Racismo e miséria marcam história de quilombola amarrado e agredido por empresário no Rio Grande do Norte

Luciano Simplício, que vive em situação de rua, foi amarrado e agredido (Foto: Rafael Duarte)

Por Rafael Duarte

 O Globo

NATAL – Até o século XIX, as pessoas escravizadas eram castigadas com chicotes e os quilombos se formaram para escapar deste e de outros tipos de violência. No século XXI, essa tortura voltou a ser aplicada no quilombola Francisco Luciano Simplício, de 23 anos, por mais de uma hora. O jovem negro, órfão e dependente de álcool contou ao GLOBO como um comerciante de Portalegre, no interior do Rio Grande do Norte, o amarrou e o espancou.

A agressão teve cenas filmadas e se disseminou nas redes sociais. O empresário Alberan de Freitas Epifânio foi preso mas não ficou atrás das grades. No canto da sala de uma casa sem reboco, atrás do matadouro municipal de Riacho da Cruz, a pouco mais de 5km de Portalegre, Luciano teme novas agressões.

O quilombola conta que teve a camisa retirada para o espancamento, depois de ter atirado uma pedra na porta de madeira da loja de Alberan porque lhe negaram carne e cachaça de um churrasco que o acusado fazia com amigos.

— Ele ficou dando (golpes de corda) em mim. Me arrastou pela corda. Passei dois dias com o olho roxo. Foram chutes, socos, pisões nas costas — recorda Luciano, acrescentando que Alberan foi ajudado pelo servidor público André Barbosa.

Chute nos genitais

Segundo o quilombola, Barbosa o segurou e lhe deu ao menos um chute nos genitais. Alberan e o amigo tiveram a prisão preventiva decretada. Alberan foi detido na sexta-feira. André não foi localizado e chegou a ser considerado foragido. Mas o Ministério Público foi contrário à continuidade da prisão, alegando que os acusados têm bons antecedentes.

Alberan foi denunciado por outro episódio de racismo em junho de 2020, quando teria chamado Saulo Mikael Vieira Rocha de “nego safado”, “nego b…”, e dito “você é um nego b…” e “suma do meu comércio que nem de nego eu gosto”. Como ainda não há uma sentença sobre o caso, o comerciante, perante a Justiça, continua a ter bons antecedentes. Luciano recorda que, abordado por moradores que pediam a ele que parasse a surra, o comerciante ameaçava a todos, dizendo que, “se insisitissem, me soltaria e amarraria outra pessoa em meu lugar”.

O delegado responsável pelo caso, Cristiano Zadrozny, considera que Luciano foi torturado. Mas o advogado dos dois acusados, Genilson Pinheiro de Morais, disse que Alberan teria agido “no calor da emoção do momento” após ser ameaçado por Luciano:

— Alberan foi agredido com palavras por esse cidadão. Ele ameaçou dar cinco facadas em Alberan e está sendo processado por lesão corporal.

Luciano Simplício está desempregado e estudou até a 4ª série, mas não sabe ler nem escrever. Órfão, herdou a casa dos pais e conta com a ajuda financeira de uma irmã. Tem duas passagens pela polícia: uma por furto de motocicleta e outra por dirigir embriagado. Nasceu no Pêga, um dos quatro quilombos de Portalegre, município com a maior concentração destes povoados no estado, que tem 33 comunidades certificadas.

“Hora dos miseráveis”

Até meados dos anos 1970, brancos e pretos não frequentavam os mesmos espaços em Portalegre. Era comum que os negros só descessem dos quilombos para a cidade aos domingos. Nas festas no Mercado Público ou nos clubes, só podiam entrar depois que os brancos deixassem o local. Na saída das escolas, os filhos dos brancos eram liberados primeiro para que não se misturassem aos negros.

Maria de Fátima Gomes, a dona Daza, líder do Quilombo do Sobrado, diz que o racismo era naturalizado nos próprios quilombos, por falta de informação:

— A gente tinha em mente que o negro era sempre para sofrer perseguição. Imaginávamos que, se era branco, tínhamos que abrir espaço para passar, por exemplo. Os negros não podiam entrar nas festas enquanto os brancos estivessem lá. Os portões para nós só abriam depois das 2h da madrugada, a “hora dos miseráveis”. Era quando os brancos já tinham ido embora depois de curtir o sanfoneiro. Só ficavam os brancos passivos, que não queriam briga — rememora.

O Quilombo do Pêga foi fundado há mais de 100 anos. Atualmente, tem 60 famílias e mais de 200 pessoas. Boa parte das casas abriga duas famílias, com até nove moradores. A maioria trabalha no plantio de mandioca, feijão e milho. Os quilombos na região se formaram com a fuga de negros escravizados ou recém-libertos dos engenhos do Apodi e arredores. Como Portalegre fica em uma serra, era o esconderijo ideal. Atualmente, além do Sobrado e do Pêga há ainda no município, certificados, os quilombos de Lajes e Arrojado.

As ocupações das terras inabitadas pela comunidade negra ao longo de décadas não impediram o avanço da elite de Portalegre pelos sítios onde estão os quilombos. Não são raros os relatos de venda de terrenos em troca de farinha e cachaça:

— Daí vem muito dos problemas com o alcoolismo — diz o quilombola Aercio de Lima, hoje subcoordenador de Povos e Comunidades Tradicionais do Governo do Rio Grande do Norte.

 

Aercio nasceu no Quilombo Sobrado, vizinho do Pêgas. Aercio afirma que não consegue dormir desde que assistiu às imagens em que Luciano é agredido. Ele levou o caso para a Ouvidoria da Secretaria de Estado das Mulheres, da Juventude, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos:

— Isso não vai ficar impune — promete, acrescentando que se lembra de Luciano, antes da pandemia, puxando uma quadrilha junina. — É um menino muito bom. Gostava tanto de quadrilha que chegava a ir a pé da cidade até o quilombo.

Luciano é o caçula de cinco irmãos, três mulheres e dois homens. Os pais, Maria José Belmiro e Francisco Simplício, nasceram no Pêga e viviam em conflito. Quando conheceu Maria José, o pai de Luciano era viúvo e tinha 73 anos, e a mãe, 40 anos. A mãe tinha a saúde mental abalada e tendências suicidas. O pai morreu em 2007, tentando ser atendido em uma clínica. A mãe, pouco depois, em outra cidade, Pau dos Ferros, longe dos filhos.

Depois de morar um tempo com tios em Araguaçu, em Tocantins, Luciano voltou a Portalegre. A irmã conta que mandava dinheiro e conseguiu comprar moto e celular para Luciano que, ao regressar, vendeu os bens para comprar bebida.

Logo depois de ser entrevistado, Luciano foi mandado pela prefeitura de Portalegre para exames numa clínica de dependentes de álcool e outras drogas. O quilombola pediu para ser internado. Ele diz que sairá de Portalegre assim que tiver alta:

— Vou para a casa da minha tia no Tocantins — planeja o quilombola.

‘Saí de casa com 7 anos’

Luciano é o caçula de uma família de cinco irmãos, sendo três mulheres e dois homens. Os pais, Maria José Belmiro e Francisco Simplício, nasceram no Pêga e viviam em conflito. Quando conheceu Maria José, o pai de Luciano já era viúvo e tinha 73 anos de idade, frente aos 40 anos da companheira. As brigas do casal desintegraram a família. A mãe tinha a saúde mental abalada e tendências suicidas. Segunda mais nova da prole e espécie de tutora de Luciano, a empregada doméstica Conceição Belmiro deixou a família antes de completar 10 anos de idade:

— Saí de casa aos sete anos porque meus pais brigavam muito. Minha mãe tinha problemas psicológicos, tentou se matar algumas vezes — recorda-se a irmã de Luciano.

A saúde de Maria José piorou após um acidente doméstico, quando nem Conceição e Luciano haviam nascido. Como não havia água encanada no quilombo, as mulheres lavavam a roupa num local conhecido como Valero, próximo a um riacho. Um dia, Maria despencou de uma pedreira e os ferimentos a deixaram com uma deficiência nas pernas. A falta d’água e a distância até uma fonte mostram como o acesso aos serviços públicos nos quilombos de Portalegre sempre foi difícil para as comunidades. Em 2007, já com 82 anos, o pai de Luciano adoeceu e a família decidiu alugar uma casa no Carrapicho. Com a morte do patriarca, a família tentou acessar a aposentadoria de Francisco, mas esbarrou na burocracia ao descobrir que ele tinha dois registros de nascimento. Foram três anos com o processo correndo na Justiça até que o dinheiro fosse liberado. Nesse período, a saúde mental de Maria José piorou ainda mais e os problemas de convivência entre os irmãos aumentaram.

Uma irmã de Maria José assumiu as finanças e, assim que a verba saiu, comprou a casa para os sobrinhos no valor de R$ 10 mil, o que não significou estabilidade financeira e emocional.

Os problemas do irmão mais velho de Luciano com o alcoolismo se agravaram ao ponto de Maria José deixar os filhos no Carrapicho para morar com a irmã, em Pau dos Ferros, município polo no Alto Oeste. Foram apenas seis meses até a morte da mãe, longe dos filhos, em decorrência de uma infecção no intestino:

— Depois que meus pais morreram, Luciano passou a dizer que está sozinho no mundo. Mas não está, tem a mim — responde Conceição, espécie de tutora e conselheira do irmão, que herdou dois salários mínimos de pensão dos pais até completar 21 anos.

Depois de morar um tempo com tios no município de Araguaçu, em Tocantins, ele teria voltado para Portalegre por pressão dos amigos. De acordo com a irmã, ela mandava R$ 600 para ele todo o mês e, economizando, conseguiu comprar moto e celular para Luciano que, ao regressar, vendeu tudo para comprar bebida. Após a morte da mãe, ele ainda chegou a trabalhar em duas lojas do comércio local. Rosa Belmiro, prima de Maria José e uma das lideranças do Pêga, lembra que era uma criança típica da região:

— Soltava peão, caçava passarinho com baladeira, jogava bola, como todas as crianças do quilombo. A gente gosta muito dele – diz, e se emociona ao falar do vídeo que registrou as agressões. — Eu vi só uma vez e não quis ver mais. Fiquei muito transtornada. A gente conhece o rapaz, conhece o Alberan também. É muito forte. Todo mundo gosta do Luciano aqui. E todo mundo ficou chocado. Ninguém esperava, ele é da família, do nosso sangue. Só a justiça de Deus mesmo. E tem muita gente abaixo de Deus torcendo por ele.

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Reportagem especial

Canal Bruno Barreto