públicas graças à política de cotas sociais que agora ganhou o reforço do critério racial. Na própria instituição já sentimos na prática isso porque muitos ex-alunos retornam para exercer a docência e hoje 45% dos professores uernianos são pretos e pardos.
Até lá precisamos nos unir, assumir uma postura altruísta e lutar por uma sociedade inclusiva. O Brasil tem uma dívida histórica com os negros e ela precisa ser paga por meio de cotas sejam elas sociais ou raciais para termos uma sociedade mais justa.
Se ao final deste texto você ainda não conseguiu compreender a perversidade do racismo estrutural em nossa sociedade sugiro que estude ou, em último caso, vá se tratar num psiquiatra.