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Entrevista

“Na verdade, é uma abolição de brancos para brancos”, avalia historiador sobre a construção da memória do 30 de setembro em Mossoró

O historiador Marcílio Falcão, atualmente diretor da Faculdade de Filosofia e Ciência Sociais da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (FAFIC/UERN), tem dedicado boa parte de sua vida acadêmica para compreender a construção da memória coletiva em Mossoró onde se insere a abolição da escravidão na segunda cidade do Rio Grande do Norte cinco anos antes da Lei Área, em 1883. Nesta entrevista exclusiva ao Blog do Barreto ele destrincha como se deu o processo e despe as fantasias em torno dos fatos ocorridos há exatos 140 anos sem desmerecer a importância dos abolicionistas.

Confira.

 

 

Blog do Barreto: Na sua avaliação por que há ausência de protagonismo negro no processo de abolição da escravidão em Mossoró?

Marcílio Falcão: Bom, Bruno, é o seguinte o protagonismo negro seria muito difícil na narrativa que foi produzida sobre o 30 de setembro, você encontrar os escravizados ou ex-escravizados presentes nessa narrativa porque na verdade o 30 de setembro foi uma grande festa, foi uma grande festa pensada dentro de uma logística do Ceará e de parte do Pernambuco. Aqui no caso, a abolição foi pensada a partir da lógica da sociedade abolicionista cearense. Antes de acontecer o evento aqui os jornais de Fortaleza já divulgavam, então era algo que não foi algo que não foi imprevisível. Era previsto. Na verdade, ia ser dias antes, ia ser dia 28 de setembro. Aí foi 30 porque houve ali um arrozinho ali. Mas na verdade é uma abolição de brancos para brancos. Dentro de uma lógica da civilização e do progresso. Então a presença daqueles que eram os mais interessados na libertação nas narrativas não vão aparecer.

Qual o papel de Rafael Mossoroense da Glória?

MF: No caso do Rafael Mossoró da Glória, eu não encontro, pelo menos nos arquivos que eu fui, registros de sua existência. A minha leitura está mais voltada para a ideia de uma figura não mitológica no sentido mas de uma figura memorável, provavelmente construída, porque veja, é o único que aparece. Me aponte, os libertos que aparecem nomes? Você não encontra, você encontra nos inventários, você encontra em algumas cartas de alforria, mas nas festas, assim, só ele exatamente aparece. É numa festa de branco para branco com dia marcado, com hora marcada e, principalmente, voltada pra essa coisa de dizer que Mossoró libertou os seus escravizados que hoje cai-se na tese de dizer que a libertação dos escravos de Mossoró não é a abolição porque não tem lei, né? Não poderia fazer essa abolição, a libertação dos escravos em Mossoró ela é muito mais uma logística voltada para destravar, como eu disse na tese, um problema do Ceará sim porque o Ceará era província que estava fazendo liberdade e estava pressionado os estados abolicionistas. Estados totalmente escravocratas. Quando eu peguei os relatórios de presidente de província do Ceará foi que eu percebi? Aracati tinha muito mais escravo do que Mossoró e não estava fazendo o que estava acontecendo em Fortaleza, Redenção… quando você pega a lista de escravizados no Vale do Jaguaribe você diz nossa não está acontecendo o que está acontecendo em Fortaleza. Então aquela tese do caso que Mossoró libertou os escravizados porque tinham poucos também é válida, mas existem outras explicações.

BB: Essa tese é tão exagerada que tem gente que diz ‘ah tinha dez escravizados não era eram mais de cem.

MF: Mais de cem Mossoró nunca chegou a ter 500, 600 escravizados pelos relatórios. Pode até ter chegado. Porque nós não tivemos acesso ao livro de matrícula. Mas isso daí é o 30 de setembro. Não existe documento oficial sobre 30 de setembro. A ata foi perdida. O que existe sobre 30 de setembro são os relatos do jornal O Libertador que está lá na Biblioteca Menezes Pimentel em Fortaleza, digitalizados. E aquilo que a partir 1948 o Vingt-un com o grupo dele fez e aquilo que existe a partir de 1902 quando o João da Escócia, ele retoma o jornal O Mossoroense e começa a reproduzir ou, a comemorar, a narrativa sobre o 30 de setembro. Então, de fato, o Jornal Mossoroense, se torna um guardião da história dessa desse 30 de setembro, mas em cima, em certa medida, das narrativas do jornal O Libertador.

BB: Que mensagem fica para a sociedade essa sensação de que a abolição dos escravos foi uma mera concessão dos brancos, como se não houvesse resistência?

MF: Bom entender também não é aquela coisa de dizer que o 30 de setembro em Mossoró é uma coisa isolada, não, é como conectado. A década de 1870 e setenta, de 1880 são décadas muito agitadas. No Rio de Janeiro, São Paulo, os abolicionistas faziam festas nos teatros, se cotizavam para libertar, aqui também aconteceu numa menor proporção. Na verdade, elite mossoroense estava ligada em determinados momentos a esses grupos, a esses pensamentos. E o que que ocorre? Ocorre que há um trânsito de ideias, esses homens acreditavam que estavam fazendo um processo importante e na verdade estavam. Eu não tiro o brilho da loja Maçônica, não tira o brilho do Romualdo, do Alcebíades, Graco… não se pode tirar o brilho desses homens porque eles estavam imbuídos de um espírito pautado na civilização e no progresso, mas o que estava em jogo aí era a ideia do trabalho livre. O que estava em jogo era a transição entre um modelo de trabalho compulsório e o trabalho livre, muito mais associado e assentado ao que viria a ser a república. Então, eu acho que esses homens independente do que eles estavam, o lugar que eles ocupavam, eles fizeram um exercício por cima, uma vez que nós sabemos que os grandes interessados eram os que estavam embaixo e essas pessoas tem agência. O grande problema do 30 de setembro e das comemorações do 30 de setembro é manter a reprodução de uma memória dos abolicionistas e na maioria das vezes esquecer que os mais interessados eram aqueles que estavam lá. Um exemplo em 1948, Vingt e Ving-un Rosado e Laura da Escócia, procuraram os descendentes desses escravizados, aqueles que estavam no livro de tom de batismo da Paróquia de Santa Luzia, as condições em que essas pessoas estavam eram miseráveis. Então não venha com essa história de dizer que a Mossoró não foi a primeira a libertar, mas ajudou os escravizados. Foi o mesmo processo. Terminado o processo de liberdade, terminado o processo de abolição os escravizados não foram inseridos dentro de uma sociedade que se dizia democrática e libertária, não foram. Eles ficaram a margem, né? E as condições, é só você ver as fotos que existem no museu, para perceber as condições sociais em que essas pessoas se encontravam, mas antes de uma agência, né? Sim. O importante, Bruno, é a agência dessas pessoas. Quando você encontra, estão caçando, o termo terrível, estão escravos fugitivos, a fuga é uma forma de resistência, né? E isso nós da história temos muito interesse, mais importante do que certa medida o exercício do Romualdo e do grupo dele de dizer ‘nós vamos te libertar comprando’ porque não foi uma libertação daquela dizer uma libertação de rompimento ‘oh acabou!’ não porque para o dono do escravo ele era fortuna, que tinha sido comprado e era vendido. Houve uma negociação, houve um uma certa negociação da realidade ou por cota ou por munimição, não foi aquela ruptura total que a narrativa diz.

BB: Não houve uma lei.

MF: Não. não tem lei. E existe ainda uma outra dúvida. Um exemplo, que não está claro nem nos jornais, né? E nem naquela ata: como foi que eles juntaram determinados recursos praquele momento. Como foi juntado? Porque veja: os documentos não deixam claro se eles disseram “olha todos aqui estão livres” e o proprietário abre aspas que tinha sido coisificado: “você perdeu”. Porque o que estava por trás da abolição da escravidão no Brasil era que a fortuna de muitas pessoas estava nos escravos. O próprio governo imperial criou um fundo que era o fundo de munimição, que também chegavam em Mossoró, para dizer “olha vamos ressarcir ali o proprietário daquela mão de obra porque se ele perder, vai perder a fortuna dele”. Então isso também estava em jogo. E aqui a documentação não deixa claro. Se foi aquela coisa totalmente abrupta. O que aparece e raramente na documentação dos caras se juntavam, se cotizavam e faziam a liberdade. Então cai em certa medida aquela coisa da tensão. Houve tensão, claro. Mas em certa medida cai.

BB: Qual era o perfil dos escravos e escravas de Mossoró? Era mais urbano ou rural?

MF: Olha, pela própria estrutura da economia mossoroense, você tira pelo Casario. É uma sociedade de comércio, então es esses escravizados, de fato eram mais urbanos. E havia um trânsito muito grande. Mossoró, como ponto de comércio, ou não havia interesse de um proprietário ficar com o com aquela mão de obra ali. Aquela mão de obra estava sendo rentável porque ela entrou dentro do circuito do comércio interprovincial, então chegar aqui e repassar era mais importante. Agora tem uma coisa, nós fizemos um levantamento sobre as famílias que existiam aqui com o número de escravos, então de famílias conhecidas que, é complicado você dizer o nome delas, mas pelos relatórios você percebe que eram famílias que tinham um número de escravos, um exemplo, no máximo cheguei a encontrar aqui 20, 25, 30 escravos dentro de um núcleo familiar. Isso quer dizer que não tinha muitos escravos, mas também não quer dizer que foi por isso que a abolição foi feita.

Celebrações do 30 de setembro visavam fazer a libertação dos escravos em Mossoró virar um tema nacional (Foto: Manuelito/acervo Relembrando Mossoró)

BB: Na sua tese é registrada uma tensão entre abolicionistas e autoridades jurídicas. Isso chegou a atrapalhar o processo?

MF: Bom, é o seguinte, eu achei muito interessante quando eu pesquisei no jornal O Libertador que existiam pessoas de Fortaleza aqui, pelo menos o jornal deixa claro, observando a ação desses homens que estavam organizando esse processo. E tem uma matéria chamada “O Último dos Gracos”. E nessa matéria ele diz que o juiz de Mossoró não era de fato um homem imbuído de espírito libertário ,que era o Alcebíades Dracon, só que o jornal volta pra lá e diz também que o presidente de renda de lá, que eu esqueço o nome dele, que ele também não era. Uma semana depois o jornal publica em Fortaleza e diz que não, que errou, que o juiz Alcebíades Dracon é, de fato, um homem imbuído, mas que o presidente das rendas não era. Então veja você tem essa tensão, quando o grupo de Vingt-um Rosado reorganiza a memória, ele, Nonato e outros mais, eles começam a colocar abolicionistas que não estavam nem vivos ou que haviam passado por um processo de tensão dentro do próprio processo. Exemplo, Jeremias da Rocha Nogueira, quando você pega a visão de liberdade de Jeremias da Roça de Louveira, é uma coisa tão ilustrada, mas tão ilustrada que quando você vai olhar você vê, o republicanismo dele rompe com Rosas, com Uruguai e rompe com a Argentina, é muito mais um republicanismo ilustrado francês. Obviamente que era, dentro daquelas palavras, um homem que defendia uma determinada liberdade, mas não participou do processo. Não participou. A década de 1870, principalmente no período que ele viveu, esse processo de discussão sobre abolição ainda estava muito ligado ao eixo Rio São Paulo e ao Ceará. Mas aí eles vão construindo o próprio castelo, os próprios memoriais. O livro “História Social da Abolição de Mossoró” é um livro de memória. Ele juntou documentos e inseriu os novos, que eram eles. Então pra mim a abolição de Mossoró, ela é extremamente importante pra história da libertação dos escravizados no Rio Grande do Norte, é só você olhar quando o Natal fez. É muito importante! Mossoró era uma das regiões aqui do Oeste da Província que tinha o menor número de escravos, mas era a principal cidade. Então isso chama atenção de Fortaleza, isso chama a atenção de Pernambuco e é um ponto estratégico para destravar uma área extremamente importante, que é a Ribeira do Jaguaribe porque os abolicionistas estavam tendo uma certa dificuldade lá.

BB: Por causa de comércio?

MF: Por causa de comércio e por causa da própria pressão dos senhores de escravos, dos aristocratas em não libertar. Um processo grande em Fortaleza, ali naquela região, e um processo muito fraco, muito pequeno aqui. Isso não quer dizer que Mossoró não tem o seu brilho, tem! Qual foi o grande sonho da família, do grupo de memorialistas e historiógrafos Rosados? Era colocar a história do 30 de setembro da abolição dos escravos de Mossoró no cenário nacional e em certa medida eles não conseguiram. Vingt-un escreve, já nos seus últimos escritos, dizendo que por que que não chegou a tanto grandes historiadores não olharam? Para ter certeza o 30 de setembro no Rio de Janeiro só teve uma notinha. Uma notinha. Para cá é importante, óbvio. Mas dentro daquela dimensão que estava ocorrendo no Brasil, também é importante, mas é apenas uma parte. Essa ideia do pioneirismo é muito mais uma construção… É como o próprio professor Emanuel comentou o pioneirismo ele existe, mas ele não chega em outras esferas, ele é muito mais voltado pra cá pra essa província e pra relação com o Ceará, o Ceará não, o Ceará, eles conseguiram, de fato, pelo número de escravizados, pelas estratégias, mas que também é um processo que não sai dentro da linha dos brancos para os brancos e voltado para a transição do trabalho escravo ao trabalho livre.

BB: Qual o papel da imprensa local neste processo?

MF: Ah foi fundamental. A imprensa libertadora, a imprensa abolicionista, ela tem uma peculiaridade muito grande porque ela possuía um tipo de escrita muito específica. Ela era antenada com outros lugares. Um abolicionista como o Joaquim Nabuco, achava que a abolição não deveria sair da senzala. É até um absurdo você dizer isso, mas pra ele a abolição tinha que ser no parlamento, porque independente de qualquer coisa a agência do escravizado atemorizava a elite.

BB: Medo do que aconteceu no Haiti.

MF: Sim, medo do Haiti. O Haiti é uma revolução fantástica, interessantíssima, que foi extremamente destruída por forças inglesas e tudo mais. Mas, e tem um livro muito bonito sobre isso, que é “Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue”. Então a imprensa abolicionista ela tem um papel de fazer circular. De fazer circular, de fazer com que essas elites, que liam esses jornais, que investiam nesses jornais, abraçassem cada vez mais a causa do abolicionismo. Ao mesmo tempo a imprensa abolicionista ela travava lutas diárias. Por quê? Porque não era fácil ser jornalista, homens de imprensa, dentro de um contexto onde a fortuna de muita gente estava nos escravos. Então se você pega as narrativas de Jornal Libertador você vai ver a delicadeza, assim que eu quero dizer, a forma de escrita daqueles homens, era para um mundo diferente. Mas que mundo é esse? É o mundo do trabalho livre. É o mundo onde as pessoas tivessem agência ao mesmo tempo as grandes propostas dos abolicionistas no pós-abolição, que sai de muita gente de dentro da imprensa, não se efetivou porque a imprensa tinha força em fazer circular, mas quem decidia os mecanismos de efetivação da cidadania, e de introdução do negro nessa sociedade de classes não era imprensa.

BB: Sua tese também mostra uma grande influência cearense no processo abolicionista em Mossoró. O que pesou para isso?

 

MF: A logística, O papel de Almino Afonso lá. Almio Afonso foi um cara que foi perseguido. Ele perdeu o a função dele, foi pro Ceará e lá ele consegue montar toda a estrutura. Uma prova disso, é que quando o Romualdo vem pra cá, ele está vindo do Ceará. E outra coisa interessante na abolição, na libertação aqui é que só aparece uma mulher, a Amélia, que é a esposa do cara, que é o intendente. Então, a o Ceará, ele tem um papel fundamental de logística, de organização da narrativa jornalística, de mostrar para a população cearense e pra outros lugares que o jornal circulava, que Mossoró estava abraçando-as dentro do Rio Grande do Norte, Mossoró estava abraçando essa causa e que o Ceará fez simplesmente uma coisa: “ó, vamos lá, vamos jogar o fogo ali no palheiro”. E se você olhar todo o processo é isso: Mossoró, Caicó, Assu, até chegar em Natal, onde estava a maior quantidade,e e áreas circunvizinhas, onde estava a maior quantidade de escravizados. Pra mim a libertação dos escravos em Mossoró é fundamental para se constituir um calendário cívico nessa cidade. Se você parar pra pensar, Bruno, se comemora a emancipação, se comemora isso, mas o grupo de Vingt-un Rosado criou um calendário cívico como uma festa cívica e pública só se comemora 30 de setembro, 13 de junho, aí vem o voto feminino, vem as listas, né? É como se o passado da cidade só fosse isso, então veja: no momento em que esses homens estão tentando colocar o 30 de setembro no cenário nacional eles também estão construindo uma cultura cívica local e isso é muito interessante. Quando você escuta que a prefeitura, a Câmara Municipal, a própria família Rosado, a família de Escócia, fazendo um esforço gigantesco pra manter essa ideia de pioneirismo é de fato uma tentativa de manter uma memória que foi construída a partir de 1902 pelo jornal, depois abraçada como projeto pelos Rosados quando assumem 1948 e essa tentativa se configura como um uma comemoração cívica, cristalizada no museu, cristalizada no memorial cristalizada no cemitério, cristalizada em praças, em ruas e tudo mais. Eis o trabalho da memória.

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Reportagem especial

Abolição da escravidão em Mossoró completa 140 anos mantendo o protagonismo negro apagado da história

Por Bruno Barreto

Editor do Blog

No dia 30 de setembro de 1883 membros da Loja Maçônica 24 de Junho unidos aos integrantes da Sociedade Libertadora Mossoroense se reuniram na Câmara Municipal de Mossoró para libertar os últimos escravos da cidade.

É assim que a história vem sendo contada há exatos 140 anos e festejada com o feriado instituído em 1913.

A história é simples, de fácil assimilação e tão distorcida que muita gente acredita até hoje que Mossoró foi a primeira cidade do Brasil a libertar os escravos. Na verdade, foi a 10ª, o pioneirismo cabe a Redenção (CE) em 1º de janeiro de 1883. Há até quem acredite que foi por força de lei, também não foi. Na verdade, a elite local, influenciada pelos movimentos abolicionistas do Ceará, juntou fundos para comprar a liberdade dos escravos, sem causar ônus aos senhores. O movimento foi rápido e durou entre 6 de janeiro e 30 de setembro do longínquo ano de 1883.

Foi, como afirma o professor Dr. Marcílio Falcão, um movimento de brancos para brancos. Os negros foram libertados e abandonados como viria acontecer no restante do país após 13 de maio de 1888.

O professor Emanoel Pereira Braz é um dos pioneiros na contestação ao idealismo em torno do 30 de setembro. No livro “Abolição da Escravidão em Mossoró: pioneirismo ou manipulação do fato” ele mostra como vários aspectos dessa história foram omitidos pelos memorialistas oficiais de Mossoró, que ignoraram os interesses econômicos e como as celebrações da “Mossoró Libertária” foi fabricada, o que não desmerece o papel dos abolicionistas da cidade.

Por outro lado, é preciso compreender o papel econômico de Mossoró nos anos 1880, em que a escravidão tinha um peso muito menor do que em outras partes do Brasil. Na hoje “Capital do Oeste Potiguar”, a economia girava em torno do comércio, cultura algodoeira e criação de gado. Essas três atividades careciam de pouca mão-de-obra escrava. A escravidão em Mossoró tinha um perfil mais urbano devido as características da economia local.

O escravo era tratado mais como um “investimento”, sobretudo, para recuperar o caixa em períodos de seca prolongada quando estes eram levados para serem vendidos no Porto de Fortaleza de onde seriam enviados para as lavouras do Café em São Paulo. “As condições que propiciaram o abolicionismo em Mossoró foram bem específicas e diferenciadas daquelas que ocorreram em outras regiões do Brasil”, afirma Emanuel na página 47 do livro.

Após a seca de 1877, a população escrava de Mossoró que tinha chegado, segundo Câmara Cascudo (Notas e Documentos para a História de Mossoró) a 267 escravos em maio de 1873 tinha caído para 162 (72 homens e 90 mulheres) em 1881 conforme números do professor Marcílio Falcão na tese “No labirinto da memória: fabricação e uso político do passado de Mossoró pelas famílias Escóssia e Rosado (1902-2002)”.

Anuncio de escravo fugitivo no Jornal O Mossoroense em 1875, a fuga era uma forma de resistência (Imagem: reprodução)

O trabalho ainda mostra que dois meses antes da abolição, havia 145 escravos registrados na cidade. Vale lembrar que em 10 de junho daquele ano 40 escravos já tinham sido libertados em Mossoró. Os dois últimos escravos inventariados em Mossoró foram em 17 de 1882, conforme registro de Maria Patrícia de Souza no artigo “Inventários como Forma de Pesquisa: a questão escrava em Mossoró. 1833-1882” publicado no livro “História Social e Cultural de Mossoró: métodos e possibilidades”.

A partir de 6 de janeiro, vários bailes foram realizados para arrecadar fundos e libertar escravos em Mossoró, o que foi diminuindo paulatinamente a quantidade de cativos na cidade até o 30 de setembro de 1883.

O cenário era amplamente favorável porque, como em outras partes do país, o trabalho escravo estava em declínio e havia uma preocupação dos proprietários em recuperar o dinheiro investido por meio de indenizações em caso de abolição via lei. O quadro se tornava ainda mais preocupante com o fechamento da rota do tráfico interprovincial para o Sul do Império através do Porto de Fortaleza, o que tornava a inviável o investimento na escravidão como alternativa para suprir eventuais prejuízos em períodos de seca.

O bloqueio é resultado da luta liderada pelo ex-escravo e jangadeiro Francisco José do Nascimento, que entraria para história como o “Dragão do Mar”, pela luta contra o tráfico negreiro no Ceará. Essa resistência teve influência direta no processo abolicionista em Mossoró.

Grupos abolicionistas se formavam para comprar alforrias como a Sociedade Libertadora Mossoroense que viria a protagonizar o 30 de setembro.

Em conversa com o Blog do Barreto o professor Marcílio Falcão explica que a pressão vinha do Ceará, onde Mossoró mantinha fortes laços comerciais. “A abolição foi pensada a partir da lógica da sociedade abolicionista cearense. Antes de acontecer o evento aqui os jornais de Fortaleza já divulgavam, então era algo que não foi algo que não foi imprevisível. Era previsto. Na verdade, ia ser dias antes, ia ser dia 28 de setembro. Aí foi 30 porque houve ali um arrozinho ali. Mas na verdade é uma abolição de brancos para brancos”, avalia.

A pergunta que fica em aberto é: diante desse contexto econômico onde está o papel dos negros de Mossoró na resistência à escravidão?

O estudo mais recente é a monografia “Dia Branco: comemoracionismo e apagamento racial no 30 de setembro em Mossoró (1902 – 1983)” de Kycya Oliveira Silva, recentemente defendida no curso de história da UERN. O trabalho mostra que a memória do 30 de setembro foi construída a partir do apagamento da contemporaneidade da atuação de libertos no Clube Spartacus (que atuava para proteger escravos fugitivos) e da Sociedade Libertadora Mossoroense.

Os memorialistas adotaram a versão de que o Clube só passou a atuar após o 30 de setembro, mas Kycya resgata um discurso de Nestor Lima de 1932 publicado como livro em 1938, que indica que as entidades coexistiram e trabalharam em conjunto. “Ademais, vale salientar que, para Lima, embora os grupos agissem juntamente, suas funções eram distintas: a Libertadora Mossoroense era responsável por negociar as alforrias por meios legais e os Spartacus entravam em ação onde o dinheiro não bastava. Lima narra vários momentos em que os espartanos estavam resgatando escravizados e em outro momento tratando de transportá-los para o Ceará – onde os movimentos abolicionistas eram mais fortalecidos e organizados. Portanto, este capítulo deve tratar dos excluídos, mas não tem por pretensão – e não poderia – preencher a enorme lacuna deixada na história de Mossoró”, afirma.

Ainda assim a autora lembra na monografia que pouco ficou registrado da resistência negra ao regime escravocrata em Mossoró.

Outro aspecto discutido no trabalho é a hamornização social a partir da obra de Câmara Cascudo em que os brancos eram tratados como heróis da liberdade negra. “Na narrativa a respeito do 30 de setembro de 1883, por exemplo, Luís da Câmara Cascudo mantém sua escrita voltada à elite branca que compunha os abolicionistas em Mossoró. Em ocasião do capítulo X da obra, ‘Notas e Documentos para a História de Mossoró’, Cascudo discorre a respeito da criação do Clube dos Spartacus, como discutido em outro momento deste capítulo, tal clube era constituído por ex-escravizados (esse ponto parece ser um consenso entre a maioria dos pesquisadores), mas as suas ressalvas se direcionam ao fato de Rafael Mossoroense da Glória, ex-escravizado, estava na liderança desse clube e destaca em narrativa inclinada ao comemoracionismo a ação altruísta desprendido “capitão Alexandre Soares do Couto”, que aceitou o cargo de secretário de Rafael”, avalia.

Ela também analisa o papel do memorialista Raimundo Nonato da Silva em a História Social da Abolição em Mossoró em que ele constrói um cenário de harmonização social minimizando o papel do escravizado colocando-o a partir do perfil econômico da cidade mais como um capataz do senhor do que como um cativo. Outro aspecto é o fato de que Mossoró teria poucos escravos e que isso colaboraria para diminuir o peso da luta dos negros. Mesmo assim, para ela a obra se diferencia do trabalho de Cascudo por apontar a participação dos Negros no processo. “A pouca quantidade de escravizados no município de maneira alguma representa uma retirada da condição de cativo dessa população marginalizada, tanto que se for analisada de maneira cirúrgica a escrita de Raimundo Nonato a respeito, por exemplo, do Clube dos Espartacos se torna inteligível que existia uma consciência negros sobre a escravidão e mesmo a emancipação dos escravizados em Mossoró representasse uma quantidade pequena (86 escravizados) se comparada ao cenário nacional de uma nação que por cerca de 300 anos fez a manutenção do sistema escravista, as movimentações abolicionistas do município repercutiu em outras localidades, de modo que existe uma concordância entre a narrativa de Nestor Lima Câmara Cascudo e Raimundo Nonato da passagem de escravizados por Mossoró com destino ao Ceará que, por ser de fato pioneiro nos movimentos abolicionistas, era destino de muitos escravizados conseguiam fugir de seu cativeiro (NONATO, 1983)”, avalia.

A abolição da escravidão em Mossoró não foi um gesto altruísta, mas fruto de uma conjuntura econômica em que não compensava mais para os senhores manter seus cativos e estes por sua vez precisavam recuperar o dinheiro investido. Nada disso, tira o brilho da luta dos abolicionistas, mas não a ponto de ignorar que o 30 de setembro de 1883 de Mossoró antecipou o 13 de maio de 1888 no Brasil com os negros libertos abandonados à marginalidade e a fome. O próprio caráter festivo que se seguiu nos 140 anos seguintes manteve as manifestações dos brancos e deixou no esquecimento o Baile dos Negros, que era realizado na Câmara Municipal.

Há muito o que ser pesquisado sobre o assunto para o aprofundamento em fontes documentais para encontrar mais dados sobre a participação negra no processo do 30 de setembro e a maior qualificação do curso de história da UERN, que agora conta com mais mestres e doutores, pode mais a frente trazer novos elementos sobre a resistência negra na Mossoró pré-30 de setembro de 1883.

Rafael Mossoroense da Glória é único personagem do 30 de setembro sem registro fotográfico (imagem: reprodução)

A figura de Rafael Mossoroense da Glória, o único negro associado ao 30 de setembro, é permeada de dúvidas sobre o verdadeira atuação pela libertação dos escravos

Em todo processo de narrativa memorialística em torno do 30 de setembro só um negro ficou com o nome registrado nos anais: Rafael Mossoroense da Glória, aquele que Raimundo Nonato em História Social da Abolição classifica como “Negro Liberto. Arrancado das senzalas para a cidadania”.

Repare que no próprio relato, existe uma descrição de passividade em torno da imagem de Rafael. Não há sinal de que ele tenha lutado pela liberdade, mas de que alguma figura oculta (provavelmente algum abolicionista branco) o libertou de forma altruísta.

Consta nos registros, que Rafael teria sido eleito presidente do Clube Spartacus (numa referência ao líder da rebelião de escravos brancos na Roma Antiga) logo após o 30 de setembro.

Segundo Kycya Oliveira, o Clube Spartacus, se inspira no Clube do Cupim do Ceará, cujas características seriam de amparo social aos escravos fugitivos e não de enfrentamento físico.

Rafael é o único, a não ter fotografia nos registros do livro História Social da Abolição. “A representação de Rafael Mossoroense da Glória, presente na sessão intitulada ‘Próceres76 da Abolição’ na obra de Nonato (1983), também denuncia a disparidade socio-racial. Nessa sessão, são homenageadas 39 pessoas que estavam envolvidos nos movimentos abolicionistas mossoroenses que resultaram no 30 de setembro de 1883, entretanto, com exceção de Rafael Mossoroense da Glória que foi representado de modo rudimentar que não se pode perceber os traços de sua face, todos os outros abolicionistas entre homens e mulheres não foram representados, mas, sim, apresentados através de suas fotografias”, frisa.

Nos capítulos 28 ao 30 são feitos registros biográficos dos abolicionistas ficando reservado a Rafael Mossoroense da Glória apenas um curto espaço.

O professor Marcílio Falcão admite ter dúvidas se a figura de Rafael Mossoroense sobre o verdadeiro papel do personagem. “No caso do Rafael Mossoró da Glória, eu não encontro, pelo menos nos arquivos que eu fui, registros de sua existência. A minha leitura está mais voltada para a ideia de uma figura não mitológica, no sentido, mas de uma figura memorável, provavelmente construída, porque veja, é o único que aparece. Me aponte, os libertos que aparecem nomes? Você não encontra, você encontra nos inventários, você encontra em algumas cartas de alforria, mas nas festas, assim, só ele exatamente aparece”, avalia.

No livro “A Abolição da Escravidão em Mossoró: pioneirismo ou manipulação do fato”, Emanuel Pereira Braz avalia que a figura de Rafael Mossoroense da Glória foi construída para representar uma participação mais efetiva dos mossoroenses e forjar um equivalente potiguar ao ícone cearense Francisco José do Nascimento, o “Dragão do Mar”. “A diferença entre esses dois personagens está no contexto de suas participações. Atribui-se a Francisco José do Nascimento coragem e bravura pela iniciativa de acabar com o transporte de escravos, o que causou a interrupção do tráfico interno de escravos no Norte para a região dos cafezais. Este ato projetou este jangadeiro nacionalmente e o destacou como representante principal da luta pela abolição da escravidão no Ceará. Quanto a participação de Rafael Mossoroense no Clube Spartacus, não identificamos nenhuma ação que tenha produzido efeitos sociais capazes de destacá-lo diante do coletivo que atuou”, argumenta.

O verdadeiro papel de Rafael Mossoroense da Glória no 30 de setembro é uma pergunta em aberto na historiografia potiguar.

Celebrações do 30 de setembro são construções das elites locais (Foto: Manuelito/Reprodução/Relembrando Mossoró)

Memória do 30 de setembro é uma construção das elites locais

O professor Emanuel Pereira Braz em “Abolição da Escravidão em Mossoró: pioneirismo ou manipulação do fato” trouxe luz a questão de como a imagem do 30 de setembro foi construída no imaginário local.

No final dos anos1990, Braz resgata todo o papel da família Escóssia através do Jornal O Mossoroense na construção do imaginário de heroísmo da elite local na libertação dos escravos em um processo que teve altos e baixos ao longo do Século XX, mas que ganhou muita força década de 1950 quando os Rosados ascenderam ao poder e passaram a se apropriar do ideal de liberdade de do 30 de setembro.

Ele afirma que administração de Vingt Rosado (1952/56) intensificou o reforço da identidade de Mossoró com o 30 de setembro, chegando a colocar na frente das casas onde viveram os abolicionistas placas com os seguintes dizeres: “esta casa foi vivenda de um abolicionsta”. “Somente durante o decorrer da década de cinquenta foi que esta realidade começou a mudar. Consideramos como causa principal das mudanças as novas formas de valorização dos personagens relacionados com a abolição da escravidão em Mossoró, o que paulatinamente atraiu a comunidade local a participar das comemorações”, afirma

Braz reforça em toda sua obra que o Jornal O Mossoroense foi fundamental como aparato ideológico na formação do imaginário do 30 de setembro.

Em sua monografia, Kycya Oliveira também resgata o papel do jornal na construção de memória idealizada do 30 de setembro a partir da segunda fase do jornal, iniciada no início do Século XX sob liderança de João da Escóssia com o objetivo de incluir a própria família no processo abolicionista. “Ao sacralizar e cristalizar na memória coletiva os abolicionistas pertencentes a elite mossoroense da época, a narrativa do O Mossoroense alcançou o seu objetivo de pôr a família Escóssia na história abolicionista por seu passado liberal e maçom. Tanto que no phanteom dos abolicionistas, presente no museu Lauro da Escóssia, consta o nome de Jeremias da Rocha Nogueira, mesmo não tendo fontes históricas que sustentem a versão de que o patriarca da família Escóssia teria participado ativamente do processo de emancipação dos escravizados, como também contribuiu de modo esmagador para o apagamento do sujeito negro escravizado (ou liberto) da sua própria história de emancipação”, afirma a pesquisadora.

O papel do jornal continuou mesmo sob o domínio dos Rosados a partir de 1975.

As elites também se apoderaram do 30 de setembro por meio de construção de monumentos como Estátua da Liberdade na Praça da Redenção, instituição do feriado em 1913, nomeação de bairros (Abolição, Redenção, Liberdade, 30 de setembro), condução do papel do Museu Lauro da Escóssia (inclusive o panteão dos abolicionistas) e outros espaços até mesmo privados, como Shopping Liberdade.

O objetivo era projetar Mossoró no cenário nacional a partir do pioneirismo abolicionista, mas a estratégia não vingou. “O 30 de setembro no Rio de Janeiro só teve uma notinha. Uma notinha. Para cá é importante, óbvio. Mas dentro daquela dimensão que estava ocorrendo no Brasil, também é importante, mas é apenas uma parte. Essa ideia do pioneirismo é muito mais uma construção”, avalia Marcílio Falcão.

Obras consultadas

“Dia Branco: comemoracionismo e apagamento racial no 30 de setembro em Mossoró (1902 – 1983)” de Kycya Oliveira Silva

“História Social da Abolição em Mossoró”: Raimundo Nonato da Silva;

““Abolição da Escravidão em Mossoró: pioneirismo ou manipulação do fato”: Emanuel Pereira Braz;

“No labirinto da memória: fabricação e uso político do passado de Mossoró pelas famílias Escóssia e Rosado (1902-2002)”: Marcílio Falcão;

Notas e Documentos para a História de Mossoró: Câmara Cascudo;

História Social e História Cultural de Mossoró: métodos e possibilidades: Francisco Linhares Fonteles Neto, Francisco Fabiano de Freitas Mendes e Lindercy Francisco Tomé de Souza Lins (organizadores);

Evolução Econômica do Rio Grande do Norte (do século XVI ao século XX): Paulo Pereira dos Santos;

Breve Notícia sobre a Província do Rio Grande do Norte: Manoel Ferreira Nobre.