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Um caso concreto de direito penal do inimigo

Por Rogério Tadeu Romano*

Transcrevo trecho do que informou o portal de notícias CARTACAPITAL, em 15.4.24:

“A decisão do corregedor nacional de Justiça, Luís Felipe Salomão, de afastar a juíza Gabriela Hardt e três desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) traz à tona, mais uma vez, um fantasma a assombrar o que restou da Lava Jato: uma fundação que seria criada para gerenciar um orçamento bilionário supostamente voltado a ações contra a corrupção.

O afastamento decorre da inspeção conduzida pelo CNJ na 13ª Vara Federal de Curitiba e no TRF-4, responsáveis pelos processos da Lava Jato na primeira e na segunda instâncias, respectivamente.

A investigação identificou indícios de conluio com o objetivo de destinar valores bilionários para serem usados com exclusividade por integrantes da força-tarefa.

No âmbito desses acordos, a Lava Jato repassou à Petrobras 2,1 bilhões de reais, entre 2015 e 2018, período em que a empresa era investigada nos Estados Unidos. Cerca de 2,5 bilhões de reais, por fim, serviriam para criar uma fundação que supostamente empreenderia ações contra a corrupção.”

Ao final, por maioria de votos, o colegiado revogou o afastamento da juíza Gabriela Hardt – ex-substituta do hoje senador Sergio Moro na 13ª Vara Federal de Curitiba – e do juiz Danilo Pereira Júnior. De outro lado, o conselho manteve o afastamento dos desembargadores Carlos Eduardo Thompson Flores e Lenz Loraci Flores De Lima, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

Destaco o que o portal Migalhas informou em 15.3.2019:

“Conforme Moraes, a execução e fiscalização do cumprimento de obrigações assumidas pela Petrobras no exterior, ainda que visem à mitigação da responsabilidade da empresa por fatos relacionados à operação Lava Jato, não correspondem às atribuições específicas dos membros do MPF em exercício na força-tarefa, ou com a competência jurisdicional do juízo da 13ª vara Federal.

“A atuação do MPF perante o Juízo da 13ª Vara Federal nos inquéritos e nas ações penais da Lava-Jato, a priori, jamais tornaria esse órgão prevento para a “execução” do acordo celebrado nos Estados Unidos, mesmo considerada a relação entre o Non Prosecution Agreeement e os fatos investigados no Brasil. (…)  O Non Prosecution Agreeement teve por objeto os atos ilícitos sujeitos à legislação norte-americana, que, embora relacionados, não se confundem com os ilícitos sujeitos à jurisdição brasileira.”

O ministro destacou ainda que, não bastasse isso, o conteúdo do acordo estabeleceu inúmeras providências não previstas no Non Prosecution Agreement, que apenas previu o creditamento da multa em favor do Brasil, sem nenhum condicionamento relacionado à constituição de uma pessoa jurídica de direito privado ou afetação desse montante a atividades específicas.

“Dessa maneira, em princípio, parece ter ocorrido ilegal desvirtuamento na execução do acordo realizado entre a Petrobras e o Department of Justice (DoJ)/Securities and Exchange Commision (SEC), que, primeira e discricionariamente, definiu os Procuradores da República do MPF do Paraná como as únicas autoridades brasileiras previstas no termo internacional, para, na sequência, em desrespeito ao Princípio do Juiz Natural, definir qual seria o juízo competente para a homologação do segundo acordo – 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba -, e, por fim, estipulou cláusulas subjetivamente escolhidas pelas partes para destinação dos valores da multa e inexistentes no acordo original.”

 Chama a atenção trecho do despacho emanado do ministro Salomão:

“Destarte, constatou-se um conjunto de atos comissivos e omissivos singulares que são efetiva e essencialmente anômalos (quem, em sã consciência, concordaria em destinar bilhões de reais de dinheiro público para uma fundação privada, de maneira sigile sem nenhuma cautela), sendo que tais ações da reclamada [Hardt], de uma maneira ou outra, culminariam na destinação do dinheiro para fins privados, o que só não ocorreu por força de decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal”, como se vê de trecho da decisão proferida pelo ministro Salomão.

Ao que se sabe a Corregedoria Nacional de Justiça instaurou reclamação disciplinar para apurar a conduta da juíza federal Gabriela Hardt, que atuou na 13ª Vara Federal de Curitiba, na qual tramitam os processos da Operação Lava Jato. O pedido, ajuizado pelo advogado Antônio Celso Garcia, alega parcialidade da magistrada na condução de ações e violação do princípio da impessoalidade.

A Reclamação Correcional tem base no art.103-B, § 4º, III, da Constituição Federal, e arts. 72 e seguintes do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça.

O acolhimento desse instituto correcional pressupõe a caracterização, ao menos em tese, de tumulto processual, consistente em erros procedimentais, abusos e atos praticados no processo ao arrepio da lei.

É sob esse aspecto que deve se entender o citado fato.

Destaco ainda o que acentuou o Estadão, em sua edição de 16.4.24, que “no caso de Gabriela, Salomão falou em “atos anômalos” e hipóteses de peculato e prevaricação e apontou “a existência de indícios de cometimento de graves infrações disciplinares”, com a suposta violação do Código de Ética da Magistratura Nacional. A avaliação do ministro se refere à conduta da magistrada na “gestão caótica de valores provenientes de acordos de colaboração e de leniência” na Lava Jato.”

Acresça-se a essa última reportagem que “a suspeita que mais pesa sobre Gabriela, no entendimento de Salomão, é a homologação de acordo cível entre Petrobras e força-tarefa da Lava Jato – a proposta de criação de uma fundação com dinheiro de multa de R$ 2,5 bilhões paga pela petrolífera nos EUA. O acordo foi barrado pelo Supremo Tribunal Federal.”

A chamada fundação, que, para tanto que seria criada, era uma imoralidade. Esses formidáveis recursos obtidos dessas multas cobradas da Petrobras por aqueles atos contra a administração pública e lavagem de dinheiro, iriam para uma fundação, passando por cima do controle da chefia do Parquet, a tal ponto que, numa corajosa e correta intervenção a então PGR conseguiu matar na origem essa fundação (sinistra) diante de decisão correta do STF, da lavra do ministro Alexandre de Moraes. A vítima não foi a lava-jato, mas sim a União. Era a União Federal quem iria decidir para onde os recursos deveriam ser carreados. Para tanto, era o caso da educação pública no Brasil ser beneficiada com esses recursos oriundos de operações podres.

Foi a chamada “operação lava-jato” um exemplo patético do chamado direito penal do inimigo.

Para Manuel Monteiro Guedes Valente(Direito Penal do inimigo e o terrorismo, Almedina, pág. 101), em conclusão, “não pode a política criminal, que dota o Direito Penal do como e do se da punibilidade por meio das valorações e proposições jurídico-constitucionais, como ciência imbuída em vetores e princípios como o da legalidade constitucional ou do Estado de direito democrático, da culpabilidade, da humanidade e da ressocialização do delinquente, deixar-se embrulhar em uma lógica de punibilidade por exigência de leão americano ferido, mas deve ser uma verdadeira ciência que estuda o fenômeno e fundamenta a sua inserção ou deserção da legislação penal”.

Ora, essa teoria do doutrinador alemão “Günter Jakobs”, denominada como “Direito Penal do Inimigo” vem, há mais de 20 anos, tomando forma e sendo disseminada pelo mundo, conseguindo fazer adeptos e chamando a atenção de muitos.

Como disse Bruno Fiorentino de Matos (Direito Penal do Inimigo), de uma forma sintética, essa Teoria tem como objetivo a prática de um Direito Penal que separaria os delinquentes e criminosos em duas categorias: os primeiros continuariam a ter o status de cidadão e, uma vez que infringissem a lei, teriam ainda o direito ao julgamento dentro do ordenamento jurídico estabelecido e a voltar a ajustar-se à sociedade; os outros, no entanto, seriam chamados de inimigos do Estado e seriam adversários, inimigos do estado cabendo a estes um tratamento rígido e diferenciado.

Os inimigos perdem o direito às garantias legais. Não sendo capazes de adaptar-se às regras da sociedade, devem ser afastados, ficando sob a tutela do Estado, perdendo o status de cidadão.

Jakobs vale-se dos pensamentos de grandes filósofos como Rosseau, Hobbes, Kant e Fichte para sustentar suas teorias, buscando agregar valor e força aos seus argumentos.

Assim, aos cidadãos delinquentes, terão proteção e julgamento legal; aos inimigos, coação para neutralizar suas atitudes e seu potencial ofensivo e prejudicial.

Os três pilares que fundamentam a Teoria de Jakobs, que são: antecipação da punição do inimigo; a desproporcionalidade das penas e relativização ou supressão de certas garantias processuais e a criação de leis severas direcionadas à indivíduos dessa específica engenharia de controle social (terroristas, supostos líderes de facções criminosas, traficantes, homens-bomba, etc.), poderiam funcionar perfeitamente em uma sociedade que tivesse condições e capacidades especiais para distinguir entre os que mereceriam ser chamados de cidadãos e os que deveria ser considerados os inimigos.

Observo o que transcrevo do artigo de Charloth Back (Mensagens secretas da lava-jato: autoritarismo e direito penal do inimigo (político):

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 “No contexto brasileiro, o Direito Penal do Inimigo tem sido usado na autoproclamada missão do Judiciário e do Ministério Público de “combate à corrupção”. Lula e demais políticos da esquerda estão sendo tratados como verdadeiros inimigos e não como cidadãos acusados em um processo crime; ou seja, os réus aqui não são sujeitos de direito, ou mesmo alvos de proteção jurídica. São, na verdade, objetos de coação, desprovidos de direitos e da proteção jurídica mínima a que todos os seres humanos têm direito, mesmo aqueles investigados por crimes. Cabe lembrar que a utilização do Direito Penal do Inimigo no Brasil não é uma inovação da Operação Lava Jato e de seus articuladores – nas operações policiais nas comunidades mais pobres e nas periferias, a regra é tratar tanto os criminosos como a população em geral de maneira equiparada a “inimigos sociais”, vide o episódio dos 80 tiros contra uma família negra no Rio de Janeiro.

Os métodos jurídicos que têm sido usados na Operação Lava Jato, principalmente quando se refere à investigação penal, são extremamente questionáveis face à nossa Constituição e às garantias mínimas do devido processo legal do Direito Internacional. Obtenção de delação premiada por meio de acosso, grampos em escritório de advocacia, divulgação de áudios obtidos de forma ilícita, como no caso da conversa entre Lula e a então presidenta Dilma Rousseff, e a exibição pública dos acusados, configuram uma série de condutas claramente ilegais.

A franca utilização do Direito Penal do Inimigo ao longo de toda Operação ficou evidenciada nos áudios e nas mensagens trocadas entre o ex-juiz Sérgio Moro, o procurador federal Deltan Dallagnol e membros do MPF, responsáveis pela condução dos processos, e foi identificada principalmente pela persecução seletiva, pela assimetria entre a defesa e a acusação, pela parcialidade do juízo, em todas as instâncias, e pela colaboração estreita com a mídia. Em primeiro lugar, é inegável que há uma persecução seletiva, minuciosamente instruída pelo ex-juiz e combinada nos mínimos detalhes com o MPF, por meio de sugestões sobre encaminhamentos, reprovação sobre a atuação de procuradores, criação de denúncia anônima, entre outras. Todas elas denotam uma conduta incestuosa: o Poder Judiciário, que deveria ser o garantidor de direitos é que viola as principais garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do julgamento imparcial.

Em segundo lugar, existe um completo desequilíbrio entre a defesa e a acusação, a qual sabe de antemão quais serão as decisões do Juízo, recebe orientações processuais sobre supostas provas e evidências e combina estratégias jurídicas e políticas com o ex-magistrado. Essa situação é típica de uma jurisdição inquisitória, que se arroga das funções de investigar, acusar e julgar, e que trata a defesa dos réus como se fosse uma mera formalidade, desprovida de qualquer possibilidade de influência nos rumos do processo, mitigando sua real importância no exercício da justiça e das garantias democráticas.

Em terceiro lugar, o julgamento de Sergio Moro se mostrou totalmente parcial e pendente à condenação dos réus da Lava Jato, independentemente de qualquer prova concreta, por razões mais políticas do que jurídicas. Esse aspecto é corroborado por declarações contrárias aos réus e pela busca de evidências e de informantes por parte do ex-juiz para auxiliar a acusação. Em quarto lugar, com a finalidade de criar uma mobilização popular a favor da Operação Lava Jato e de algum apelo social por conta da dita missão de “combate à corrupção”, houve – e há – uma íntima cooperação com setores da mídia, demonstrada pela articulação na ocasião da possível concessão de entrevista pelo ex-presidente às vésperas das eleições de 2018, o que nos dá a certeza de que este processo passa muito distante de um processo penal jurídico; é um processo penal político, com objetivo explícito de influenciar diretamente as últimas eleições e de garantir o retorno dos grupos conservadores ao poder.

Por trás de um discurso pretensamente democrático e de “defesa dos bens públicos”, está um autoritarismo judicial dissimulado, típico de Estado de Exceção e da aplicação do Direito Penal do Inimigo. No contexto da globalização neoliberal, o Direito, cada vez mais, tem sido usado para consolidar a exclusão e a subalternização de certos grupos sociais, raciais e políticos a favor do privilégio de outros. As normas e instituições jurídicas são empregadas de forma traiçoeira, visando minar os processos políticos emergentes e tendendo à violação sistemática dos direitos, o que constitui a prática do lawfare: a guerra por via jurídica, trazida da jurisprudência do direito militar, na qual se neutraliza o inimigo sem recorrer à guerra, somente por meio da lei e de outros instrumentos jurídicos institucionalizados. O Direito serve como uma arma para atacar grupos adversários, retirar-lhes a possibilidade de defesa e diminuir – vale dizer, “legalmente” – suas possibilidades de reação.”

Foi um novo tenentismo.

Sergio Moro e os procuradores da República daquela operação citada se constituíram a própria União Democrática Brasileira (UDN) de toga. Sabe-se que a UDN foi um partido de direita que agia em consonância aos interesses capitalistas americanos e da elite brasileira.

Assim agiram em função do que chamavam operação Lava Jato.

Uma aproximação excessiva entre juiz e parte contamina a imagem da Justiça, que deve ser imparcial.

Excessos foram cometidos: prisões preventivas alongadas, visando ao desespero dos investigados, via delação premiada (um instrumento de origem Filipina, em 1603), uma forma de tortura moderna; a condução coercitiva feita para desmoralizar e diminuir a força psicológica dos conduzidos à polícia para depor, impondo algo contra si mesmo. Todos esses desvios foram detectados pelo Supremo Tribunal Federal na defesa dos preceitos fundamentais. Somo ainda a isso as anulações, pelo STF, de decisões condenatórias feitas sem que se desse à defesa a palavra, após as alegações finais promovidas pelos réus que assinaram acordos de delação com o Parquet. Isso era uma afronta ao devido processo legal. A fixação da condenação em segunda instância em afronta ao princípio da presunção de inocência foi outro ponto onde se feriu direitos e garantias individuais.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

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