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Houve crimes contra a democracia?

Por Rogério Tadeu Romano*

Trago relato publicado no portal do jornal O Globo, em 21.9.23:

“O ex-presidente Jair Bolsonaro se reuniu, no ano passado, com a cúpula das Forças Armadas e ministros da ala militar de seu governo para discutir detalhes de uma minuta que abriria possibilidade para uma intervenção militar. Se tivesse sido colocado em prática, o plano de golpe impediria a troca de governo no Brasil. A informação chegou à atual chefia das Forças Armadas, como um dos fatos narrados em delação premiada pelo ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid.”

Acrescento o que foi informado pelo portal do jornal do Brasil, na mesma data:

“Comandante da Marinha sob Bolsonaro, almirante Almir Garnier, teria aceitado embarcar no golpe do então presidente: ‘tropas à disposição'”

 A começar, veja-se o crime constante do artigo 359 – L do Código Penal, diante da revogação da antiga Lei de Segurança Nacional.

Sobre o tema disse Fernando Augusto Fernandes (O terrorismo por omissão e o artigo 359 – L do Código Penal, in Consultor Jurídico, em 29.12.2002), ao estudar esse delito diante do terrorismo:

“O crime mais adequado, contudo, é o do artigo 359-L, incluído no Código Penal pela Lei nº 14.197/21, que descreve a conduta de “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”, com pena é de 4 a 8 anos, “além da pena correspondente à violência”. Apesar do artigo sobre violência política (artigo 359-P, do CP) ter também deixado de fora o fim político da conduta delituosa e optado por ” razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional “, o crime de abolição violenta do Estado de Direito já traz a tentativa no próprio crime, sem limitação da atuação que naturalmente é política.

Trata-se de crime formal, que exige o dolo como elemento do tipo. A ação pode vir por violência ou ameaça, que há de ser séria, objetivando, inclusive, restringir o exercício de um dos poderes da República, para o caso o Judiciário.

A ameaça deve ser realizável, verossímil, não fantástica ou impossível. O mal prometido, segundo forte corrente, entende que o mal deve ser futuro, mas até iminente, e não atual. Só a ameaça séria e idônea configura esse crime.

O crime é de perigo presumido.

Outro delito a estudar, por sua vez, ainda contra democracia, é o crime de tentativa de golpe de Estado.

Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: (Incluído pela Lei nº 14.197, de 2021) (Vigência)

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência. (Incluído pela Lei nº 14.197, de 2021)

O delito de golpe de Estado está localizado no Capítulo II da nova lei, chamado de dos Crimes contra as Instituições Democráticas. E o bem jurídico penal é o próprio Estado Democrático de Direito, o qual consta no preâmbulo da CF e nos artigos 1, caput, sendo o modelo, a forma institucional do Brasil.

Ademais, as normas constitucionais definem o sistema republicano, democrático e representativo no qual o voto é o meio pelo qual se ascende ao cargo político-eleitoral, não se admitindo a tomada violenta do poder.

Como disse Ricardo Antonio Andreucci (Golpe de Estado: novo crime previsto na Lei 14.197/21, in empório do direito, em 23.09.21):

“A expressão “golpe de Estado” foi idealizada pelo escritor político Gabriel Naudé, que também era bibliotecário, no século XVII, em sua consagrada obra “Considérations politiques sur les coups-d’état” (Considerações políticas sobre os golpes de Estado), publicado em 1639. Entretanto, a concepção de golpe de Estado de Naudé em nada se assemelha àquela utilizada contemporaneamente. Para Naudé, golpe de Estado seria caracterizado por ações audazes e extraordinárias que os príncipes se veem obrigados a executar no acometimento de empreitadas difíceis, beirando o desespero, contra o direito comum, e sem guardar qualquer ordem ou forma de justiça, colocando em risco o interesse de particulares pelo bem geral.”

Ainda lembrou Ricardo Antonio Andreuccin(obra citada) a lição do ministro Alexandre de Moraes sobre o tema:

“A objetividade jurídica desse crime é a tutela do chamado Estado Democrático de Direito. Nas palavras assertivas de Alexandre de Moraes (“Direito Constitucional”. 36ª ed. São Paulo: Atlas. 2020. p. 58/59), “o Estado Democrático de Direito, caracterizador do Estado Constitucional, significa que o Estado se rege por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo, bem como o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais é proclamado, por exemplo, no ‘caput’ do art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil, que adotou, igualmente, em seu parágrafo único, o denominado princípio democrático ao afirmar que ‘todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição’, para mais adiante, em seu art. 14, proclamar que ‘a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III – iniciativa popular’. Assim, o princípio democrático exprime fundamentalmente a exigência da integral participação de todos e de cada uma das pessoas na vida política do país, a fim de garantir o respeito à soberania popular. O Estado Constitucional, portanto, é mais do que o Estado de Direito, é também o Estado Democrático, introduzido no constitucionalismo como garantia de legitimação e limitação do poder.”

O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, caracterizando-se como crime político. A ofensa se dá contra a sociedade e o Estado.

Ensinou Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, 4ª edição, 1958, volume I, pág. 187) que os crimes políticos são aqueles dirigidos, subjetiva e objetivamente, de modo imediato, contra o Estado, como unidade orgânica das instituições político e sociais.

Na lição de Aníbal Bruno (Direito Penal, tomo II, 3ª edição, 1967, pág. 225) há os critérios objetivistas e subjetivistas.

O critério subjetivista toma em consideração o motivo. É o caráter político do móvel que atribui natureza política ao fato.

Para os objetivistas, será político todo crime que ofende ou ameaça direta ou indiretamente a ordem política vigente em um país. É a natureza política do bem jurídico que dá a rubrica especial a essa figura de crime.

Ainda na matéria, Aníbal Bruno trouxe à colação o artigo 8º do Código Penal Italiano: “É delito político todo delito que ofende um interesse político do Estado, ou um direito político do cidadão. Considera-se também delito político o delito comum determinado no todo ou em parte, por motivos políticos”.

Disse então Aníbal Bruno naquela obra:

“Tomado assim o conceito, tem-se procurado estabelecer entre os crimes políticos: crimes políticos próprios, os que ofendem a organização política do Estado; crimes políticos impróprios, os que acometem um direito político do cidadão. E, ainda, crimes políticos puros, os que têm exclusivamente caráter político, e crimes políticos relativos, compreendo os complexos ou mistos, que ofendem ao mesmo tempo um direito político e um bem jurídico tutelado pelo Direito Penal comum, e os crimes comuns conexos a crimes políticos.”

Quanto à tipicidade objetiva, trata-se de delito de forma livre de mera conduta. Incrimina-se a conduta de tentar depor governo legitimamente constituído, o que significa governo eleito democraticamente, conforme as regras constitucionais, e devidamente diplomado.

Se há o prefalado golpe, outra ordem jurídica se consolida, em afronta à democracia. Foi o que ocorreu diante dos acontecimentos de 31 de março de 1964, no Brasil, e ainda em 1973, no Chile.

Nota-se que a violência deve ser empregada na tentativa de deposição para que o delito se caracterize.

Incrimina-se a prática dolosa de usar violência ou grave ameaça para tentar depor um governo legitimamente constituído.

Este crime não admite forma tentada e se consuma com a tentativa de depor o governo legítimo mesmo que o governo se mantenha.

A pena, 4 a 12 anos e mais as penas das violências cometidas, como lesões corporais e outras práticas contra a pessoa, comporta regime fechado a depender o caso concreto. Admite-se prisão preventiva se houver requisitos e fundamentos do artigo 312 (CPP) já que a hipótese no artigo 313, inciso I do CPP está presente.

Não se admite a incidência de instrumentos de barganha como transação penal, suspensão condicional do processo ou acordo de não persecução penal. E crime de ação penal pública incondicionada, tramitando pelo rito ordinário.

Caberá ao Ministério Público Federal através dos seus órgãos, que, para tanto, tenham atribuição, investigar com a Polícia Federal e ajuizar ações penais contra os envolvidos, solicitando a devida condenação perante o STF hoje prevento para tal julgamento.

O caso é gravíssimo.

Trata-se de crimes contra a democracia.

Lincoln dizia que a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo, como acentuado em célebre discurso de 9 de novembro de 1863 no Cemitério Militar de Gettysburg.

Disse Burdeau (Traitè de Science Politique, tomo V/57) que “se é verdade que não há democracia sem governo do povo, a questão importante está em saber o que é preciso entender por povo e como ele governa”.

Em verdade, a democracia é exercida direta e indiretamente pelo povo e em proveito do povo. Diz-se que é um processo de convivência, primeiramente, para denotar sua historicidade, depois para realçar que, além de ser uma relação de poder político e verificar-se o respeito e a tolerância entre os conviventes.

O caso deve ser investigado em todas as circunstâncias de materialidade e autoria.

É necessário saber se houve uma articulação para dar um golpe de estado no Brasil em verdadeira afronta à democracia.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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