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Uma situação híbrida

Por Rogério Tadeu Romano*

Observo o que foi informado pelo site de notícias do jornal O Globo, em 13.7.23:

“A CPI do 8 de Janeiro apresentou nesta quinta-feira uma representação na Justiça Federal contra o tenente-coronel Mauro Cid. A alegação é que Cid cometeu crime ao ficar calado em seu depoimento na comissão, na terça-feira.

Os membros da CPI consideraram que Cid extrapolou um habeas corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que garantia a ele o direito de não responder apenas perguntas que poderiam incriminá-lo.

A representação é baseada em uma lei que trata das Comissões Parlamentares de Inquérito. O texto define como crime “calar a verdade como testemunha”. Cid foi convocado pela CPI como testemunha, mas alegou que é alvo de oito investigações e que por isso não responderia as perguntas.”

Orientado por advogados, Mauro Cid não respondeu às perguntas da comissão.

Ora, o tenente – coronel Cid estava em depoimento à CPI mista que investiga os atos contra a democracia no Brasil formalmente como testemunha, mas, em verdade, evitou dar respostas, principalmente aquelas que poderiam lhe incriminar, pois está sendo investigado perante o Supremo Tribunal Federal.

Tem o investigado direito ao silêncio, como se lê do artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal.

Trago a lição de Ada Pellegrini Grinover (Interrogatório do réu e direito ao silêncio, in Ciência Penal, I/15-31, 1976) que transcrevo:

“O réu, sujeito da defesa, não tem obrigação nem dever de fornecer elementos de prova que o prejudiquem. Pode calar-se ou até mentir.

Ainda que se quisesse ver no interrogatório um meio de prova, só o seria em sentido meramente eventual, em face da faculdade dada ao acusado de não responder. A autoridade judiciária não pode dispor do réu, como meio de prova, diversamente do que ocorre com as testemunhas; deve respeitar a sua liberdade no sentido de defender-se como entender melhor, falando ou calando-se, e ainda advertindo-o da faculdade de não responder. Por isso é que Cordeiro afirma categoricamente que a única arma do interrogante é a persuasão (…). Como bem aponta Grevi, do silêncio ou da mentira do réu não podem deduzir-se presunções que superem a presunção da inocência, solenemente proclamada no art. 9º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, ou que superem o ̈princípio in dubio pro reo.”

É ainda Ada Pellegrini (O processo em sua unidade, São Paulo, Saraiva, pág. 111) quem concluiu:

̈”O retorno ao direito ao silêncio, em todo o seu vigor, sem atribuir-lhe nenhuma consequência desfavorável, é uma exigência não só de justiça, mas sobretudo de liberdade. O único prejuízo que do silêncio pode advir ao réu é o de não utilizar a faculdade de autodefesa que se lhe abre através do interrogatório. Mas quanto ao uso desta faculdade, o único árbitro deve ser sua consciência, cuja liberdade há de ser garantida em um dos momentos mais dramáticos para a vida de um homem e mais delicado para a tutela de sua dignidade.”

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 96.219 MC – SP, Relator Ministro Celso de Mello, enfrentando a questão constitucional, deixou lição lapidar no sentido de que  a recusa em responder ao interrogatório policial e/ou judicial e a falta de cooperação do indiciado ou do réu com as autoridades que o investigam ou que o processam traduzem comportamentos que são inteiramente legitimados pelo princípio constitucional que protege qualquer pessoa contra a autoincriminação, especialmente aquela exposta a atos de persecução penal.

Fala-se num privilégio contra a autoincriminação, que é uma manifestação eloquente, como disse Uadi Lammêgo Bulos ( Constituição Federal anotada, São Paulo, Saraiva, 6ª edição, pág. 325):

  1. a) Da cláusula da ampla defesa (artigo 5º, LV da Constituição);
  2. b) Do direito de permanecer calado (artigo 5º, LXIII da Constituição);
  3. c) Da presunção de inocência (artigo 5º, LVII da Constituição)

O Supremo Tribunal Federal entendeu, no julgamento do HC 77.135/SP, Relator Ministro Ilmar Galvão, em 8 de setembro de 1998; no HC 75.527, Relator Ministro Moreira Alves, j. 17 de junho de 1997 e ainda no HC 68.929, Relator Ministro Celso de Mello, 22 de outubro de 1991, que não se pode obrigar acusados a fornecerem base probatória para caracterizar a sua própria culpa.

Assim ninguém pode ser constrangido a produzir provas contra si próprio (RTJ 141/512, Relator Ministro Celso de Mello; RTJ 180/1125, Relator Ministro Marco Aurélio).

Em lição memorável o Ministro Celso de Mello deixou consignado, no julgamento do HC 83.947/AM, Relator Ministro Celso de Mello, que ̈já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (Decreto-lei n. 88, de 20 de dezembro de 1937, art. 20, n. 5).

Da mesma forma, correta a ilação de Guilherme de Souza NucciI (obra citada, pág. 443), ao sustentar o direito do acusado de mentir em seu interrogatório de mérito.

Ninguém é obrigado a se auto acusar.

Isso porque a ampla defesa não pode excluir a possibilidade de narrar inverdades, no intuito de fugir à incriminação.

Se tem o acusado direito ao silêncio, deve ser interpretado como inconstitucional a parte final do artigo 198 do Código Penal onde se menciona poder o silêncio do réu constituir elemento para formação do convencimento do réu.

É jurisprudência pacífica no Supremo Tribunal Federal a possibilidade do investigado ou acusado permanecer em silêncio, evitando-se a autoincriminação. II – O depoimento da paciente, ouvida como testemunha na fase inquisitorial, foi colhido sem a observância do seu direito de permanecer em silêncio. II – Ordem concedida.” (HC 136.331/RS, j. 13/06/2017).

Na lição de João Claudio COUCEIRO, “as testemunhas podem invocar o direito ao silêncio, quer para não se autoincriminar, quer para escapar da responsabilidade civil e administrativa. […] Tal direito é amplo, e não depende da existência de procedimento investigativo para apurar os fatos em que a testemunha estava envolvida …” (A garantia constitucional do direito ao silêncio. São Paulo: RT, 2004, p. 220), como bem lembrou Rogério Sanches Cunha(STJ: Violação do direito ao silêncio pode tornar ilícito o depoimento da testemunha, em 11.10.2018).

Recentemente, divulgou-se na imprensa decisão proferida pela ministra Cármen Lúcia, em sede de Habeas Corpus, em favor do coronel da reserva Hélcio Bruno de Almeida, do Instituto Força Brasil, convocado para prestar depoimento na CPI da Covid. Garantiu-se ao paciente o direito de se manter em silêncio durante a inquirição com relação aos fatos/questionamentos que possam comprometê-lo criminalmente, porém estava obrigado a falar a verdade, enquanto testemunha, sobre os demais fatos que não o incriminem.

Criou-se para o caso em tela, envolvendo o tenente – coronel, que está sendo investigado, uma situação híbrida (foi chamado como testemunha à CPMI, mas é investigado perante o STF). .

Ora, dir-se-á que a testemunha deve dizer a verdade e não se omitir sobre ela.

A hibridização da situação do interrogado acaba resultando na inviabilização do ato (depoimento), sendo necessário, em verdade, ser definido previamente qual status o interrogado irá assumir no ato (acusado ou testemunha).

Caso exista alguma possibilidade de o depoimento ser enquadrado como uma situação de levantamento de prova em desfavor do interrogado, deve prevalecer o direito ao silêncio, que deverá ser afastado apenas nos casos que o depoente claramente se apresente como testemunha (ANPR, O direito de silêncio e a obrigação de falar a verdade).

Caberá ao juízo competente para instrução e julgamento do pedido noticiado pela imprensa entender se houve afronta ou não aos deveres de testemunha por parte do investigado tenente – coronel Mauro Cid sobre perguntas que, porventura, lhe foram feitas pela CPMI, inclusive aquelas que não envolvem o caso, mas ele resolveu, porventura, não responder.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

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