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A injusta paralisação da fila dos precatórios alimentícios positivada pela EC 114

Por Gláucio Tavares Costa e José Herval Sampaio Júnior*

Imaginem uma pessoa, o Sr. K., com mais de 40 anos de idade, detentor de um crédito, em uma longa fila, numa agência bancária, aguardando pacientemente a sua vez para sacar um valor a que faz jus. A fila é imensa e arrasta-se vagarosamente, maltratando, de forma desmedida, o consumidor. Entretanto, está lá o Sr. K., no seu suplício, experimentando a amarga violação do seu direito a “razoável duração da fila”.

Em pé e cansado, o Sr. K. vai se aproximando de sua esperada vez de ser atendido, quando então a gerência do banco determina que serão atendidos primeiramente os credores da fila que tenham no mínimo 60 anos de idade, ou sejam portadores de doença grave ou pessoas com deficiência e somente quando todos esses forem atendidos, o Sr. K. voltará a se mover na fila.

Com essa nova regra, como a fila é muito longa, em pouco tempo, centenas de pessoas completam 60 anos de idade e passam para a frente do Sr. K. Cabe atentar outrossim que as pessoas recém-chegadas na fila que tenham 60 anos ou mais de idade, ou sejam portadores de doença grave ou pessoas com deficiência, já entram na frente do Sr. K., de forma que a sua posição na fila vai sempre sendo empurrada para trás, numa espécie de martírio interminável.

Em que pese tal situação insólita parecer ficção e ser tão estranho do ponto de vista jurídico do inusitado enredo do romance O Processo, do escritor checo Franz Kafka, que conta as injustiças sofridas pelo personagem Josef K., que acorda certa manhã e é submetido a um longo e incompreensível processo, mutatis mutandi, a Emenda Constitucional n° 114/2021 promoveu análoga tribulação aos detentores de direitos creditórios perante a Fazenda Pública.

A situação dos credores dos precatórios de natureza alimentícia que já era desoladora, ao serem sacrificados por um verdadeiro freio na tartaruga, tornou-se inconsolável.

Pois bem. A Emenda Constitucional n° 114/2021 estabeleceu, no artigo 107-A, §8°, dos ADCTs da CRFB/1988, que os pagamentos em virtude de sentença judiciária de que trata o artigo 100 da Constituição Federal (os precatórios) serão realizados na seguinte ordem:

“I – obrigações definidas em lei como de pequeno valor, previstas no §3º do art. 100 da Constituição Federal; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 114, de 2021)

II – precatórios de natureza alimentícia cujos titulares, originários ou por sucessão hereditária, tenham no mínimo 60 anos de idade, ou sejam portadores de doença grave ou pessoas com deficiência, assim definidos na forma da lei, até o valor equivalente ao triplo do montante fixado em lei como obrigação de pequeno valor; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 114, de 2021)

III – demais precatórios de natureza alimentícia até o valor equivalente ao triplo do montante fixado em lei como obrigação de pequeno valor; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 114, de 2021)

IV – demais precatórios de natureza alimentícia além do valor previsto no inciso III deste parágrafo; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 114, de 2021)

V – demais precatórios.  (Incluído pela Emenda Constitucional nº 114, de 2021) (…).” [1]

No âmbito da Resolução n° 303/2019 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que dispõe sobre a gestão dos precatórios, com alterações operadas pela Resolução n° 482/2022 do CNJ, o crédito superpreferencial está previsto nos artigos do 9º ao 11 para os devedores em Regime Geral (regime da União e demais entes públicos que não tinham dívida de precatórios até 2009), e nos artigos 74 e 75 para os devedores em Regime Especial (os entes públicos devedores que apresentam dívidas de precatório posteriores à promulgação da Emenda 62/2009).

A propósito, o artigo 9° da Resolução n° 303/2019 do CNJ preconiza:

“Artigo 9º Os débitos de natureza alimentícia cujos titulares, originários ou por sucessão hereditária, sejam idosos, portadores de doença grave ou pessoas com deficiência, assim definidos na forma da lei, serão pagos com preferência sobre todos os demais, até a monta equivalente ao triplo fixado em lei como obrigação de pequeno valor, admitido o fracionamento do valor da execução para essa finalidade.” [2]

Desta forma, em face da ordem de pagamentos de precatórios estabelecida com a EC 114/2021 e Resolução n° 303/2019 do CNJ, os créditos denominados superpreferenciais são os únicos a serem pagos ultimamente, deixando os credores dos precatórios de natureza alimentícia na situação do personagem Sr. K., sem perspectiva de receber os seus créditos, mesmo que conte com mais de dez anos de espera na fila para receber o seu crédito decorrente de condenação da Fazenda Pública, o que mesmo entendendo a preferência trazida na emenda, necessita de um melhor equacionamento pelo parlamento.

Na prática, com o regramento da EC n° 114/2021, a fila dos credores de precatórios de natureza alimentícia encontra-se praticamente paralisada ou pior: quem estava há anos na fila, vai sendo passado para trás.

Pontue-se, por exemplo, que na lista de credores do Estado do Rio Grande do Norte, no mês de junho de 2023, conta-se mais de 16 mil credores de precatórios e que requisitórios inscritos no ano de 2012 encontram-se paralisados desde o ano de 2021, enquanto na fila dos 1.834 precatórios superpreferenciais, aguardam pagamento, em sua maioria, precatórios inscritos em 2021 e 2022, havendo inclusive precatórios de 2023, ressaltando que o Poder Judiciário somente cumpre o que foi estabelecido na emenda.

Observe-se que os novos 1.834 precatórios superpreferenciais que ingressaram na fila em 2023 serão ao menos parcialmente pagos antes de precatórios de natureza alimentícia que se arrastam na fila há mais de dez anos.

Nesse cenário, sob perspectiva atual, na prática, somente quem ostenta as condições superpreferenciais de idade, doença ou deficiência pode receber o crédito constituído judicialmente contra a Fazenda Pública, o que é deveras despropositado por afrontar, em tese, de uma só vez à tripartição de poderes (artigo 2º da CF/88), à segurança jurídica, ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada (artigo 5º, caput e inciso XXXVI, da CF/88), ao direito de propriedade (artigo 5º, inciso XXII, da CF/88), à inafastabilidade do Poder Judiciário, ao devido processo legal, à ampla defesa, à razoável duração do processo (artigo 5º, incisos XXXV, LIV, LV e LXXXVIII da CF/88) e ao princípio da igualdade das partes (artigo 5º, caput e inciso LIV, da CF/88), este último analisado sempre sob as premissas substanciais de cada caso.

Não se rechaça obviamente que se efetue o pagamento dos credores superpreferenciais, posto que a idade mais elevada e condições desfavoráveis de saúde de certos credores demandam urgência no adimplemento do crédito, justificado pelo respeito aos idosos e sentimento de ajuda aos concidadãos enfermos ou com deficiências, porém é razoável que haja um revezamento, pagando-se, por exemplo, dois precatórios superpreferenciais e um da fila de precatórios de natureza alimentícia ou ainda que precatórios expedidos há mais de cinco ou dez anos ingressem na fila de precatórios superpreferenciais, ou seja, deve haver um melhor equacionamento, pelo parlamento, dessa situação, insustentável por aqueles que aguardam os seus direitos há tantos anos.

Deve-se procurar uma medida que se promova a mobilidade tanto da fila dos superpreferenciais, bem como da fila dos demais precatórios, posto que a situação que se encontra, é de nítida injustiça.

Nesse passo, urge que tal temática seja revisada pelo Poder Legislativo, de forma a expurgar a injusta paralisação da fila dos precatórios de natureza alimentícia positivada pela EC n° 114/2021.

Na obra-prima de Kafka, o senhor Josef K. foi executado nos portões da cidade. Urge alterar a regra da fila dos precatórios dos superpreferenciais para propiciar um fim menos trágico aos inconsoláveis credores da Fazenda Pública.

Referências:

[1] Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Recuperado de https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

[2] KAFKA, Franz. O processo. Tradução e posfácio Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

[3] Resolução nº 303, de 18 de dezembro de 2012. Dispõe sobre a gestão dos precatórios e respectivos procedimentos operacionais no âmbito do Poder Judiciário. Recuperado de https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3130.

*Gláucio Tavares Costa é analista judiciário do TJRN e mestrando em Direito pela FUNIBER.

*José Herval Sampaio Junior é juiz de Direito do TJ-RN e professor da Uern (Universidade do Estado do Rio Grande do Norte).

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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O acesso, literalmente

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Como já tive a oportunidade de dizer sobre “O processo” de Franz Kafka (1883-1924), há várias interpretações sobre este romance jurídico inacabado, que é, sem dúvida, uma das obras-primas da literatura alemã e da ficção em prosa do século XX. Sendo o absurdo existencial a tônica da sua narrativa, sendo a trama permeada pela loucura ou pelo absurdo, as interpretações sobre o seu leitmotiv são as mais variadas. Já se disse ser ele uma meditação/análise/crítica sobre a burocracia estatal, sobre o totalitarismo, sobre Deus, sobre estados psicológicos, sobre a desesperança e a alienação do homem moderno, sobre a própria vida de Kafka e por aí vai. Cada uma dessas sacadas destacadamente ou tudo junto e misturado, o que deixa a coisa ainda mais, digamos, “kafkiana” (e me desculpem o gracejo).

Coisa parecida se dá especificamente com a parábola “Diante da Lei”, que está no capítulo 9 de “O processo”, como um dos núcleos do disputado romance, e na qual ao homem do campo é recusada – ou é autorrecusada, quiçá –, nas “portas” da Justiça, a “entrada na Lei”.

Para exemplificar algumas dessas interpretações sobre “Diante da Lei”, cito Modesto Carone em “Lição de Kafka” (Companhia das Letras, 2009): “no caso desse célebre texto de Kafka, a parábola pode sinalizar que o homem conhece seu objetivo, embora não conheça o caminho para ele, pois desvia a atenção dos fins para a existência do obstáculo, que se torna, ele próprio, a meta exclusiva dos seus esforços”. Ademais, uma “outra abertura possível para o núcleo de significado da peça kafkiana é que o homem do campo se sente impelido pelo desejo de chegar à lei ou à justiça. Nesse aspecto, o personagem pode ser concebido como a representação de uma necessidade reprimida ou alienada que, acompanhando a curva da parábola, se vê fadada ao fracasso”. Por fim, de forma mais concreta, “analisando mais de perto a perspectiva histórica do relato, o texto reflete tensões sociais – por exemplo as que existem entre os indivíduos que ‘têm sede de justiça’ e as autoridades que se negam a atendê-los. Por esse prisma, o sarcasmo kafkiano, que é disfarçado mas corrosivo, se dirige contra uma hierarquia de instâncias fechadas típica da burocracia (principalmente a austro-húngara) com a qual Kafka, o advogado das causas trabalhistas, conviveu, e na qual certamente se inspirou. O longo caminho dessa burocracia (que se estruturou no Império pela mão forte da rainha Maria Teresa, descrita como o ‘maior homem da Áustria’) é a manifestação visível de um poder autocrático, que na narrativa impossibilita ao homem do campo exercer o seu direito”.

Tendo a ficar com as interpretações mais “pé no chão”, como a última das citadas acima. Com as menos complexas, trabalhando à moda da “Navalha” de Guilherme de Ockham (1288–1347), para ser chique. “Diante da Lei” seria um libelo poético contra as burocracias policial e judicial e, em especial, uma denúncia sobre a ausência de acesso à justiça e a impotência – autoinfligida, talvez? – do cidadão em relação a essa falta. Um retrato da absurdez dos processos judiciais, agora “kafkiana” desde o nascedouro, porque mostra a interrupção do acesso dos mais vulneráveis à “Lei” ainda na “porta” do aparelho judicial. Mas seria também um panfleto ou, mais ousadamente, um chamamento à ação? Provavelmente. De toda sorte, sob os prismas sociológico e jurídico, tudo mostra um Kafka conhecedor dos caminhos e das agruras dos jurisdicionados de então.

As coisas mudaram bastante desde os tempos de Kafka, é verdade. São cem anos no meio. No Brasil, por exemplo, sobretudo pós Constituição de 1988, tivemos vários avanços no que diz respeito ao acesso à justiça. Os mecanismos de tutela coletiva do tipo ação civil pública, os juizados especiais, a própria gratuidade da justiça para quem não possa arcar com seus custos, o incremento da Defensoria Pública, a mediação e a arbitragem como meios céleres para solução de conflitos de interesses, entre outras coisas, nos deixam sempre animados.

Mas será que o essencial mudou? Mudou suficientemente? O sistema judicial brasileiro – e de resto, dado o hermetismo característico, quase todos os sistemas judiciais – é ainda algo estranho ao povão. Faltam informações e condições materiais para uma litigância de sucesso. E ainda hoje lutamos contra “porteiros” mudos ou insensíveis. Kafka foi vanguardista a seu tempo. E também premonitório de problemas que ainda hoje enfrentamos quanto ao acesso à justiça, sobretudo para os mais necessitados, homens do campo ou da cidade.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.

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Crônica

O acesso, literariamente

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

O mais badalado dos romances de Franz Kafka (1883-1924), pelo menos para nós do direito, é “O processo”, que restou sendo publicado, já postumamente, em 1925. A obra narra a estória do bancário Jofeph K., que, por um “crime” ou por razões nunca reveladas, nem a ele nem ao leitor, é preso, processado e condenado por um misterioso e inacessível tribunal. Algo “kafkiano”, digo, sendo hiperbolicamente tautológico.

E é desse romance que destaco uma passagem para tentar ilustrar, literária e literalmente, a temática do “acesso à justiça”: a parábola “Diante da Lei”, que consta do capítulo 9 de “O processo” (embora tenha sido também publicada, separadamente, no livro de contos “Um médico rural”, de 1919). Trata-se de um texto central em toda a obra de Kafka, e não só em “O processo”, sendo um dos escritos preferidos do próprio autor.

Em “O processo”, a narrativa/parábola é contada a Josef K. pelo capelão da prisão, tendo como cenário a igreja gótica que faz as vezes da sede do tribunal que processa, julga e condena o protagonista (lembrando ainda que este, o nosso Josef K., será executado no capítulo seguinte). E, aqui, rogo a ajuda de Modesto Carone, com o seu “Lição de Kafka” (Companhia das Letras, 2009), para explicar o conteúdo de “Diante da Lei”: “Um homem do campo chega ao porteiro que vigia a entrada para a lei e pede admissão. O porteiro recusa o pedido e responde evasivamente sobre se o homem do campo poderá entrar mais tarde. Quando o homem do campo olha para o interior da lei pelo portão, o porteiro adverte-o de que é inútil tentar entrar sem permissão. Ele diz que, apesar de ser o último dos porteiros, é poderoso. A partir daí o homem do campo passa a observar atentamente o porteiro. O porteiro dá-lhe um banquinho, no qual ele pode ficar sentado enquanto espera. Os anos passam, durante os quais o homem do campo envelhece. Primeiro ele tenta subornar o porteiro, depois pede até às pulgas da gola do seu casaco que o ajudem. Esquece cada vez mais que existem outros porteiros porque, no seu esforço para entrar na lei, ele se concentra totalmente no primeiro. Quando está morrendo, pergunta por que, em todos aqueles anos, nenhuma outra pessoa solicitou entrada na lei. O porteiro responde-lhe que aquela porta havia estado aberta só para ele e que, agora que ele está morrendo, vai fechá-la”.

Bom, em sendo a narrativa de “Diante da Lei” uma parábola (mesmo que Kafka também a denomine “legende” ou lenda), ela tem de ter um objetivo. Um fim moral, melhor dizendo. Afinal, como ensina o citado Modesto Carone, a parábola “é uma narrativa que contém algum tipo de argumentação que termina numa moral da história. (Em Kafka, essa moral é suprimida ou encapsulada.) Em outros termos, a parábola é uma história consistente em si mesma, mas aponta para uma outra coisa – geralmente um ensinamento de vida – que só pode ser desentranhada daquilo que é efetivamente narrado”.

Mas qual seria essa “moral da história” na parábola “Diante da Lei”? Aí é que está o problema. Ou a beleza da coisa – se você é daqueles, como o grande Robert Frost (1874-1963), para quem fazer poesia é “dizer uma coisa significando outra”. Como registra Modesto Carone, em “O processo, depois que a ‘lenda’ é contada a Josef K. pelo capelão, ambos discutem o sentido da parábola e suas implicações. Por meio dessa discussão, Kafka deixa a critério do leitor a interpretação da narrativa e, em vez de oferecer a K. alguma clareza sobre sua situação (K., o réu, não sabe por quem, nem de que é acusado), o relato o deixa mais perplexo a respeito do processo de que é vítima”.

Na verdade, como muito ou quase tudo em Kafka, a coisa aqui está sujeita a mil interpretações. O absurdo existencial é a tônica da narrativa kafkiana, sendo “O processo” até um livro inacabado, talvez propositalmente. Mas podemos dar nossos pitacos, é claro.

Todavia, aproveitando essa deixa – um tanto kafkiana, confesso – de deixar as coisas em suspenso, apenas vamos tratar dessas interpretações/pitacos em uma próxima conversa. Na semana que vem, asseguro. Ou não?

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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O autor e seu processo  

Franz Kafka

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Há alguns anos estive em Praga. Era minha segunda vez na capital da República Tcheca. Dessa feita, amante da literatura e do direito, decidi visitar um café/restaurante que, me disseram, havia sido frequentado por Franz Kafka (1883-1924). Já não lembro o nome do estabelecimento (e olhem que gosto muito de cafés, bares e assemelhados). Recordo apenas que era fora do miolo turístico da cidade. E, não sei se foi a bebida, um vinho tcheco honesto, tomado à abundância, mas a lembrança que eu tenho do meu encontro com o autor de “O processo” (1925) foi de uma natureza bastante estranha. O café estava quase vazio, tirando um ou outro habitué, que parecia estar ali, sem que soubesse o porquê, detido/amalgamado, há mais de um século, à decoração decadente. Foi uma assustadora volta a um tempo já ido, ao qual, mesmo sem ter feito qualquer mal, receei ficar preso eu também. “Sinistro”, como dizem hoje.

Dito isso, posso desenvolver duas ou três ideias sobre Kafka e sua obra. O autor nasceu em Praga, à época parte do grande Império Austro-húngaro. Sua família era judia da região da Boêmia. Falavam alemão e ele assim foi educado. Nunca casou. Diz-se haver simpatizado com o socialismo. Muito importante para nós, Kafka escreveu em alemão. Romances (inacabados) e contos, sobretudo. Seu trabalho mistura o real e o fantástico, beirando o que hoje temos por realismo mágico. Daí decorre haver o termo “kafkiano” entrado nas línguas ocidentais para descrever situações absurdas como aquelas encontradas nos seus textos. Seus principais títulos são “A Metamorfose” (1915), o já citado “O Processo” e o “Castelo” (1926). Faleceu de tuberculose, ainda jovem. É tido com um dos grandes nomes da literatura alemã e mundial do século passado. Um cult.

E a impressão que tenho, quando se fala da presença do direito na literatura alemã, é que nos vem logo à mente Kafka e o seu “O processo”. Segundo consta, “O processo” foi escrito entre 1914 e 1915, embora só publicado postumamente, em 1925, por iniciativa de Max Brod (1884-1968), também escritor judeu, assim como amigo, biógrafo e executor literário de Kafka. Basicamente, o livro conta a estória do bancário Jofeph K., que, por um “crime” ou por razões nunca reveladas, nem a ele nem ao leitor, é preso, processado e condenado por um misterioso e inacessível tribunal. É verdade que “O processo” é um livro inacabado, mas um dos seus capítulos também dá a entender que esse foi um dos objetivos – objetivo paradoxal, sem dúvida, como de estilo – do seu autor. O absurdo existencial é a tônica da narrativa, em meio a sonhos, pesadelos e fatos do cotidiano. A trama é a loucura ou o absurdo, e daí, mais uma vez, enxergamos a consagração do adjetivo “kafkiano”, também para as questões ou os procedimentos do direito.

Na verdade, há várias interpretações sobre esse romance que é considerado uma das obras-primas da literatura alemã. “O processo” é Top 5 entre os romances do século XX, com certeza. Algumas são consistentes; outras, nem tanto. Já se disse, por exemplo, ser ele uma meditação/análise/crítica sobre a burocracia estatal, sobre o totalitarismo, sobre Deus, sobre estados psicológicos, sobre a desesperança e a alienação do homem moderno, sobre a própria vida de Kafka e por aí vai. Cada um desses temas destacadamente ou tudo isso junto e misturado.

Há, evidentemente, interpretações mais pé no chão. “O processo” seria tão somente uma análise, em forma de fábula, sobre instituições – e, em especial, os aparelhos policial e judicial – e sobre a impotência do cidadão em relação a elas. Uma fotografia poética da tão comum absurdez dos processos policiais/judiciais, hoje ditos “kafkianos”, a que são submetidos sobretudo os mais vulneráreis. Uma interpretação, digamos, mais sociológico-jurídica. E bem atual, convenhamos.

E, claro, tem a minha interpretação. Que processa literatura, Praga, um café misterioso, muito vinho e o medo de ficar preso, sem ter feito mal algum, a um passado sem futuro.

É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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Como um governante se sente à vontade para banir Kafka e Machado de Assis?

Por Rodrigo Casarin

A notícia: a Secretaria de Educação de Rondônia preparou um documento apontando mais de 40 livros que deveriam ser retirados das bibliotecas de escolas púbicas da cidade porque seriam impróprias para os jovens. No índex, títulos como “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis”, “Poemas Escolhidos”, de Ferreira Gullar, e “O Castelo”, de Franz Kafka. O governo estadual negou. Professores disseram que já tinham sim recolhido alguns volumes. A caça aos autores existiu. Deu-se o imbróglio e, aparentemente, os censores voltaram atrás. O governador de Rondônia é Marcos Rocha, do PSL, adorador de Bolsonaro.

Escrever o quê? Que a arte está sendo perseguida? Bato nessa tecla há três anos. Que a censura já encontrou seu caminho para vigorar no país? Também não é novidade por aqui. Que é um absurdo tudo isso que está acontecendo? E quem se importa, além de um milhão ou outro num país com mais de 200 milhões? É tanto descalabro para tudo que é lado que anda difícil ser minimamente original.

Mas fui dormir com a seguinte pergunta: o que leva alguém a se sentir à vontade para censurar até os clássicos? O que leva um governante a achar razoável dizer para os colegas: “Vamos banir uns livros aí? Um nome ou outro só. Mário de Andrade, Ferreira Gullar, Carlos Heitor Cony, Rubem Fonseca – este é bem perigoso, tem que dar fim em quase tudo que encontrar dele -, Euclides da Cunha… Tem também uns nomes estranhos, Kafta, Kafka, sei lá, Allan Poe… Vamos banir. Ah, e o Machado. Tira o Machado das estantes, parece que ele era comunista”. Daí o outro tosco retruca: “Pô, que boa ideia. Vamos fazer isso sim, talquei?”

Bem, andam se sentido confortável principalmente porque a imensa maioria das pessoas não está nem aí para nada que vá além do próprio umbigo. E o próprio umbigo é: “Isso vai mudar meu dia? Não? Então dane-se. E daí que não pode mais estudante ler livro de defunto autor? Nem sabia que morto escrevia”. No boteco da esquina, ninguém dá a menor bola para o que está acontecendo. Há inúmeras razões para isso, claro, mas a consequência está aí: o povo paralisado enquanto o Brasil toma um caminho assustador. E mesmo os que se importam, os que de alguma forma reagem, dificilmente levantam a bunda para tal: é resistência pela internet ou nada.

Dessa vez voltaram atrás. Na próxima – que virá –, talvez não voltem. Vamos tuitar que tudo é um grande absurdo, que o Brasil está perdido. Até que alguém proponha, e talvez emplaque, algo ainda mais estúpido.