Por Reinaldo Azevedo*
O principal adversário de Jair Bolsonaro é Jair Bolsonaro. As esquerdas não lhe preparam, no curto prazo, dificuldades ou surpresas. Divididas, ficarão à espera da oportunidade. Não vão se antecipar a seus eventuais insucessos. Ainda tentam encontrar a linguagem.
Os esquerdistas entendem que lhes cabe o papel de futuros caudatários de insatisfações, mas estas têm de começar na sociedade, em particular nos grupos eventualmente atingidos pelos “remédios amargos”, essa metáfora reincidente de nosso desassossego. Em momentos disruptivos favoráveis às suas teses, buscam acelerar a história, assumindo a vanguarda do confronto. Se a disrupção se dá em sentido contrário às suas pretensões, melhor a cautela. Em tempo de muda, jacu não pia. Na esquerda, a frase é teoria política. Na direita, sabedoria popular.
Segundo o Ibope, 64% estão otimistas com o futuro governo; para 75%, o presidente eleito está no caminho certo. Lula terminou seu segundo mandato, em 2010, com 83% de “ótimo e bom” (Datafolha). Só 4% o consideravam “ruim ou péssimo”. Em “Júlio César”, de Shakespeare, o vulgo vai em minutos do vitupério ao mandatário assassinado, cujo corpo jaz à porta do Senado, à indignação persecutória contra seus assassinos. Bastou um discurso de Marco Antônio para transformar um idealista meio tonto (na peça), como Brutus, num vilão atormentado.
O povo de verdade é mais pragmático do que isso. Não está nem aí para a cascata de antíteses e ironias do belo falatório do amigo de César. Sua biruta é movida pelo bolso. Abre a porta da geladeira como quem abre um livro. O Lula dos 83% havia passado pelo mensalão em 2005, no terceiro ano de governo. O PT só foi apeado do poder em 2016, com a recessão roçando os 4%. E é nesse ponto que Bolsonaro é o pior adversário de Bolsonaro.
As incertezas que há, e às pencas, têm origem em falas, hesitações e escolhas do próprio presidente eleito. Seus adversários, no momento, são inócuos e estão mudos. Por isso mesmo, seus críticos mais duros estão na direita liberal —esta, sim, a verdadeira derrotada em 2018, como notou, com acerto, o filósofo francês Bernard-Henri Lévy, que é de esquerda. Uma derrota da racionalidade, acrescento eu, um liberal…
Existe no entorno imediato de Bolsonaro uma paixão obsessiva pelo erro. As frases carentes de sentido do presidente eleito revelam um idealismo tosco —que, em seus intelectuais, é só má consciência—, tendente a colonizar almas, não a encher geladeiras. Ainda emudecido pelo relatório do Coaf, o eleito reencarnou na quarta passada (12) aquela personagem da internet que se tornou célebre por ter a coragem de dizer o que ninguém dizia, pouco importando o tamanho da bobagem.
Numa “live”, que será semanal, Bolsonaro vituperou contra o Acordo de Paris e o Acordo Sobre Migração com uma coleção de asneiras de tal sorte formidável que o seu erro menor foi mandar Marrakesh para a Turquia. Estava pra lá de Bagdá. No dia anterior, um atirador, armado com revólver calibre 38 e uma pistola 9 mm, havia feito cinco vítimas na Catedral Metropolitana de Campinas. O presidente eleito não disse uma vírgula a respeito em seu vídeo. Preferiu amaldiçoar a imigração. No país dos 63 mil homicídios por ano, perguntou se queríamos nos tornar uma França ou uma Baviera…
No mesmo dia, um de seus filhos divulgou um vídeo em que o pai aparece treinando tiro. Os estampidos ecoaram na catedral vazia e ensanguentada. Demonstrar que é bom de bala seria um despropósito a qualquer tempo. No dia seguinte ao ataque, atravessa a linha da infâmia.
Também na quarta do espanto, falando a deputados do DEM, disse ser preciso aproximar a legislação trabalhista da informalidade. Ele ainda não apresentou uma proposta de reforma da Previdência, mas defende uma tese que retira recursos da… Previdência. E prometeu, adicionalmente, enquadrar o Ministério Público do Trabalho “se tiver clima”. Bolsonaro, a seu modo, é um retórico com vocação missionária.
Alheamento da realidade e parolagem irresponsável. Convenham: do seu ponto de vista, o silêncio é mesmo a melhor estratégia das esquerdas, buscando se articular no espaço que Bolsonaro ignora: o Parlamento. Aos liberais, como de hábito, resta a crítica. Na contramão dos 83%, dos 75%… É a nossa vocação contramajoritária.
*É jornalista e autor de “O País dos Petralhas”