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Crônica

Loucura atrativa

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

“Depois de pouco mais de três anos, trilhões de dólares em perdas e 20 milhões de mortos, a emergência internacional causada pela covid-19 chega ao fim, uma data que entra para a história recente da ciência e do mundo. Nesta sexta-feira, a OMS (Organização Mundial da Saúde) anunciou que seus especialistas chegaram à conclusão de que o vírus não representa mais uma ameaça sanitária internacional e que, portanto, a crise é oficialmente declarada como encerrada. Central para o fim da fase mais aguda foi a expansão da vacina”. Reproduzo trecho de matéria do portal UOL. Mas, na semana passada, coisa parecida, em tom de alívio, estava em todos os meios de comunicação da Terra (redonda).

Pelas regras da OMS, não foi uma declaração oficial do fim da pandemia. O “coisa ruim” – e falo aqui especificamente do vírus – ainda circula entre nós. Mas celebremos. Devido sobretudo às vacinas, o pior já passou. Mil vivas para todos os deuses e a quem mais de direito.

Todavia, na mesma semana em que celebramos o fim da emergência internacional pela covid-19, fomos surpreendidos com notícias estarrecedoras também envolvendo a pandemia e a vacinação respectiva: a Polícia Federal realizou operação contra uma bizarra turma que teria “inserido dados falsos de vacinação contra a covid-19 no sistema do Ministério da Saúde, para emissão de certificados” que, assim forjados, viabilizariam a entrada de alguns do bando e de familiares, incluindo menores, nos EUA. E, “segundo comunicado da PF à imprensa sobre a operação, os investigados podem ter cometido quatro crimes: infração de medida sanitária preventiva, associação criminosa, inserção de dados falsos em sistemas de informação e corrupção de menores. A continuidade da apuração deve esclarecer se de fato esses ou outros ilícitos ocorreram e quem seriam os autores”. E aqui reproduzo a BBC Brasil, embora a notícia estivesse em todos os jornais do país (redondo, ops, quis dizer lúcido) e diversos congêneres mundo afora.

Se a notícia do fim da emergência pela covid-19 nos deu alegria, a citada descoberta da falsificação dos certificados de vacinação é de dar uma tristeza mais que enorme. E não é só pela penca de crimes praticados, o que já seria por demais triste. É também pela absurdez da coisa.

Praticar “infração de medida sanitária preventiva, associação criminosa, inserção de dados falsos em sistemas de informação e corrupção de menores”, todos esses crimes, envolvendo um montão de pessoas, numa trabalheira danada, correndo risco de ser pego (como foram), para não tomar “uma porra de uma vacina” (desculpem a expressão, mas é o que me vem neste momento de indignação), não tem lógica alguma. Zero. É absurdamente estúpido. E tudo isso numa pandemia que matou mais de 700 mil pessoas no Brasil e milhões no mundo. Só posso dizer: “loucura, loucura, loucura”.

Para piorar, berrando uma malamanhada liberdade, há gente louvando essa loucura toda, que, como efeito colateral gravíssimo, levou muitas pessoas (menos informadas e mais vulneráveis) a não se vacinar e, em muitos casos, por consequência, à morte. “A cadela do fascismo está sempre no cio”, disse Bertolt Brecht (1898-1956); pelo visto, a cachorra antivacina também.

Pergunto-me quando essa absurdez vai acabar? Já nem sei mais se vai. Sempre temo a lição que aprendi assistindo a “O Terceiro Homem” (“The Third Man”), película dirigida por Carol Reed (1906-1976) com base em roteiro de Graham Greene (1904-1991), por muitos considerado o melhor filme britânico de todos os tempos. Uma lição sobre a “maldade atrativa”. Harry Lime, personagem interpretada por Orson Welles (1915-1985), é um criminoso, contrabandista e falsificador de Penicilina, que, na Viena pós-guerra, causou a morte e a invalidez física e mental de centenas de adultos e crianças. Cínico e sem escrúpulos, ao ponto de delatar a ex-amante para conseguir um ou outro favor dos soviéticos, ele é, a despeito das iniquidades cometidas, capaz de provocar a admiração de alguns e até o amor sem contestação da bela mulher. Lime/Welles confessa: “Ora, eu ainda acredito, meu caro. Em Deus, na misericórdia e tudo mais. Não estou machucando a alma de ninguém com minhas atividades. Os mortos são mais felizes mortos. Não estão perdendo grande coisa daqui, pobres coitados”. Tudo é feito e dito livremente e até “com um toque de genuína piedade…”.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Artigo

Falsificação de carteira de vacinação e inserção de dados falsos em sistema de informação: um caso concreto

Por Rogério Tadeu Romano*

Salta aos olhos a conduta que teria sido perpetrada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, com a coautoria do seu ex-ajudante de ordens, o militar Mauro Cid, e ainda de outras pessoas, que ajudaram na prática de crime que envolve a fraude de registro de vacina e sua inserção no sistema de dados.

Fala-se que a funcionária responsável, no caso, teria sido pressionada a ceder as senhas necessárias para permitir a realização daquela conduta criminosa.

Noticiou, então, o site G1, em 3.5.2023:

“As investigações apontam que os dados do cartão de vacinação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), de sua filha de 12 anos, Laura Bolsonaro, de Mauro Cid, sua esposa e filha foram alterados. Os dados falsos foram incluídos nos sistemas do Ministério da Saúde por Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro.

A suposta falsificação teria o objetivo de garantir a entrada de Bolsonaro, familiares e auxiliares próximos nos Estados Unidos, burlando a regra de vacinação obrigatória. O ex-presidente foi aos EUA em 30 de dezembro de 2022, às vésperas de deixar o governo, e voltou ao Brasil em 30 de março deste ano.”

O ex-presidente da República fez questão de dizer que não se vacinou contra a covid.

Tudo isso, além de manifestar-se como crime, é uma forma de desprezo à população, que vai aos postos de saúde, com o objetivo de vacinar-se contra essa terrível doença.

A operação que terminou com a busca e apreensão do telefone celular de Jair Bolsonaro (PL) e a prisão de pessoas ligadas ao ex-presidente por fraudes no cartão de vacinação dele e da filha está relacionada ao inquérito em andamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que investiga a atuação de “milícias digitais”. Haveria uma conexão a justificar a competência do STF.

O Projeto de Lei 114/22 tipifica como crime de falsificação de documento público a alteração da carteira de vacinação, no todo ou em parte. O texto em análise na Câmara dos Deputados acrescenta esse dispositivo ao Código Penal, que atualmente prevê pena de reclusão, de dois a seis anos, e multa para quem falsifica documento público, consoante informou a Agência Câmara de Notícias.

Nos EUA, exige-se a comprovação de vacinação. A vacinação para entrar em solo americano será obrigatória até o dia 12 de maio deste ano.

Aliás, falsificar certificados de vacinação contra a Covid-19 é um crime federal nos Estados Unidos,

No Brasil, a falsificação de carteira de vacinação é enquadrada como falsificação de documento, havendo, outrossim, que se falar no uso de documento público falsificado, por quem o detém.  É certo que, ainda, poder-se-ia falar no crime de corrupção de menores, pois menores poderiam ter sido envolvidos na cadeia criminosa.

Quanto ao crime de uso de documento, há o entendimento segundo a qual uma pessoa que pratica as condutas de falsificar e usar o documento falsificado deve responder por apenas um delito.

O que é documento?

Documento, como conceitua Júlio Fabbrini Mirabete (Manual de direito penal, volume III, 22ª edição, Atlas, pág. 212), é toda peça escrita que condense graficamente o pensamento de alguém, podendo provar um fato ou a realização de algum ato dotado de significação ou relevância jurídica. O escrito deve ser feito a mão ou por meio mecânico ou químico de reprodução de caracteres. Mas, inexiste a falsificação de documento quando se trata-se de simples reproduções fotográficas (xerocópias) não autenticadas que não se conceituam como documentos (RTJ 108/156). Mas, é essencial que o documento possa apresentar relevância no plano jurídico, gerando consequências no plano jurídico (RTJ 616/295). Nelson Hungria conceitua o documento como “todo escrito especialmente destinado a servir ou eventualmente utilizável como meio de prova de fato juridicamente relevante”.

O documento, via de regra, é um papel escrito. Mas nem todo papel escrito é um documento, pois nem todo papel tem força probante.

De toda sorte, a veracidade probatória é a objetividade jurídica desses crimes em estudo.

São requisitos do documento:

  1. Forma escrita, redigidos em língua nacional, seja a mão ou a máquina;
  2. Determinação da autoria;
  3. Conteúdo (uma manifestação de vontade, uma exposição dos fatos);
  4. Relevância jurídica.

Há a falsidade material e a falsidade ideológica. Na falsidade material, o documento é falsificado em sua essência (material). Na falsidade ideológica (intelectual), o documento é falsificado em sua substância, ou seja, em seu conteúdo ideal.

Falsificar significa criar materialmente, fabricar, formar, contrafazer. O agente elabora, forja o escrito integralmente ou acrescenta algo a um escrito, inserindo dizeres em espaço em branco. Por sua vez, ao alterar o documento verdadeiro o sujeito ativo exclui termos, acrescenta dizeres, substitui palavras. Nos exemplos de alteração, o papel, sobre o qual o agente trabalha, no seu mister criminoso, preexiste à sua ação e constitui documento verdadeiro, sendo objeto do agente emprestar-lhe aspecto ou sentido diferente daquele com que nasceu e, quando se trata de falsificação, o documento nasce como fruto do trabalho do agente cujo desiderato reside em dar existência a um documento fictício, como disse Sylvio do Amaral (Falsidade documental, 2ª edição, São Paulo, 1978, pág. 49 e 50).

Para o crime envolvendo a fé pública é mister a potencialidade da falsidade para causar prejuízo. Como ensinou Guilherme de Souza Nucci (Código Penal Comentado, 8ª edição, pág. 1015), torna-se indispensável que a falsidade, mesmo que não seja grosseira ou o documento possua relevo jurídico, tenha aptidão para gerar prejuízo, conforme o meio eleito pelo agente para a prática da infração penal. Disse ainda Guilherme de Souza Nucci:

“Note-se: não se trata de transformar o crime de falsidade em material, ou seja, aquele que exige resultado naturalístico, mas de evidenciar que não é toda falsificação um meio hábil a prejudicar a fé pública.”

Por essa razão, fotocópias sem autentificação, documentos impressos sem assinatura ou documentos anônimos não podem ser considerados documentos particulares para os efeitos da lei.”

A falsificação em documento de dados constantes do sistema de vacinação é crime previsto no art. 297 do Código Penal.

O tipo subjetivo nesses ilícitos citados de falsificação é o dolo.

Ainda se pode trazer à colação o crime previsto no artigo 313 – A do CP:

Art. 313-A. Inserir ou facilitar, o funcionário autorizado, a inserção de dados falsos, alterar ou excluir indevidamente dados corretos nos sistemas informatizados ou bancos de dados da Administração Pública com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem ou para causar dano: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000))

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)

Trata-se de crime próprio, pois somente pode ser cometido por funcionário público.

Objeto material são os dados, falsos ou corretos, constantes dos sistemas informatizados ou banco de dados da Administração Pública. Dado é o elemento de informação ou a representação de fatos ou de instruções, de forma tal que seja permitido o seu processamento, armazenamento bem como sua ou transmissão, como disse André Estefan (Direito Penal – Parte Especial – Volume 4. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 211).

Disse bem Vicente de Paula Rodrigues Maggio (O crime de inserção de dados falsos em sistema de informações ( Código Penal, art. 313 – A) que “o núcleo do tipo penal está representado pelos verbos inserir (incluir, introduzir, alimentar o sistema ou banco de dados), facilitar a inserção (colaborar, permitir, tornar fácil a inserção) alterar (mudar, modificar, falsificar) e excluir (retirar, remover, eliminar), tendo como objeto material os dados, falsos ou corretos, constantes dos sistemas informatizados ou banco de dados da Administração Pública.”

A inserção de dados falsos em sistema de informações é crime formal (ou de consumação antecipada), que se consuma sem a produção do resultado naturalístico, consistente na efetiva obtenção de vantagem indevida ou de causar dano a outrem. A tentativa é possível.

O elemento subjetivo do tipo é o dolo.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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