Por Marcelo Alves Dias de Souza*
O conto/novela “Bola de Sebo” (“Boule de Suif”, 1880), do francês Guy de Maupassant (1850-1893), é considerado uma verdadeira obra-prima. Para alguns, o melhor conto já escrito. Está entre os melhores, seguramente. E o seu autor é, na companhia de Edgar Allan Poe (1809-1849), Anton Tchekhov (1860-1904), O. Henry (1862-1910) e Jorge Luis Borges (1899-1986), para citar os mais badalados, um dos maiores contistas de todos os tempos.
“Bola de Sebo” foi originalmente publicado em 1880, como parte da coleção “Les Soirées de Médan”, uma publicação de estilo literário naturalista, versando especialmente sobre a Guerra Franco-Prussiana de 1870-1871. A trama se passa no ano de 1870. Em resumo, um pequeno grupo – formado de pequenos e grandes burgueses, de nobres, de religiosos etc. – decide abandonar a cidade de Rouen, recém-ocupada pelo exército prussiano. Mas em meio à turma de “virtuosos” está Bola de Sebo, a prostituta de bom coração Elisabeth Rousset. O grupo, como um todo, é um microcosmo da sociedade francesa da época. Na penosa viagem, em princípio, Bola de Sebo é esnobada, para não dizer humilhada, pelos “representantes da virtude”. Mas todos têm fome, sendo que apenas Bola de Sebo trouxe alimento, que ela compartilha com os demais passageiros. Eles aceitam, para depois novamente rejeitar a benfeitora. A caravana é detida pelo exército inimigo. Um dos oficiais prussianos apaixona-se por Bola de Sebo. Os virtuosos passam a implorar a Bola de Sebo para que durma com o oficial apaixonado. Após a inicial recusa de Bola de Sebo, ela é convencida pelos companheiros de viagem a ceder às investidas do oficial. Bola de Sebo é uma heroína, e a caravana é liberada. Mas tão logo eles continuam a viagem, os “representantes da virtude”, que haviam implorado a ajuda da boa prostituta, voltam a ignorar e humilhar Bola de Sebo – até mesmo comem novas provisões, recém-adquiridas, sem de volta compartilhar com a outrora benfeitora –, que soluça lágrimas de desespero.
“Bola de Sebo”, por seus próprios méritos, ganhou o mundo. Inspirou parcialmente, segundo reconhece o seu diretor, John Ford (1894-1973), o faroeste “No Tempo das Diligências” (“Stagecoach”, 1939), obra-prima do cinema. E é ainda hoje cantada entre nós na composição “Geni e o Zepelim”, do nosso Chico Buarque (1944-). Da Geni, acredito, todos vão se lembrar.
O conto/novela denuncia a ingratidão e a hipocrisia do ser humano. Mas, dia desses, encontrei uma definição quase perfeita, que corta a nossa própria carne, para “Bola de Sebo”. Consta de bela página do livro “A biblioteca e seus habitantes” (Achiamé/Fundação José Augusto, 1982), do mais que nosso Américo de Oliveira Costa (1910-1996): “De Boule de Suif, aliás, se assinalará que são ‘mil e quinhentas linhas sobre a canalhice das pessoas de bem’”.
Sempre desconfiei dos homens (e das mulheres, por que não?) que se dizem “de bem”. Muitas vezes arrotam virtudes que não possuem ou não praticam. Exigem dos outros padrões de comportamento, quando eles mesmos, às escondidas, não os adotam ou os extrapolam. E, se admitem a prática de alguns “pecados”, são os seus pecados, que eles acham naturais ou, ao menos, veniais; já os pecados dos outros são imperdoáveis, capitais. Se fôssemos falar aqui da hipocrisia direta ou indireta quanto ao comportamento sexual das “pessoas de bem”, “mil e quinhentas linhas” não seriam suficientes, a não ser para alguém com o talento de síntese de um Guy de Maupassant.
Todos nós cometemos pecados, mas esses moralistas…
Na verdade, o que temos é uma multidão de falsos moralistas. E aqui solto uma outra frase cortante, que até hoje não sei se é de H. L. Mencken (1880-1956), do nosso Millôr Fernandes (1923-2012) ou minha mesmo: “a única diferença entre um moralista e um falso moralista é que o primeiro ainda não foi desmascarado”. As tais “pessoas de bem” são capazes de escrever – e deveras – milhares de linhas, até de páginas, de própria e pura canalhice.
*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.
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