Por Reinaldo Azevedo*
Jair Bolsonaro é um homem que não tem receio de trazer a público as suas ignorâncias, exercitando, a seu modo, a modéstia intelectual socrática sintetizada no “só sei que nada sei”. Estreou no mundo dos estadistas indagando: “O que é golden shower?”. E continua a sua saga em busca da iluminação: “O que é PIB?”.
Entre uma pergunta e outra, tentou depor o governa nte de um país vizinho; mandou comemorar o golpe de 1964; abriu guerra contra a imprensa independente; deu apoio a sucessivas manifestações da extrema direita xexelenta contra o Congresso e o Supremo; emprestou suporte moral a um motim de policiais fardados e armados; promoveu, por vias oblíquas, agitação nos quartéis dasForças Armadas…
Insaciável, transformou em cinzas o que havia de positivo na política ambiental brasileira, espantando os investimentos; criou toda a sorte de dificuldades para a aprovação da reforma da Previdência, que só avançou porque lideranças do Congresso, Rodrigo Maia em particular, tomaram a tarefa para si; conferiu ares de política de Estado à homofobia, à misoginia e à intolerância.
E não é, meus caros, que nem assim o Brasil acabou? Segundo querem alguns, tudo segue na mais absoluta normalidade, com as instituições funcionando plenamente. Não fosse a estridência da imprensa, asseveram esses realistas, os ânimos não estariam tão exaltados. Os bêbados de tanta luz (também de luz…) asseguram que esse negócio de marcha em favor do normal das democracias. É? Um outro exemplo, por favor… Adiante.
Aqui e ali —e até aqui, nesta Folha—, leio raciocínios que poderiam ser assim sintetizados: “Olhem essa imprensa catastrofista! Fica anunciando o desastre, o abismo, e depois nada acontece. Tudo se normaliza, e o Executivo e o Legislativo, por exemplo, fazem acordo sobre emendas impositivas”. É mesmo?
Faltou uma epígrafe nos livros “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, e “O Povo Contra a Democracia”, de Yascha Mounk. Façamos nós o que os autores não fizeram: “This is the way the world ends/ Not with a bang but with a whimper”, de T. S. Eliot. “Assim acaba o mundo, não com um estrondo, mas com um gemido”.
Nota rápida: invoco com esse “gemido” das traduções — em algumas, “suspiro”. Cria-se a antítese com “estrondo”, mas se perde o fato de que “The Hollow Men” (“Os Homens Ocos”) aponta não o fim do mundo, mas o fim de uma perspectiva civilizatória, também por culpa nossa. A palavra menos poética “lamúria” — as vozes sussurradas dos que apenas reclamam — traduz melhor o sentido do poema.
Abro esta coluna com “Jair Bolsonaro” e chego a Eliot. É uma pequena contribuição à causa da civilização. Explico-me. O presidente da República não precisa dar um autogolpe para corromper a democracia — até porque, nessa hipótese, democracia não haveria mais. Também não é necessário que tanques cerquem o Supremo e o Congresso para que os Poderes da República se transformem em “Fôrma sem forma, sombra sem cor/ Força paralisada, gesto sem vigor”.
É precisamente ao som de lamúrias que as democracias podem morrer. Sob o estrondo dos canhões, armar-se-ia necessariamente a reação. À medida que as garantias do regime vão sendo solapadas por dentro, formam-se derivações teratológicas do que, na superfície, ainda se pode chamar de “regime democrático”, embora, em essência, seja terra morta.
A democracia não é uma teoria administrativa ou um método de tomada de decisões. Fosse assim, não seria o melhor dos piores regimes, o pior dos piores. Acima de tudo, ela se realiza como a afirmação de um conjunto de valores e de garantia de direitos — muito especialmente os das minorias — a proteger os indivíduos do Leviatã estatal e das milícias armadas. Não é o golpe que nos ameaça, mas a desordem que, ao esmagar a esperança, tende a eternizar a injustiça, a brutalidade e a estupidez, com seu pibinho de 1,1% que soterra os pobres e que mata os pretos de susto, de bala ou vício.
O que é PIB, Jair Bolsonaro?
*Texto extraído da Folha de S. Paulo.