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Reportagem especial

De Província à Estado: o RN no contexto do golpe republicano de 1889

Há 132 anos o Brasil deixava de ser a única monarquia do continente americano e passava a ser uma República como seus vizinhos.

Nesta data o Rio Grande do Norte deixava de ser uma Província pobre para se tornar um Estado na mesma condição econômica.

O que mudou foi o poder que passou para uma nova elite que se misturou com uma parte da que dominava o RN nos últimos anos do Império.

As primeiras notícias sobre o golpe republicano chegaram através de telegramas assinados José Leão e Aristides Lobo, potiguares que residiam no Rio de Janeiro onde a história era descrita.

Todos pegos de surpresa ficaram meio sem saber o que fazer nas primeiras horas até que o último presidente provincial Antônio Basílio Ribeiro Dantas formou uma junta composta por chefes republicanos que indicou Pedro Velho de Albuquerque Maranhão chefe do governo provisório no RN no dia 17 de novembro. Nesta etapa de transição ele ficaria pouco tempo no cargo.

A mudança de regime ocorreu de forma pacífica no Rio Grande do Norte, sem a necessidade de envolvimento de militares, inclusive. “A República na província potiguar nascia tranquilamente, como se fosse a transmissão formal de cargo de um partido para outro, de acordo com a praxe imperial, e não uma mudança radical de um regime por outro, por definição, totalmente diferente”, afirma o professor Almir Bueno no livro Visões de República: ideias e práticas políticas no Rio Grande do Norte (1980-1895).

Diferente do que ocorreu em nível nacional, a chegada da República no Rio Grande do Norte teve protagonismo dos civis.

A costura política foi feita através de acordos entre elementos dos antigos partidos Liberal, Conservador e Republicano, inclusive com o acolhimento de ex-monarquistas.

A principal autoridade militar no RN era Felipe Bezerra Cavalcanti, que segundo Câmara Cascudo, em citação de Almir Bueno, teria recebido ordens de Benjamim Constant para empossar elemento local de confiança na chefia do governo.

Ele teve a oportunidade de assumir o governo provisório no Estado como aconteceu em outras unidades, mas não nutria ambições políticas e se julgava incapaz para o cargo.

“O fato é que no Rio Grande do Norte desde o início, os civis, republicanos e adesistas, controlaram a transição política para a República, confirmando a tradição civilista predominante na elite política imperial”, frisa Almir Bueno.

A seguir alguns tópicos da construção do Estado do Rio Grande do Norte Republicano.

Movimento republicano do RN nasce em Caicó

Nas vésperas do golpe republicano, o Rio Grande do Norte era uma província frágil, economicamente dependente e uma sociedade agrária e conservadora. Nada muito diferente dos seus vizinhos do que na época era chamado de “Norte”.

Somente 3.941 potiguares tinham direito ao voto, o que correspondia a apenas 1,4% da população na época.

As eleições nos tempos do imperador no RN eram marcadas pela corrupção e clientelismo.

Foi nesse contexto que surgiu o movimento republicano por estas bandas. Forjado no país a partir do manifesto republicano de 1870 e depois em 18 de abril de 1973 durante a Convenção de Itu, o Partido Republicano nunca foi dominante nas eleições. A agremiação estava concentrada nos atuais estados dos Sul e Sudeste enquanto que no “Norte” (que congregava os atuais Norte e Nordeste) só havia Partido Republicano formalizado no Rio Grande do Norte e em Pernambuco no dia do golpe republicano.

Ainda assim o movimento no RN era fraquíssimo se comparado com Pernambuco, que tinha uma tradição republicana que remonta as primeiras décadas do Século XIX.

Mossoró, protagonista no movimento abolicionista, teve participação apagada na defesa da mudança de regime. No interior do Estado esse protagonismo ficou com a então cidade de Vila do Príncipe, atual Caicó.

A cidade estava em decadência econômica nos anos 1880, mas detinha muita força política através dos grupos rivais lideradas pelas famílias Batista (Conservadores) e Medeiros (Liberais).

O protagonismo caicoense no movimento republicano pode ser representado na figura do jornalista Janúncio da Nóbrega Filho, redator da primeira coluna republicana em jornal monarquista no RN. Ele escrevia nas páginas de “O Povo”.

O peso do movimento republicano na então Vila do Príncipe se deu através da influência de fazendeiros seridoenses que estavam insatisfeitos com a decadência econômica da região.

A antecipação do republicanismo de Caicó em relação à capital também se deu pelo investimento que a elite agrária fez na educação dos filhos que eram enviados para estudar em grandes centros urbanos onde conheciam as ideias republicanas como explica Almir Bueno:

“Aparentemente surpreendente, dentro dos marcos dessa sociedade tradicional, foi a decisão de alguns fazendeiros da região, que teria uma importante consequência no desenvolvimento republicano seridoense, a ponto de fazê-lo antecipar-se ao próprio republicanismo da capital. Com efeito, apesar de serem constantemente criticados pela falta de iniciativa e pelo espírito rotineiro e infenso ao progresso e à modernização, esses sertanejos tomaram uma atitude à primeira vista  contraditória com a imagem de conservadorismo que tinham: em meados da década de 1880, enviaram seus filhos para estudar fora, não apenas nos seminários de formação religiosa, como era comum, mas principalmente nas faculdades de direito do Recife e medicina na Bahia”.

Entre esses jovens estava Janúncio da Nóbrega que fundou o primeiro núcleo republicano no Rio Grande do Norte em 1886 quando tinha apenas 17 anos. Mais tarde esse grupo seria chamado de Centro Republicano Seridoense.

Para Almir Bueno o pioneirismo do Seridó em relação a Natal se deu também pela falta de tradição de independência da capital, bem diferente dos coronéis sertanejos.

A influência dos potiguares emigrados no movimento republicano

Como demonstramos no caso de Janúncio Nóbrega foi através do envio de jovens da elite para estudar nos grandes centros do país que as ideias republicanas chegaram ao Rio Grande do Norte.

Em Recife, o Janúncio conheceu o natalense Braz Mello e os dois integraram o movimento republicano na capital pernambucana, inclusive assinando um manifesto.

Eles conheceram e se tornaram discípulos do líder republicano incendiário Silva Jardim, que pregava a execução da família imperial.

No Rio de Janeiro, João Avelino e José Leão eram os contatos com os republicanos do RN. Eles faziam parte de uma pequena colônia de 2.104 potiguares que habitavam a corte.

A eles se juntavam Daniel Ferro Cardoso e Tobias do Rego Monteiro, que se tornaria braço direito de Rui Barbosa e opositor da oligarquia Maranhão nos primeiros anos da República.

Mas o mais famoso republicano potiguar seria Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, que se formou em medicina no Rio de Janeiro de 1881. Primeiramente ele se dedicou à causa abolicionista e só depois se entregou ao republicanismo. Somente no final de 1888 e após hesitar bastante ele decidiu se colocar a frente do movimento republicano no RN.

Ele fundaria o Partido Republicano do Rio Grande do Norte em janeiro de 1889, seria o primeiro governador do Estado e líder da oligarquia Albuquerque Maranhão que ficaria a frente dos destinos dos potiguares por quase 30 anos.

Os primeiros anos da República no RN e a primeira oligarquia

A chegada da República alterou a forma como os representantes políticos se elegiam. O novo regime acabou com o voto censitário que se baseava em critérios de renda.

Passavam a votar todos os homens alfabetizados com idade acima de 21 anos. O voto de cabresto foi a fórmula encontrada pela elite agrária para se manter no poder.

O comando do RN ficou nas mãos de políticos do Seridó e da capital. Seria Pedro Velho de Albuquerque Maranhão o maior beneficiário da troca de regime, mas para se consolidar e fundar a primeira oligarquia familiar no RN republicano foi necessário enfrentar alguns percalços.

O primeiro governador do Rio Grande do Norte assumiu a função de forma provisória de curta duração. Foi acusado de perseguir adversários pelo jornalista Hermógenes Tinôco na Gazeta do Natal.

Pedro ficaria na chefia de governo por apenas 20 dias sendo substituído pelo paulista Adolfo Gordo, mudança que foi considerada um ato de desprestígio do Governo Provisório com a elite política potiguar. Essa passagem pelo cargo foi tumultuada e ele seria substituído em 8 de fevereiro de 1890 pelo também paulista Joaquim Xavier da Silveira Junior que embora viesse de fora era afinando com Pedro Velho.

Silveira Junior soube fazer acomodações políticas nomeando Pedro Velho 1º vice-governador ficando no cargo até o mês de setembro. Foi nesse período que ele conseguiu formar a chapa vencedora para compor a Constituinte. Passada a eleição, Silveira Junior deixou o Governo para o vice, Pedro Velho, até que um novo governador fosse nomeado. O escolhido foi João Gomes Ribeiro, um sergipano com atuação política abolicionista e republicana em Alagoas. Ele tomou posse em novembro de 1890 para concluir o processo de transição. A relação política dele com a elite política potiguar não foi das melhores e ele montou uma equipe com adversários de Pedro Velho.

O líder político potiguar conseguiu virar o jogo menos de um mês depois obtendo a troca de João Gomes pelo juiz Manuel do Nascimento Castro e Silva.

Em menos de um ano, Pedro Velho derrubara dois governadores, mas ele passaria os meses seguintes em situação de desprestígio com o poder central por ter votado em Prudente de Morais na eleição que manteve Deodoro da Fonseca pela via indireta no poder.

Somente em 12 de julho de 1891 o primeiro governador constitucional do RN seria eleito. Miguel Castro, um deputado federal, foi escolhido pelos deputados estaduais em um pleito indireto.

A queda de Deodoro da Fonseca permitiu a ascensão de Pedro Velho que liderou um golpe para derrubar Miguel Castro em 28 de novembro de 1891 com a ajuda de tropas militares e correligionários armados.

Foi montada uma junta governativa liderada pelo Coronel Lima e Silva que permaneceu no poder até a eleição indireta de Pedro Velho pela Assembleia Legislativa em 31 de janeiro de 1892. A posse ocorreu em 28 de fevereiro daquele ano.

“O período em que Pedro Velho esteve a frente do governo estadual, porém não foi fácil, como poderia parecer à primeira vista. A oposição, normalmente dividida em correntes irreconciliáveis por motivos que vinham do Império, constatando não ter chances eleitorais reais, passou a apostar que só uma solução golpista, ao sabor das alterações da conjuntura nacional, poderia proporcionar-lhe a volta ao poder”, afirma o pesquisador Almir Bueno.

Ainda assim Pedro Velho elegeria o sucessor Joaquim Ferreira Chaves 1895. Este seria o primeiro governador do RN eleito pelo voto direto. Pedro Velho permaneceria no Senado até morrer em 9 de dezembro de 1907. Ele fundou a primeira oligarquia familiar do Estado elegendo o irmão Alberto Maranhão e o genro Tavares de Lyra governadores.

Por 16 anos Fabrício Gomes de Albuquerque Maranhão, um de seus irmãos, foi presidente da Assembleia Legislativa, então conhecida como Congresso Estadual.

A oligarquia Albuquerque Maranhão dominaria o RN por quase 30 anos quando foi sucedida pela liderança política de José Augusto Bezerra de Medeiros, do Seridó, região pioneira no movimento republicano. Ele ascendeu ao poder turbinado pela força da economia algodoeira.

Para saber mais sobre o nascimento da República no Rio Grande do Norte sugerimos a leitura das fontes pesquisadas para esta reportagem:

BUENO, Almir de Carvalho. Visões de República: ideias e práticas no Rio Grande do Norte (1880/1895). Natal: Edfurn – editora da UFRN, 2002.

MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à História do Rio Grande do Norte – 4 Ed. – Natal, RN: Flor do Sal, 2015.

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Por que a monarquia caiu no Brasil?

Pintura colorizada de Dom Pedro II – Wikimedia Commons

Por Wagner Gutierrez Barreira

Aventuras na História

O vapor Alagoas, que levava a família imperial para o exílio em novembro de 1889, afastava-se do continente sul-americano para o mar aberto, ao largo da costa da Ilha de Fernando de Noronha. Emocionados, dom Pedro e seus parentes resolveram enviar uma última mensagem à pátria.

Apanharam um pombo a bordo e discutiram o conteúdo de seu derradeiro recado em território brasileiro. Escolheram uma única palavra – saudade – e soltaram o bicho, que deveria voar em direção ao país com a homenagem singela.

Mas o pombo não tinha vocação para correio. Suas asas haviam sido aparadas. O resultado: a “saudade” foi ao fundo do oceano com seu portador, a poucos metros do navio.

Talvez a cena da última tentativa de comunicação entre a família imperial e o povo brasileiro funcione como metáfora do que foram os anos da monarquia. As intenções sempre eram as melhores. As atitudes, por vezes desastrosas.

O órfão da nação

O menino tinha apenas 5 anos quando foi arrancado da cama e levado da Quinta da Boa Vista para o Paço Imperial do Rio de Janeiro. Assustado, chorava sem parar, encolhido no banco de trás da carruagem. No caminho, o veículo foi parado por populares, que tiraram os cavalos e se encarregaram de levar eles mesmos a carga preciosa ao seu destino. Havia cheiro de pólvora, vindo de tiros de artilharia.

Uma multidão tomava as ruas. O pequeno Pedro, tornado imperador do Brasil naquela noite de 7 de abril de 1831, ocuparia o lugar do pai, que acabara de abdicar. Sua mãe, Maria Leopoldina, havia morrido quando ele era um bebê. Enquanto o garoto era levado ao paço, Pedro I já estava a bordo da fragata inglesa Warspite. Pai e filho nunca mais se viram outra vez.

A abdicação de D. Pedro I / Wikimedia Commons

Por quase meio século, o chamado “órfão da nação” ocuparia o papel de fiador do império. O golpe que lhe garantiu a maioridade aos 14 anos transformou Pedro de Alcântara no condutor do Segundo Reinado. Enquanto os vizinhos latino-americanos se fragmentavam em pequenas repúblicas, comandadas por caudilhos, o Brasil, grande e unido, era visto pelo resto do mundo como uma ilha de civilização em meio à barbárie.

Pedro foi criado por tutores (o primeiro deles foi o Patriarca da Independência, José Bonifácio) e por funcionários do palácio. Sua formação foi uma só: seus professores trataram de lhe ensinar como ser magnânimo, justo, educado, comprometido e fiel ao Brasil.

Pedro cumpriu à risca o que lhe foi ensinado. Quando morreu no exílio, aos 66 anos, em 1891, seu obituário no jornal The New York Times afirmou que ele “foi o mais ilustrado monarca do século”.

Dom Pedro II foi um escravo de seu país desde a abdicação de seu pai. Seus passos eram vigiados, suas atividades se transformavam em relatórios analisados no Parlamento. O Marquês de Itanhaém, o tutor que sucedeu Bonifácio, preparou um regulamento para o garoto que incluía acordar diariamente às 7 da manhã. A partir daí, cada hora tinha uma atividade específica e até as conversas seguiam um tema definido.

A rubrica “diversão” durava duas horas diárias. O dia acabava às 21h30 e o sono era precedido de mais leituras. O objetivo do tutor, como relata José Murilo de Carvalho, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, era criar um paladino.

“Itanhaém queria formar um monarca humano, sábio, justo, honesto, constitucional, pacifista, tolerante”, afirma Carvalho na biografia D. Pedro II. “Isto é, um governante perfeito, dedicado integralmente a suas obrigações, acima das paixões políticas e dos interesses privados.”

A vida pessoal de Pedro, como se vê, não pertencia a Pedro. Visitas de parlamentares para checar in loco a educação do príncipe eram comuns. O Parlamento recebia relatórios sobre os avanços do futuro monarca. O de 1837, por exemplo, dava conta que Pedro falava e escrevia em francês e era capaz de traduzir do inglês.

Mas, como registra José Murilo de Carvalho em seu livro, o deputado Rafael de Carvalho criticava a falta de exercícios e divertimento. “Segundo os observadores, era um menino tímido, ensimesmado e, seguramente, muito carente de afeto”, definiu o historiador.

O jovem Dom pedro II / Crédito: Wikimedia Commons

Imperador na puberdade, dom Pedro logo encontrou uma palavra que o acompanharia ao longo de toda a vida para descrever as cerimônias, rapapés e atividades inerentes ao mandato: “maçada”.

Fez uso dela ao comemorar seu primeiro aniversário na condição de imperador, quando anotou em seu diário, depois de um dia que começou às 7 da manhã e incluiu missa, te-deum, beija-mão e teatro: “Agora, façam-me o favor de me deixarem dormir. Estou muito cansado, não é pequena a maçada”. Diversos diplomatas, ao longo de seu reinado, observaram o tédio que brotava do imperador brasileiro. Sobravam palavras como triste, infeliz e enfadado para descrevê-lo. Para Carvalho, porém, tratava-se de uma máscara. “O laconismo e o aparente enfado eram, sem dúvida, recursos de que o rapaz fazia uso para acobertar a enorme insegurança.”

Talvez o golpe mais duro na vida do jovem imperador tenha sido seu casamento – e a vida em família. Para começo de conversa, encontrar uma noiva foi tarefa complicada. O imperador governava um país distante e atrasado. Não havia no Rio de Janeiro nada que nem de perto lembrasse uma corte (diga-se, os títulos nobiliários do império brasileiro não eram herdados).

A cidade era impraticável no verão – e ainda havia a fama de garanhão do pai de Pedro II. Para piorar, o imperador era um sujeito alto e de lindos olhos azuis, mas sua voz… “Bastava que abrisse a boca para que essa boa imagem inicial rapidamente se esvanecesse: a voz era aflautada, fina e aguda, como em falsete, mais própria de um adolescente em início da puberdade do que de um adulto”, registra o jornalista Laurentino Gomes no recém-lançado 1889.

A princesa carola

O encarregado de encontrar uma princesa para dom Pedro II, Bento da Silva Lisboa, rodou a Europa por dois anos em busca de uma candidata. Acabou por negociar com o rei Fernando, das Duas Sicílias, o casamento do imperador com sua irmã mais nova, Teresa Cristina. O ramo Bourboun de Fernando era uma casa de pouco prestígio na nobreza europeia e o rei tinha fama de déspota. Ainda assim, o noivo gostou do que viu ao receber um retrato da futura imperatriz.

A achou “mui bela”. O casamento foi feito por procuração, e, um século antes da invenção do Photoshop, Pedro não demoraria a se arrepender do comentário. Quando Teresa Cristina chegou ao Rio, em 3 de setembro de 1843, o imperador ficou mui decepcionado.

Ela era quase 4 anos mais velha, baixa, manca e feia. “Enganaram-me, Dadama”, queixou-se à sua aia. Depois, chorou no ombro do mordomo imperial. Do casamento nasceu Afonso, em 1845, que morreu aos 2 anos. No ano seguinte chegou Isabel e, depois, Leopoldina. Em 1848 nasceu Pedro Afonso, que faleceu ainda bebê.

O imperador ofereceu às filhas o mesmo ritmo de estudos a que foi submetido na infância. “A rotina diária de estudos prolongava-se por nove horas e meia, seis dias por semana. Incluía aulas de latim, inglês, francês e alemão, história de Portugal, da França e da Inglaterra, literatura portuguesa e francesa, geografia e geologia, astronomia, química, física, geometria e aritmética, desenho, piano e dança”, escreve Laurentino Gomes. “Mais tarde, passaram a incluir também o italiano e o grego, história da filosofia e economia política. No começo, o imperador encarregava-se pessoalmente das aulas de geometria e astronomia. Chegou a escrever um tratado sobre astronomia para as princesas.”

Tanta cultura assim, porém, acabou fazendo mal às moças. A historiadora Mary del Priore, autora de O Castelo de Papel, sobre Isabel e seu marido, Gastão de Orléans, o Conde d’Eu, afirma que a erudição não deixou marcas na princesa Isabel. “Horas de aulas particulares massivas não significam a justa apreensão da matéria”, diz Mary. “Que o diga a cartinha enviada ao pai quando chegou ao Recife: ‘O que mesmo haviam feito por lá os holandeses?’ Ela não se lembrava mais.” A historiadora vai além: “Suas leituras eram censuradas pelo pai e pelo marido e seus melhores conhecimentos eram focados na vida doméstica”.
O casamento de Isabel, tal como o do pai, foi um grande arranjo. Gastão de Orléans, filho do Duque de Namours, chamava a futura esposa em correspondência com o pai de Negócio nº 1 (o Negócio nº 2, claro, era a princesa Leopoldina, que se casaria com seu primo).

Tal como Pedro, Gastão não gostou da prometida. Em carta à irmã, descreveu a noiva em tom pouco lisonjeiro: “Para que não te surpreendas ao conhecer minha Isabel, aviso-te que ela nada tem de bonito; tem sobretudo uma característica que me chamou a atenção. É que lhe faltam completamente as sobrancelhas. Mas o conjunto de seu porte e de sua pessoa é gracioso”.

Mesmo assim, toda a correspondência e a pesquisa historiográfica posterior mostra que o casal era apaixonado e fiel. Havia apenas um problema – e gravíssimo. Isabel não engravidava. A primeira gestação da princesa ocorreu quase dez anos depois do casamento, e no lugar errado. O casal estava na Europa.

O contrato pré-nupcial obrigava que o herdeiro do trono nascesse no Brasil. Atravessaram o Atlântico e no dia 25 de julho de 1874 Isabel teve as primeiras contrações. “Mãe e filho passaram 50 horas em dores e sofrimento”, relata Mary del Priore. A criança, uma menina, morreu no útero.

Para retirá-la – e salvar a vida da princesa – os ossos da feto, inclusive os do crânio, foram quebrados. O episódio dá início a um triste distanciamento entre Isabel e o pai, a quem ela culpou pela viagem de volta ao Brasil. Isabel e o marido mudaram-se para Petrópolis. A perda do bebê radicalizou a carolice da princesa, que se ligou cada vez mais à família e à religião. O casal teve mais três filhos.

O imperador não gostava do genro, considerado liberal demais. Na Guerra do Paraguai, Gastão se ocupou de perseguir Solano Lopes depois que o futuro Duque de Caxias tomou Assunção. Uma de suas primeiras providências foi abolir a escravidão no país vizinho.

A imprensa, a quem dom Pedro II permitia uma liberdade raramente vista no país, via em Gastão um estrangeiro que tinha os olhos grandes no império brasileiro e manipulava a mulher. Além disso, o culpava de ganhar dinheiro explorando pobres nos cortiços no centro do Rio de Janeiro, que alugava.

Falta de apoio

Nas narrativas tradicionais sobre o Segundo Reinado, cabe a Isabel papel preponderante. Ela era “A Redentora”, responsável pelo grande gesto do fim do século 19, a abolição da escravidão. A Lei Áurea, aliás, é um requinte de minimalismo com seus dois artigos curtos: abole-se a escravidão e revogam-se as disposições em contrário.

Na prática, não foi bem assim. Em 13 de maio de 1888, Isabel perdeu o apoio do último grupo que sustentava a monarquia, os fazendeiros, ainda que, como um canto do cisne, seu gesto tenha levado a monarquia à sua fase mais popular no Brasil. “Vossa alteza redimiu uma raça mas perdeu seu trono”, anteviu o Barão de Cotegipe, um dos últimos chefes de governo do império. A propósito, é de Cotegipe uma das boas frases sobre os estertores da monarquia brasileira: “Não precisamos ir para a República; ela vem para nós”.

 Na prática, Isabel estava isolada. Os jornais a tratavam por carola. O fato de Gastão de Orléans ser francês ajudava os propagandistas do temor de que o Brasil poderia ser governado por um estrangeiro – e a princesa submissa ao marido ajudava na avaliação. Gastão, em sua correspondência com o pai, atestava essa visão: “Ela estava habituada a nunca ter vontade”, escreveu.

“O campo estava livre para exercer todas as audácias de seu caráter.” O próprio dom Pedro II não via na filha a melhor pessoa para assumir o papel de imperatriz. Deixava-a à margem das decisões da política. “A impressão que se tem, ao estudar a história do Segundo Reinado, é que dom Pedro nunca acreditou de fato que a filha pudesse assumir o trono”, afirma Laurentino Gomes.

Quando o imperador se mostrou preocupado com o futuro da monarquia brasileira e perguntou ao seu ministro José Antonio Saraiva o que seria o reino de Isabel, ouviu como resposta: “O reinado de vossa filha não é deste mundo”. Uma óbvia indicação de que a carolice da sucessora não encontrava eco no Brasil do fim do século 19.

De acordo com Mary del Priore, não há nada que indique que dom Pedro tenha intencionalmente alijado Isabel do poder. “Mas não há dúvidas, comprovadas pela correspondência do Conde d’Eu com a França, que ele nunca incentivou o casal a ter envolvimento político maior, quer participando das reuniões ou das entrevistas com o ministério, quer circulando pela cidade para angariar simpatias.” Ao contrário, diz Mary, dom Pedro não se importou quando o casal se afastou da corte para morar em Petrópolis. “Onde cultivaram poucas amizades e contatos, que lhes faltaram no momento do golpe.” Em defesa do imperador, diga-se que Isabel tinha ojeriza à política.

Em carta ao pai, como regente em uma das viagens de dom Pedro ao exterior, Isabel contou como organizara a agenda: “Já marcamos as audiências para as quintas-feiras seguida de despacho; as recepções para as segundas e o corpo diplomático para as primeiras terças dos meses”, registrou. “Por ora, eis meus únicos atos oficiais. Quem me dera não ter nenhum a fazer!!!” Durante suas viagens pelo país, as anotações em seu diário têm pouco espaço para discussões políticas, mas brotam comentários sobre jardins, concertos e jantares.

Contra o Terceiro Reinado nas mãos de Isabel também pesava uma questão pessoal. Desde a regência que substituiu dom Pedro I, havia alternância de poder, ainda que as eleições fossem viciadas. Mas nenhuma mulher podia votar no século 19. Mesmo que Portugal, de onde o Brasil herdou o ordenamento legal da monarquia, permitisse que mulheres assumissem a coroa, uma presença feminina no trono incomodava. “No Brasil, conservador e patriarcal, dom Pedro sabia que o exercício político de Isabel era tarefa difícil”, afirma Laurentino Gomes. “Uma mulher no trono seria um desafio enorme. O imperador manteve a princesa próxima do trono apenas dentro dos limites do protocolo.”

Dom Pedro tinha clareza de que emplacar a filha como sucessora era uma tarefa complicada. E a história mostra que ele não se empenhou muito em mudar esse destino. “Nunca pareceu interessado em preparar um terceiro reinado, para a filha ou para dom Pedro Augusto (acima), o filho mais velho de Leopoldina”, anota José Murilo de Carvalho na biografia do imperador. “Educou Isabel como tinha sido educado, mas não lhe entregou o governo nem mesmo quando já não tinha condições de governar.” Para a historiadora Mary del Priore, o empenho de dom Pedro na sucessão simplesmente não existiu.

“Sem agenda definida para o império, acho difícil imaginar que, tal como outros imperantes, dom Pedro tivesse interesse em organizar a transição. Em coroas europeias, essa era uma preocupação permanente”, afirma Mary. “Mas não consegui identificar, na relação de dom Pedro com o casal D’Eu, nenhum impulso de ajuda ou incentivo nesse sentido.

Imperador republicano

Para complicar ainda mais a aspiração de Isabel, dom Pedro não parecia muito preocupado em perder o trono. Seus momentos de vida mais felizes ocorreram quando ele deixou o peso da farda de imperador para tornar-se apenas o cidadão Pedro de Alcântara, como gostava de ser tratado em suas viagens internacionais. Há evidentes sinais de que, para ele, a República era algo inevitável no Brasil. “Aparentemente, dom Pedro se resignou à marcha da história”, afirma Laurentino Gomes.

De fato, em algumas correspondências, o imperador não esconde que vestiria melhor o figurino republicano. Em seu diário, em 1862, muito antes da explosão do movimento pela República no Brasil, ele anotou: “Nasci para consagrar-me às letras e às ciências, e, a ocupar posição política, preferiria a de presidente da República ou de ministro à de imperador”.

Quadro de Benedito Calixto retratando a Proclamação da República / Wikimedia Commons

Quando o golpe que levou à República eclodiu no Rio de Janeiro, dom Pedro estava em Petrópolis. Poderia ter fugido para o interior e comandado a resistência. Poderia ter parlamentado com o marechal Deodoro da Fonseca, seu amigo e, ainda que alçado a líder do movimento, sem grandes pendores republicanos. Mas ele simplesmente se acomodou e aceitou os fatos. “O imperador mantinha-se abúlico e fatalista”, descreve José Murilo de Carvalho em D. Pedro II. “Quando lhe disseram que a República já podia estar proclamada, respondeu: ‘Se for assim, será a minha aposentadoria. Já trabalhei muito e estou cansado. Irei então descansar’.” No dia 16, a princesa Isabel, que na véspera pedira ao pai para que convocasse o Conselho de Estado, simplesmente pôs-se a chorar. Reuniu-se aos filhos e preparou-se para embarcar para o exílio.

Na Europa, pai e filha dedicaram-se ao que realmente gostavam. Pedro de Alcântara aproximou-se ainda mais de cientistas e intelectuais, como Louis Pasteur (a quem, como imperador, angariou doações ao seu hoje célebre instituto).

O médico que assinou seu atestado de óbito, por exemplo, era Jean-Martin Charcot, um dos pioneiros da psiquiatria. Dom Pedro morreu de complicações de uma pneumonia em 1891, mas Charcot havia chegado a outro diagnóstico ao imperador em sua última viagem à Europa como mandatário brasileiro: ele sofria de surmenage, fadiga física e mental. Curiosamente, no filme Augustine, recentemente em cartaz, o médico francês aparece em algumas cenas com um pequeno macaco de estimação, um presente de dom Pedro.

Isabel dedicou-se à família. Seu marido comprou o Castelo d’Eu, na Normandia. Durante a Primeira Guerra, a princesa se ocupou de gerir cozinhas comunitárias e o marido representava a Cruz Vermelha na região. Com uma baioneta, fazia a ronda noturna no vilarejo próximo ao castelo. Isabel morreu em 14 de novembro de 1921. Tal como o pai, sem nunca ter voltado ao Brasil.

Saiba mais sobre Dom Pedro II através das obras abaixo

D. Pedro II, de José Murilo de Carvalho

As viagens de D. Pedro II: Oriente médio e áfrica do norte, 1871 e 1876, de Roberto Khatlab

As Barbas do Imperador, de Liliam Schwarcz