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Como Bolsonaro e os homens ocos estão matando a democracia

Bolsonaro dando risada
O presidente Jair Bolsonaro (Adriano Machado/Reuters)

Por Reinaldo Azevedo*

Jair Bolsonaro é um homem que não tem receio de trazer a público as suas ignorâncias, exercitando, a seu modo, a modéstia intelectual socrática sintetizada no “só sei que nada sei”. Estreou no mundo dos estadistas indagando: “O que é golden shower?”. E continua a sua saga em busca da iluminação: “O que é PIB?”.

Entre uma pergunta e outra, tentou depor o governa nte de um país vizinho; mandou comemorar o golpe de 1964; abriu guerra contra a imprensa independente; deu apoio a sucessivas manifestações da extrema direita xexelenta contra o Congresso e o Supremo; emprestou suporte moral a um motim de policiais fardados e armados; promoveu, por vias oblíquas, agitação nos quartéis dasForças Armadas…

Insaciável, transformou em cinzas o que havia de positivo na política ambiental brasileira, espantando os investimentos; criou toda a sorte de dificuldades para a aprovação da reforma da Previdência, que só avançou porque lideranças do Congresso, Rodrigo Maia em particular, tomaram a tarefa para si; conferiu ares de política de Estado à homofobia, à misoginia e à intolerância.

E não é, meus caros, que nem assim o Brasil acabou? Segundo querem alguns, tudo segue na mais absoluta normalidade, com as instituições funcionando plenamente. Não fosse a estridência da imprensa, asseveram esses realistas, os ânimos não estariam tão exaltados. Os bêbados de tanta luz (também de luz…) asseguram que esse negócio de marcha em favor do normal das democracias. É? Um outro exemplo, por favor… Adiante.

Aqui e ali —e até aqui, nesta Folha—, leio raciocínios que poderiam ser assim sintetizados: “Olhem essa imprensa catastrofista! Fica anunciando o desastre, o abismo, e depois nada acontece. Tudo se normaliza, e o Executivo e o Legislativo, por exemplo, fazem acordo sobre emendas impositivas”. É mesmo?

Faltou uma epígrafe nos livros “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, e “O Povo Contra a Democracia”, de Yascha Mounk. Façamos nós o que os autores não fizeram: “This is the way the world ends/ Not with a bang but with a whimper”, de T. S. Eliot. “Assim acaba o mundo, não com um estrondo, mas com um gemido”.

Nota rápida: invoco com esse “gemido” das traduções — em algumas, “suspiro”. Cria-se a antítese com “estrondo”, mas se perde o fato de que “The Hollow Men” (“Os Homens Ocos”) aponta não o fim do mundo, mas o fim de uma perspectiva civilizatória, também por culpa nossa. A palavra menos poética “lamúria” — as vozes sussurradas dos que apenas reclamam — traduz melhor o sentido do poema.

Abro esta coluna com “Jair Bolsonaro” e chego a Eliot. É uma pequena contribuição à causa da civilização. Explico-me. O presidente da República não precisa dar um autogolpe para corromper a democracia — até porque, nessa hipótese, democracia não haveria mais. Também não é necessário que tanques cerquem o Supremo e o Congresso para que os Poderes da República se transformem em “Fôrma sem forma, sombra sem cor/ Força paralisada, gesto sem vigor”.

É precisamente ao som de lamúrias que as democracias podem morrer. Sob o estrondo dos canhões, armar-se-ia necessariamente a reação. À medida que as garantias do regime vão sendo solapadas por dentro, formam-se derivações teratológicas do que, na superfície, ainda se pode chamar de “regime democrático”, embora, em essência, seja terra morta.

A democracia não é uma teoria administrativa ou um método de tomada de decisões. Fosse assim, não seria o melhor dos piores regimes, o pior dos piores. Acima de tudo, ela se realiza como a afirmação de um conjunto de valores e de garantia de direitos — muito especialmente os das minorias — a proteger os indivíduos do Leviatã estatal e das milícias armadas. Não é o golpe que nos ameaça, mas a desordem que, ao esmagar a esperança, tende a eternizar a injustiça, a brutalidade e a estupidez, com seu pibinho de 1,1% que soterra os pobres e que mata os pretos de susto, de bala ou vício.

O que é PIB, Jair Bolsonaro?

*Texto extraído da Folha de S. Paulo.

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As vantagens de ser extremista

Por Alexandre Versignassi*

Não existe força mais destrutiva que o radicalismo político. Graças a ele, tivemos o holocausto, os gulags de Stálin, o genocídio de Ruanda. Mesmo assim, o extremismo segue atraindo toneladas de adeptos, à esquerda e à direita. O motivo? Quem melhor explicou não foi um sociólogo, um filósofo, muito menos um político. Foi um humorista: John Cleese, do Monty Python:

“A gente tem ouvido muito sobre extremismo recentemente. O clima está duro, agressivo: muito desrespeito e pouca empatia”, ele diz, num esquete de humor dos anos 80. “O que nunca se ouve por aí é sobre as VANTAGENS de ser extremista”

“E a maior dessas vantagens” – continua Cleese – “é que o radicalismo faz você se sentir bem. Porque ele te proporciona inimigos. Com isso, você pode fingir que toda a maldade do mundo está nos seus inimigos, e que toda a bondade está, claro, em você.”

O britânico, então, apresenta a lista de inimigos dos extremistas. Duas listas, na verdade: “Se você se juntar à esquerda radical, os inimigos serão a polícia, os EUA, os juízes, as multinacionais, os moderados. Já se você preferir ser um extremista da direita, sem problema, também vai ter uma bela lista de inimigos: minorias, sindicatos, manifestantes, socialistas e, claro, os moderados.

Uma vez armado de umas dessas listas de inimigos, você pode fazer a perversidade que for, e ainda assim sentir que o seu comportamento é moralmente justificável”.

É isso. Quando você tem certeza de que o seu grupo carrega a chama da verdade absoluta, enquanto o resto do mundo é dividido entre obscurantistas (seus inimigos) e covardes (os “isentões”), você é um extremista. E se você é um extremista, está do lado errado – seja ele qual for.

*Texto extraído da Revista Superinteressante 

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Perfil Rosalba em rede social apaga comentários de cidadãos que cobram solução para greve dos professores

A prefeita Rosalba Ciarlini (PP) está demonstrando intolerância com os cidadãos que cobram uma solução para a greve dos professores que completa 20 dias hoje.

Num post que registra a eleição dela para vice-presidente da Federação Nacional dos Prefeitos há uma série de cobranças a respeito da greve que estão sendo apagados (ver prints abaixo). Rosalba ainda explora a vitória político como algo relacionado à credibilidade dela.

O Blog do Barreto acessou o perfil da prefeita (AQUI) no Instagram (17h57), tinham cerca de 70 mensagens e só constavam elogios sendo as críticas apagadas.

Nota do Blog: quanta intolerância! Nenhuma das críticas era agressiva ou de cunho pessoal. Nada além do pedido para negociar com professores. Outro detalhe: a prefeita tenta se associar a palavra “credibilidade” em um momento em que a confiança em sua palavra está em crise.

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Jornalista é insultada por deputado por se recusar a fazer gesto de Bolsonaro

Segue abaixo o relato da jornalista Juliana Celli que foi alvo de assédio moral do deputado estadual Getúlio Rego (DEM).

Como jornalista, talvez esse seja o texto mais difícil que já escrevi. Olhos cheios de lágrimas, coração apertado, dúvidas sobre o que pode acontecer comigo a partir de agora. Mas muita vontade de dar a minha contribuição de viver num mundo melhor, pra mim e pra minha filha. Decidi não me calar.

Na última quinta-feira (11/10) eu fui vítima da intolerância política que estamos testemunhando no país e que chegou no seu mais grave momento com a chegada do segundo turno das eleições.

Eu já noticiei tanto sobre esses casos que estão acontecendo. O último, o de uma médica, no serviço público do Rio Grande do Norte, que rasgou uma receita porque ao perguntar em que candidato o paciente votaria, ele afirmou votar no candidato do PT. Fiquei indignada!

Mas, jamais pensei passar por isso. Estava enganada!

Na quinta-feira pela manhã eu estava trabalhando quando um superior fez o sinal usado pelo candidato Bolsonaro, aquele que simula duas armas. Ele me perguntou se eu estava pronta pra fazer o tal gesto. Eu falei que não faria porque não voto nesse candidato, na verdade decidi não votar em nenhum dos dois candidatos postos por não concordar nem com um nem com o outro. Foi aí a minha surpresa, o superior, o deputado estadual Getúlio Rêgo, que até então sempre tive uma boa convivência, começou a me insultar. Ouvi palavras como corrupta, mentirosa, e que eu deveria pedir exoneração do meu cargo (de confiança). Ele estava completamente alterado, falando alto, gesticulando em minha direção. Por um momento, pensei em explodir, me contive. Consegui me manter firme e respeitosa, mesmo que muito constrangida, principalmente pelo fato de na hora estar conduzindo convidados para uma reunião de trabalho. Argumentei que o voto é livre, e eu podia votar em quem quisesse ou até mesmo me omitir. Ele continuou esbravejando, na frente deles e de mais alguns servidores, que eu deveria votar em quem meu chefe mandasse. Eu voltei a argumentar que não estávamos mais no tempo de “votos de cabrestos”, algo muito utilizado nos “currais” eleitorais e que meu chefe direto é democrático, jamais iria me obrigar a votar em quem eu não quisesse.

Ele continuou sem respeitar a minha decisão. Se alterou ainda mais, falando em tom ameaçador. Eu decidi encerrar o assunto entrando na sala para participar da reunião que estava programada. Pedi desculpas aos convidados pelo ocorrido, mantive a calma para terminar aquela demanda, mas depois desabei. Conversei com colegas, ouvi familiares, procurei um advogado.

Algumas pessoas disseram que seria meu fim eu expor esse assunto, outras me apoiaram, me incentivaram. Passei alguns dias analisando sozinha, pedindo a Deus uma resposta, deixando a “poeira” baixar e a emoção ser controlada para aí sim tomar uma decisão mais acertada.

Se eu, jornalista, assessora de imprensa, apresentadora de um jornal na rádio, de um programa de TV, não pode falar, quem pode?

As milhares de mulheres e homens que estão passando por isso em seus empregos em todo país ou em outros locais?

Não. Eu digo não à intolerância política!!!

O voto é livre!!! Se você vota num candidato que eu tenho repulsa eu preciso respeitar.

Não deixe ninguém lhe dizer que você é menos inteligente ou menos cidadão por isso.

Se você quer votar em Haddad, vote livremente. Se você vota em Bolsonaro, vote livremente. Se quiser votar em branco, nulo, vote livremente.

Em tempos de #elenão e #elesim eu o convido a levantar uma bandeira muito mais importante, a da tolerância. Essa é a minha campanha. #intoleranciaNao #toleranciasim

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Pessoas relatam ameaças de eleitores de Bolsonaro em Mossoró

Mossoró não está fora do clima de ódio que domina a política nacional neste segundo turno. Relatos nas redes sociais mostram ameaças de eleitores de Jair Bolsonaro (PSL), líder nas pesquisas presidenciais.

O primeiro caso é o de Aryane do Vale que relatou o caso de uma caixa ameaçada por uma cliente em uma loja da cidade.

O segundo caso é o do professor do IFRN, Ângelo Gurgel que foi atacado por um perfil identificado por Alexandre Naide.

O terceiro caso é de ameaça ao estudante Laninho Araújo. Confira o vídeo abaixo:

Na Bahia houve o caso de um mestre de capoeira que morreu esfaqueado por um eleitor de Bolsonaro. Em Natal uma médica rasgou a receita de um idoso que declarou voto em Fernando Haddad.

O candidato do PSL, que já sugeriu que ia “metralhar a petralhada”, declarou que recusa o voto de quem pratica atos de violência.

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Pai, não os perdoe, pois eles sabem o que fazem

ORIVALDO LOPES JR

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“Os monstros existem, mas são muito pouco numerosos para ser realmente perigosos; mais perigosos são os homens comuns, os funcionários dispostos a acreditar e obedecer sem discutir’.

 

Primo Levi

 

Do alto da cruz, Jesus olhou os policiais que o tinham torturado, humilhado e pregado na cruz. Viu mais adiante o povo que havia gritado “Crucifica-o! Crucifica-o!”. Olhou os moradores de Jerusalém assistindo o “espetáculo” e que apoiavam seus líderes. Viu atrás desses os que se omitiram e nada fizeram. Então ele ergueu seus olhos para o céu e disse: “Pai, perdoa-lhes, pois eles não sabem o que fazem” (Lucas 23.34).

Essa declaração de Jesus é extremamente séria, pois nela se esconde uma terrível condenação. Esses a quem Jesus mirava de cima da cruz agiam como meros meninos e meninas de recado. Eles apenas obedeciam às ordens governamentais e às orientações sacerdotais. É para essas pessoas que Jesus pede a misericórdia divina. Porém, ao dizer “perdoe estes que não sabem o que fazem”, ele está dizendo ao mesmo tempo: “Pai, não perdoe àqueles que sabem o que fazem”!

Hoje, quando vemos crianças e adolescentes fazendo o símbolo de uma arma e apontando para os céus, em direção ao Senhor crucificado, dentro de uma igreja da Assembleia de Deus; quando vemos livrarias evangélicas vendendo camisetas com a imagem do “mito”, aquele cujo nome é impronunciável, quando um grupo de mais de cem pastores se submetem aos seus “modelos” de sucesso e declaram, irresponsavelmente, seu apoio à violência, ao ódio, à injustiça social, à discriminação… eu escuto Jesus repetindo “Pai, perdoa-lhes, pois eles não sabem o que fazem”.

Entretanto, em outro lugar Jesus diz: “Se alguém fizer tropeçar um destes pequeninos que creem em mim, seria melhor que fosse lançado no mar com uma grande pedra amarrada no pescoço” (Lucas 17.2). É por isso que nesta palavra da cruz podemos escutar: “Pai, não perdoe a estes que levam meus filhos e filhas a pecar, que põem pedras nos caminhos das crianças e adolescentes para que tropecem. Que esses sacerdotes formadores de opinião sejam tidos por indesculpáveis diante dos céus, pois eles sabem o que estão fazendo. Que repousem no fundo dos oceanos com os moinhos amarrados em seus pescoços, pois estão desvirtuando minha mensagem, estão se beneficiando de minhas ovelhas, e as dispersando pelo mundo onde serão feridas e mortas pelos que se alimentam do ódio e da mentira”.

Cada evangélico e cada evangélica que está se espelhando em seus líderes e apoia essa candidatura das armas e da violência insulta, agride, açoita, e crava na cruz mais uma vez o Senhor Jesus. Como isso é triste, humilhante, terrível… e no entanto, do alto de sua misericórdia Jesus pede o perdão de Deus para eles, pois não sabem que estão abrindo as portas do inferno para a nação brasileira. Quanto aos seus líderes, que deveriam pelo menos ter se calado e evitado a difusão do ódio, ao apontarem um anticristo à presidência do Brasil, esses que caíram em sedução diante de prováveis propostas de retorno aos seus bolsos e à sua posição de prestígio, Jesus simplesmente se cala. Para esses não há perdão, nem dos céus, nem da história.

Como os juízes e legisladores brasileiros, eles estão cometendo um suicídio histórico. As gerações futuras citarão seus nomes com tristeza, desdém, vergonha e escárnio. Ganham um pouquinho agora, mas perdem tudo depois. Seus netos terão vergonha de dizer quem eram seus avós. O perdão, portanto, não é só divino. A humanidade como um todo vai olhar no futuro para o Brasil desses dias e seu veredito será brutal.

Mas ainda há tempo: reneguem toda associação com o mal representada por esse candidato. Digam não à violência de todos contra todos, à discriminação, ao racismo, à acumulação, ao militarismo, à intolerância, à tortura, à mentira, à destruição dos benefícios sociais que chegam aos membros mais pobres de suas igrejas… Este é seu dever moral, espiritual e histórico. Existem muitas alternativas, mas a abominação da desolação das armas e da violência não é, em absoluto, uma delas. Por isso, “ergam sua voz contra a injustiça e a favor dos pobres”.

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Caso de mossoroense atingida por golpes de tesoura abre uma pergunta: até quando vamos tratar violência contra mulher como “vitimismo”?

Meme ajuda a estimular justificativas para violência contra mulher
Meme ajuda a estimular justificativas para violência contra mulher

A professora Márcia Regina Fernandes Lopes foi vítima de 12 golpes de tesoura pelo marido Genildo Duarte. As perguntas sempre são: “qual o motivo?”, “ela traia ele?” ou a leviana e vazia afirmação “aí tem coisa!”.

O fato é que a violência sofrida por Márcia é reproduzida todos os dias em vários lares. Todos nós conhecemos alguma história de mulheres agredidas por homens e alguns tratam isso como “mimimi”, “vitimismo” ou usa frases feitas como “ela gosta de apanhar” para esconder um problema que deveria provocar revolta na sociedade.

Aprendi com minha saudosa avó dona Darquinha que em mulher não se bate nem como uma flor e isso ficou no fundo do meu inconsciente.

O combate à violência contra a mulher precisa ser levado à sério e receber a adesão dos homens conscientes do tamanho dessa covardia. Isso tem que ser ensinado aos nossos filhos como fez comigo a minha avó, mas as filhas precisam ser conscientizadas a resistir a qualquer tipo de discriminação por elas serem meninas. Sabemos que o preconceito já começa na infância.

Mas também precisamos reagir contra esse e qualquer outro tipo de violência. O que aconteceu com Márcia é revoltante pela covardia, mas, infelizmente, não é um fato isolado. Se reproduz em vários lares.

Nós homens que rejeitamos a violência contra a mulher precisamos censurar nossos amigos que praticam esse tipo de crime. A crítica nas rodas de amigos a frases como “dei uma ‘mãozada’ para ela baixar a crista” precisa ser motivo até mesmo para se desfazer amizades e de denúncia.

A tolerância à violência contra mulher entre os homens estimula que essa prática nefasta se perpetue. Precisamos fazer a nossa parte para que não tenhamos novas Márcias.

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“Tava chorando a defensora de bandido”: O que nos diferencia das bestas?

rielle

Por Leonardo Sakamoto*

”Tava chorando a defensora de bandido, Sakamoto?” Voltando do protesto por conta da execução de Marielle Franco, que passou pela avenida Paulista, na noite desta quinta (15), ouvi a frase dita pela voz de um rapaz, acompanhada de risos de outros, provavelmente seus amigos. Dessa vez não me dignei a olhar para trás e fazer alguma brincadeira, como sempre. Apenas respirei fundo, muito fundo, e segui meu caminho, pensando na tristeza que é ter orgulho da própria ignorância.

Já havia me deparado com centenas de comentários ao longo do dia que celebraram o assassinato de Marielle – liderança feminista, do movimento negro e da comunidade da Maré, no Rio de Janeiro, e quinta vereadora mais votada da capital carioca – e de seu motorista Anderson Gomes. Boa parte deles repetia exaustivamente abominações típicas de quem não faz ideia do que seja esse pacote mínimo de garantias para nossa dignidade.

Alguns dos leitores, aliás, acham que direitos humanos é o nome de um grupo de pessoas. Escreveram que ”com a morte dessa mulher, vai ter menos direitos humanos por aí” ou algo semelhante.

Parte desses jovens acha que está sendo subversiva e revolucionária, pois luta contra a ”ditadura dos direitos humanos”. Essa ditadura, claro, é uma ficção. Pois se eles fossem minimamente respeitados não teríamos essa taxa pornográfica de homicídios, mulheres sendo estupradas, negros ganhando menos do que brancos e pessoas morrendo por amar alguém do mesmo sexo. Não teríamos pessoas sendo executadas por defender a qualidade de vida de outras, inclusive daquelas que querem o seu mal.

Achei que valia a pena retomar trechos de um texto que eu havia escrito, em dezembro passado, para ilustrar a situação:

Direitos humanos dizem respeito à garantia de não ser assaltado e morto, de professar a religião que quiser, de abrir um negócio, de ter uma moradia, de não morrer de fome, de poder votar e ser votado, de não ser escravizado, de poder pensar e falar livremente, de não ser preso e morto arbitrariamente pelo Estado, de não ser molestado por sua orientação sexual, identidade, origem ou cor de pele.

Mas devido à deformação provocada por políticos escandalosos, líderes espirituais duvidosos e formadores de opinião ruidosos, a população acha que direitos humanos dizem respeito apenas a ”direito de bandido”, esquecendo que o mínimo de dignidade e liberdade do qual desfrutam estão neles previstos.

O mundo, ainda em choque com os horrores da Segunda Guerra Mundial, produziu a Declaração Universal dos Direitos Humanos para tentar evitar que esses horrores se repetissem. De certa forma, com o mesmo objetivo, o Brasil, ainda olhando para as feridas de 21 anos de ditadura militar, sentou-se para escrever a Constituição Federal de 1988 – que não é um documento perfeito, longe disso. Mas, com todos seus defeitos, ousa proteger a dignidade e a liberdade de uma forma que se hoje sentássemos para formula-lo, não conseguiríamos.

É depois de grandes momentos de dor que estamos mais abertos para olhar o futuro e desejar que o sofrimento igual nunca mais se repita. Desde então, não vivemos uma guerra como aquela entre 1939 e 1945, muito menos um período de exceção quanto 1964 e 1985. Acabamos nos acostumando. E esquecendo. E banalizando.

Minha geração herdou esses textos – um de nossos avós e outro de nossos pais. Agora, precisamos ensinar à geração de nossos filhos sua própria história sob o risco de que o espírito presente em 1948 e 1988 se perca por desconhecimento. O problema é que parte da geração que ajudou a escrever a Declaração Universal bem como a Constituição de 1988 se esqueceu por completo dos debates que levaram até elas, em nome do poder.

O mundo está em convulsão, com guerras, ataques terroristas, crises migratórias, catástrofes ambientais. O Brasil passa por um período sombrio, com um Palácio do Planalto castrador de direitos, o pior Congresso Nacional de todos os tempos (que está aprovando leis que retiram, à luz do dia, direitos de trabalhadores, mulheres, populações tradicionais, minorias) e um Poder Judiciário que, por vezes, faz política ao invés de resguardar a Justiça.

Contudo, é exatamente nestes momentos que precisamos nos lembrar da caminhada que nos trouxe até aqui. Para ter a clareza de que, mais importante do que reinventar todas as regras, é tirar do papel, pela primeira vez, a sociedade que um dia imaginamos frente aos horrores da guerra ou da ditadura. O que só se fará com muito diálogo e a garantia desse quinhão mínimo de dignidade que todos têm direito por nascerem humanos.

Só assim frases como as que podem ser lidas abaixo deixarão a boca das pessoas para cair no esquecimento. Frases que, não raro, nós falamos sem perceber, guiados pela nossa ignorância, medos e preconceitos. Até que sejamos devidamente educados para o contrário.

– Amor, fecha rápido o vidro que tá vindo um ”escurinho” mal encarado. – Aquilo são ciganos? Vai, atravessa a rua para não dar de cara com eles! – Não sou preconceituoso. Eu tenho amigos gays. – Tá vendo? É por isso que um tipo como esse continua sendo lixeiro. – Por favor, subscreva o abaixo-assinado. É para tirar esse terreiro de macumba de nossa rua. – Bandido bom é bandido morto. – Tinha que ser preto mesmo! – Vestida assim na balada, tava pedindo. – Por que o governo não impede essas mulheres da periferia de ter tantos filhos assim? Depois, não consegue criar e vira tudo marginal. – Mulher no volante, perigo constante. – Sabe quando favelado toma laranjada? Quando rola briga na feira. – Os sem-teto são todos vagabundos que querem roubar o que os outros conquistaram com muito suor. – A política de cotas raciais é um preconceito às avessas. Ela só serve para gerar racismo onde não existe. – Ai, o Alberto, da Contabilidade, tem Aids. Um absurdo a empresa expor a gente a esse risco. – Esse aeroporto já foi melhor. Hoje, tem cara de rodoviária. – Por mim, tinha que matar mulher que aborta. Por que a vida do feto vale menos que a da mãe? – Os índios são pessoas indolentes. Erram os antropólogos ao mantê-los naquele estado de selvageria. – Criança que roubou não é criança. É ladrão e tem que ir para cadeia. – 

Tortura é método válido de interrogatório. – Um mendigo! Vamos botar fogo nas roupas dele. Assim ele aprender a trabalhar. – Pena de morte já. – Eutanásia? Pecado. A vida pertence a Deus, não a você. – Temos que tirar essas regalias trabalhistas. O Brasil não aguenta crescer com tantos custos engessando o desenvolvimento.

Por fim,  gostaria de dar parabéns a todos que veem tudo isso acontecer ao seu redor, mas preferem ficar na ignorância quentinha de sua bolha na rede social porque pensam que o mundo lá fora é a barbárie. Afinal, a ignorância coletiva precisa, para se reproduzir, do silêncio dos que têm consciência, mas não falam.

E o silêncio é sentença de morte dos direitos humanos.

*É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo.