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Vídeo da dona de esfirraria que não gosta de pobre expõe a classe média que não consegue se olhar no espelho

Poderia começar este texto citando a obra do sociólogo potiguar Jessé Souza, “A Elite do Atraso”, para me referir a dona de uma esfirraria de Ceará-Mirim, cidade dos arredores de Natal, Rafaela Ferreiro, que gravou um vídeo dizendo não gostar de pobres, ao reclamar da ausência de funcionários na quarta-feira de cinzas.

Mas vou com outra publicação do autor, “A Classe Média no Espelho”, porque Rafaela provavelmente não é rica, é no máximo uma integrante da classe média.

Jessé tem uma vasta obra sobre o comportamento político das nossas classes sociais em que descreve os sentimentos delas. Ao falar das camadas médias ele lembra que há um sentimento de empoderamento negativo de quem tem pouco, mas mais do que os pobres, como uma herança da escravidão.

Num dos dez países mais desiguais do mundo quem tem o mínimo se sente rico. Num lugar com forte herança da escravidão, como assinala Jessé, esse pouco faz uma diferença abissal no comportamento e na aporofobia.

Jessé Souza, em sua vasta obra, explica que o racismo se converte no ódio ao pobre por parte classe média que se acha no topo.

A dona esfirraria não suportou a ausência de funcionários em um dia de trabalho e achou que seria uma boa ideia desabafar nas redes sociais. O vídeo viralizou negativamente muito embora ela tenha celebrado ter ganho mais seguidores e reafirmado tudo que disse para em seguida reclamar que foi mal interpretada e tornar o perfil privado.

A verdade é que Rafaela, dona de um pequeno comércio numa cidade 73 mil habitantes está muito mais próxima dos seus funcionários do que Alberto Saraiva, dono da Rede Habib’s, maior rede de esfirrarias do Brasil.

Essa é uma das mazelas de um país tão desigual que faz quem é da classe média se sentir mais próxima dos ricos por ter o mínimo, mesmo que na realidade ela esteja muito mais perto dos pobres.

O chilique de Rafaela não é a de uma elite do atraso, mas de uma classe média que não consegue se olhar no espelho.

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Natal, a cidade que foi condenada ao atraso por se render as falsas promessas de futuro

Por Daniel Menezes*

A falsa dicotomia entre leis e planejamento versus empregos é uma constante na história de Natal. Uma constante, não apenas na recente instalação da estátua da Havan na entrada da capital, mas na própria trajetória de imposição do privado sobre o público. A consequência é uma colcha de retalhos de ideias desconexas pautadas por uma visão particularista a respeito dos desafios da principal cidade do RN.

A alcunha cidade do sol não é gratuita e deveria muito mais preocupar do que envaidecer. Não há aqui centro histórico digno de nota, apesar12 de um passado único de participação da ponta do continente na segunda guerra mundial. São Luis, Recife e Salvador criaram atrações em torno dos seus casarões e construções coloniais, respeitando o direito à memória e à cidade.

O abandono das praias urbanas foi um projeto cuidadosamente implementado por ações que iriam nos trazer desenvolvimento. A pá de cal foi a recente liberação de espigões na faixa litorânea. Em percurso distinto João Pessoa soube fortalecer suas orlas urbanas, o que leva natalenses para passear no estado vizinho. Grandes construções foram proibidas na praia e a lei foi posta na constituição paraibana para não parar dúvida.

O meio ambiente, quando aparece na cena pública local, é visto como um estorvo. As ZPAs nunca foram devidamente regularizadas e nossas paisagens são pensadas pela via do desdém. Xiita é o nome mais ameno que ganha quem tenta remar contra a maré.

Perdemos postos de trabalho nos reduzindo ao turismo sol e mar e pedaços inteiros da cidade são ilhados para uma minoria ou simplesmente abandonados por turistas e moradores – Redinha, Praia do Meio e Ponta Negra não impulsionam o turismo, nem são visitadas pelos natalenses. São melancolia de uma promessa nunca realizada.

A narrativa rasa da oposição entre desenvolvimento e respeito ao público como perspectiva de contenção de incursões particularistas de curto prazo nos deixou de herança uma ponte que liga a zona sul à norte mais cara e que não resolveu o problema do trânsito entre as duas regiões. O mesmo discurso foi mobilizado para autorizar a derrubada do Machadão e do Machadinho recém reformados, para erguer uma Arena que nos custará 1,5 bilhão financiados por 25 anos. Quando passar para as mãos do governo, o elefante não será capaz de se pagar. Mais custos virão. É o papo que já em 1991 nos fez construir um papódromo para um único evento. E depois? Depois fica a certeza da enganação – o papódromo não trouxe grandes feiras e eventos como prometido e o Arena das Dunas nem de longe sediou shows internacionais.

A relativização das leis, do interesse público e do planejamento consciencioso nunca trouxe mais empregos. Trata-se na verdade de palavrório para impedir o debate racional, enquadrar os críticos como do contra e manipular um cidadão comum em prol de desejos não devidamente demonstrados de uma minoria.

A instalação da estátua da Havan na entrada de Natal é só mais do que nos mantém paralisados no mito do eterno futuro que nunca chega: ao menos para a maioria. Ela não apenas é feia e descaracteriza a entrada de uma cidade que vive da chamada indústria sem chaminé. É ilegal pela lei do mobiliário urbano em vigor ao contrário do que disse o secretário da semurb, em texto distribuído à imprensa – “no terreno privado a pessoa pode colocar o boneco que quiser se não tiver letreiro”. A estátua é um engenho especial e deve ter licença e estudo específicos, não importando se o terreno é público ou privado. O que, por se negar a mostrar após provocação do portal Saiba Mais, a prefeitura não fez.

E o mais bizarro nessa situação é que a Havan não deixaria Natal. A ameaça local propagada é simplesmente carente de base factual. Aonde se instalou a loja ela se adequou às leis locais sem problema, quer seja diminuindo o tamanho, quer seja inclusive abrindo sem estátua.

O que esse debate ameaça na verdade não é o monumento piegas que sobrepujará o pórtico dos reis magos; é essa concepção que manda no modelo de (sub) desenvolvimento de Natal – o de que sempre a inclinação privada deve imperar e sem qualquer freio pelo poder público. E é justamente esse formato que nos trouxe até aqui. Natal é um não lugar – ou você vai para o shopping e outros espaços de consumo, ou fica em casa. A cidade não serve a maioria que mora nela. E o turista se alimenta de sol e de dunas distantes do urbano a partir de uma relação de tremendo desperdício econômico de todo o resto deixado de lado inexplorado.

Tal concepção vencerá mais uma vez. E, como sempre, andaremos em círculo ingenuamente plenos de que o futuro chegará com o uso de fórmula velha. O desencanto durará até a nova promessa faraônica de crescimento. Afinal, a roda precisa girar e tudo deve mudar para que nada seja alterado.

*É professor da UFRN e editor do blog O Potiguar.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.

 

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O atraso da narrativa de “A elite do atraso”

Por Paulo Ghiraldelli Jr*

Os gregos antigos nos ensinaram a narrativa da tragédia. Nela, nunca se disse que não eram os homens os autores da própria história. Os homens eram de fato postos como fazendo a sua história, mas, por mais que quisessem fugir do destino traçado pelos deuses, pegando vários caminhos diferentes e mudando de percurso, sempre terminavam por realizar o traçado desenhado pelas divindades. Até hoje esse tipo de narrativa faz sucesso. A consciência popular diz: “ninguém foge de seu destino”.

Os historiadores modernos, entusiasmados pelo ideia de aventura, típica do mundo do Renascimento, deram crédito para os indivíduos intrépidos. A tragédia se separou da escrita da história definitivamente. Ela passou a contar para o teatro e tão somente para o teatro. Os pensadores vieram a falar de um outro modo e estilo, conferindo um poder de decisão aos indivíduos – noção esta então recém criada – jamais vista antes. Guardamos desse tipo de história, em nossos manuais escolares, as aventuras de Cristóvão Colombo, de Vasco da Gama e tantos outros. É nessa linha que, até hoje, falamos de Napoleão. Não raro ainda falamos de Stalin e Hitler assim! Isso quando não começamos, a partir daí, a falar no estilo das teorias conspiratórias!

Nos dias de hoje, quando a regra é a auto-intensificação, acreditamos na filosofia de Sartre em sua colaboração maior com a ideologia do momento. Para entendermos como nos vemos hoje em dia, vale aqui repetir Sloterdijk:

“O indivíduo é simplesmente o homem sem missão, o não-mensageiro. Constitui uma espécie de produto semi-acabado o que, de resto, é precisamente aquilo que a educação moderna pretende fazer da criatura humana: produtos semi-acabados que devem trabalhar-se até se tornarem produtos acabáveis utilizáveis – o que quase ninguém alcança. Foi Sartre quem forneceu a ideologia deste fenômeno ao dizer que o importante é fazermos alguma coisa do que fizeram de nós” (1)

Não sei o quanto eu gostaria de responsabilizar Sartre pela ideia de que, agora, temos de contar a história como sendo feita a partir de nossa intervenção pessoal e voluntariosa, uma história de reconstrução pessoal, de re-invenção (como está na moda falar). Mas sei bem que é assim que temos, ao menos alguns de nós, nos empenhado em narrativas históricas. Essas narrativas são diferentes daquelas que Marx, também no início da modernidade, exatamente por seu respeito a Hegel, nos ensinou escrever. Narrativas como as atuais, que fazem sucesso entre nossas esquerdas, esqueceram completamente de Marx, e passaram a gerar histórias em que os indivíduos agem como protagonistas exclusivos dos feitos. Fazem do que fizeram delas algo extraordinário! Mas, o que é mais grave, ao serem postos como donos de todo destino, logo esses indivíduos se apresentam também como senhores do bem e do mal, agindo então como mentirosos espertalhões, que sem convencimento do que dizem, enganam uma massa de tolos – ou seja, todos nós.

Vi esse último tipo de narrativa no livro de Jessé de Souza, A elite do atraso. É uma narrativa em que nós todos somos vistos como tontos, e a Lava Jato associada à Rede Globo, como donos do mundo e do destino, e sendo formadas por pessoas de profunda má fé, e que nunca fizeram qualquer denúncia séria sobre a corrupção. O que fizeram foi apenas exercer suas funções de bandidos com poderes quase mágicos de contarem mentiras, com o objetivo de nos levar a entregar a Petrobrás para estrangeiros milicianos. Esse tipo de narrativa é, a meu ver, menos útil para mim; não vejo como uma pessoa que a vive, que se situa nela. Inclusive, uma narrativa assim poderia estar extremamente a serviço de uma visão generosa demais para com os políticos da coalização governista imperante nos últimos entre 2002 e 2018. Um trecho do livro do Jessé exemplifica bem o que quero dizer:

“A Globo, em associação com a grande mídia a maior parte do tempo, e a Lava Jato fizeram o contrário disso tudo [proteger o patrimônio nacional] e a nós todos de perfeitos imbecis. A título de combater a corrupção dos tolos, turbinaram e legitimaram a corrupção real como nunca antes neste país das multidões de imbecilizados”. (2)

Nesse tipo de narrativa, a Globo e os homens da Lava Jato surgem como deuses malévolos, enganadores, e nós, então, tontinhos que precisamos do grande Jessé para deixarmos de sermos os imbecis que somos, para abrir os olhos e ver como que o único objetivo de tudo era a entrega do nosso petróleo aos … yankees! “O petróleo é nosso” brada Jessé, como se estivesse nos anos 50, servindo de bucha de Vargas que, na verdade, tomou tal frase para si após ter prendido o real defensor dela, Monteiro Lobato.

Para escapar desse tipo de narrativa, que repõe a história de indivíduos poderosos e a completa com chistes sobre mocinhos e bandidos, nada melhor que reinvocar Marx. Para este, as relações postas pelo capitalismo invertem a relação sujeito-objeto. As relações sociais e o dinheiro, que se completam formando o capital, saem da condição de objetos e se transformam em sujeitos. Nós viramos os objetos – somos coisificados, mas não nos tornamos tontos. Marx fornece a narrativa em que o capital se põe como sujeito e, então, não traça o jogo e o vencedor, nem chama os jogadores de bandidos de um lado e tolo de outros; mas, o que o capital faz, e o que é o importante de ver, é que, antes do jogo, ele traça o campo do jogo e a escolha do desporto praticado. Quem faz essa escolha é o capital. Ele é o sujeito da história. Se não atentamos para os seus deslocamentos, se não vemos que o jogo é jogado no campo do capitalismo financeiro, e não mais no capitalismo comercial e industrial, ficamos perdidos, e passamos a achar que a Globo e a Lava Jato são feitas de deuses que sabem tudo e mentem, e que nós não sabemos nada e que somos enganados pela nossa idiotia. Eu falaria assim para Jessé:  desculpe-me meu caro, mas eu não sou idiota, eu não preciso de sua narrativa pseudo-reveladora para entender um pouco da realidade que vivo. Falo isso por poder ver que os poderes da Lava Jato e da Globo não advém da mentira, mas do fato de estarem na perspectiva fortalecida de quem é o sujeito da história, o capital.

Quando pegamos um livro como o do professor Ladislau Dowbor, A era do capital improdutivo (3), temos o perfeito antídoto à narrativa policialesca de Jessé de Souza.  Nesse livro, o que interessa é o campo de jogo. Como o capital financeiro se fez presente? E então, por sua obra, como ele fez pessoas simplórias, que pronunciam “conje” ao invés de “cônjuge”, chegarem a ter poder? Os que aparentemente mentem, de fato não mentem não porque são virtuosos, mas simplesmente porque são simplórios e acreditam no que fazem. Ou acreditam no que fazem porque estudaram e encontraram na narrativa autojustificadora do capital um aspecto racional. Então eles, os poderosos, falam coisas que acolhem muito da verdade. A corrupção denunciada pela Lava Jato existiu. Essas pessoas simplórias que ganharam o poder e o prestígio e começaram a falar grosso, durante um tempo, assim puderam agir porque falam a voz do capital. Jogam o jogo traçado pelo campo posto pelo capital. Não destoam dos interesses do dinheiro-que-gera-dinheiro-sem-que-ocorra-produção, que é o mundo da felicidade da Bolsa de Valores.

Se olhamos assim a história, pela via de Marx, então podemos tratar nossos adversários políticos com seriedade. Entendemos a visão deles. Passamos a respeitá-los diante do que acreditam, e nos qualificamos para a discussão com eles, invocando o direito de fornecer nossa narrativa, por exemplo, para as mudanças das leis trabalhistas e a reforma da previdência. Não fazendo isso, não poderemos sentar à mesa para negociar e propor alternativas, pois, afinal, não teríamos o que falar para bandidos que sabem que estamos certos, mas teimam em advogar suas saídas para a crise mesmo não acreditando nelas.

Os homens do governo atual, de Bolsonaro, e os seus intelectuais, estão convictos que suas explicações da crise brasileira são corretas. E em parte, para os interesses do capital, estão mesmo! Eles falam da crise gerada pela necessidade de combater a inflação, não deixar a corrupção reaparecer, e então fazer o “ajuste fiscal”. Nós, vendo como o capitalismo financeiro funciona, queremos colocar que a crise é devido à dívida, que esta deveria ser auditada, e que se não trouxermos o capital para o campo da produção, com algum controle sobre a financeirização, não teremos chance de sobreviver. Podemos sentar para conversar e podemos por na mesa a nossa narrativa, levando a sério a deles, porque não estamos nos sentando com gente que sabe de tudo e que só nos ludibria com sacanagem, ainda que saibamos que os adversários jamais seriam canonizados pelo Papa Francisco.

Quando abandonamos o capital na sua tarefa invertida de ser sujeito, e começamos a olhar só para o jeitão de Dalagnol e William Waack, acreditando no poder enganador deles sobre nós, e achando que isso é a história, pegamos uma via que não é a da minha preferência. A narrativa de Jessé serve para a rede Globo fazer novela, ela até nos mobiliza emocionalmente, mas ela ajuda pouco na hora de enfrentarmos a política.

*É filósofo.