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Demissão de Moro marca o divórcio entre a Lava Jato e o bolsonarismo

O tiro de Bolsonaro brigando com Moro pode sair pela culatra (Foto: Gabriela Biló)

Por João Filho

The Intercept

O pedido de demissão de Sergio Moro representou o fim da aliança entre o lavajatismo e o bolsonarismo. O fim é melancólico e previsível, mas não dá para dizer que a união não foi um sucesso enquanto durou. A Lava Jato, que começou como uma operação policial, se tornou uma máquina política capaz de derrubar e eleger presidentes da República. As publicações da Vaza Jato escancararam o cunho político da operação, que tinha obsessão punitiva em relação aos políticos do PT, mas poupava políticos mais à direita como FHC e Álvaro Dias. Havia uma preferência ideológica na operação, tanto que em 2014 seus integrantes já faziam campanha a favor da eleição de Aécio nas redes sociais. O antiesquerdismo foi a liga que uniu o lavajatismo e o bolsonarismo. Não foi à toa que Bolsonaro foi o candidato dos integrantes da Lava Jato na última eleição, como confessou um ex-chefe da operação.

Voluntariamente ou não, a Lava Jato pavimentou o caminho para o triunfo do discurso anti-política que colocou o bolsonarismo no poder. Durante a campanha presidencial, Sergio Moro atuou nos tribunais para influenciar o processo eleitoral. Faltando seis dias para o fim do primeiro turno, Moro resolveu, sem absolutamente nenhum motivo para isso, divulgar trechos de uma delação de Palocci que prejudicaria o então candidato petista Haddad. Mais tarde, a Vaza Jata comprovaria que nem o próprio Moro acreditava nas delações de Palocci, mas as divulgou mesmo assim.

Naquela época, Moro já conversava com Paulo Guedes sobre um convite para chefiar o Ministério da Justiça. Esse momento talvez tenha sido o nascimento formal da aliança entre bolsonarismo e lavajatismo. O que era namoro virou um casamento, diria Bolsonaro, tão afeito a esse tipo de analogia idiota. O homem que personificava a Lava Jato e era pintado como uma reserva moral decidiu integrar o governo de um extremista de direita que construiu uma carreira como deputado na base das rachadinhas, defendendo milícias, empregando funcionários fantasma e atacando valores democráticos. O lavajatismo emprestou seu verniz de seriedade para um bolsonarismo destrambelhado. Sem esse apoio, Bolsonaro jamais venceria a eleição.

No governo, Sergio Moro se mostrou um bolsonarista de quatro costados. Perdoou o caixa 2 de Onyx, atuou como advogado da família Bolsonaro em episódios cabeludos como do condomínio Vivendas da Barra, e apoiou o presidente em quase todas as suas loucuras autoritárias. Em boa parte da sua gestão, não atuou com a grandeza que requer o cargo, mas como um soldado raso do bolsonarismo.

Houve muitos atritos também. Bolsonaro vetou nomeações do ministro, tirou o Coaf do ministério e interferiu na Polícia Federal. Mesmo assim, a manutenção da aliança continuava interessante para ambos. Moro seguia com seu palanque eleitoral — a essa altura imagino que ninguém mais duvide das suas pretensões políticas —, e Bolsonaro mantinha o seu fiador ético.

Para proteger seus filhos de investigações, Bolsonaro determinou a exoneração do diretor-geral da PF Maurício Valeixo à revelia do ministro. Esse teria sido o estopim para a demissão de Moro. Não foi um pedido de demissão qualquer. Foi uma demissão histórica. Moro saiu, mas saiu atirando. O ministro mais popular do governo Bolsonaro acusou, ainda que indiretamente, o presidente de diversos crimes durante o exercício do cargo, entre eles: falsidade ideológica, obstrução da justiça e crime de responsabilidade. Disse ainda que Bolsonaro admitiu que a exoneração do diretor da PF era, sim, uma interferência política. Revelou também que o presidente tinha preocupação com inquéritos em curso no STF, desejava colher informações diretamente com o diretor-geral e os superintendentes, e exigia ter acesso a relatórios de inteligência. Moro também fez uma acusação de falsidade ideológica ao afirmar que o decreto da exoneração de Valeixo não foi assinado por ele. Além disso, a exoneração publicada no Diário Oficial da União consta como se tivesse sido um pedido do diretor, o que é mentira. Ou seja, um importante instrumento de transparência do governo foi usado para fazer politicagem barata e enganar a população.

Há quem diga que Moro sai do governo maior do que entrou. Se essa leitura está levando em conta apenas a questão eleitoral, está certa. O ministro mais popular do governo saiu atirando e se colocou como um dos principais antagonistas da reeleição de Bolsonaro. Já do ponto de vista moral, o ex-ministro saiu ainda mais minúsculo. Fez uma gestão ruim, marcada essencialmente pela repressão à violência, sem grandes projetos para a segurança pública.

Na coletiva de despedida, Moro listou uma série de feitos da sua gestão, como o “recorde de destruição de plantação de maconha no Paraguai”. Depois de quase um ano e meio à frente de um ministério complexo, o ex-juiz sai se gabando por uma bobagem dessas. Como ministro da Justiça do Brasil, Sergio Moro foi um excelente xerifinho do interior do Paraná.

À tarde, Bolsonaro fez um discurso atacando Moro, usando um tom pessoal, um texto confuso, misturando assuntos. Se pintou como uma vítima, um homem que foi largado ferido na estrada.  Acusou-o de usar a permanência de Valeixo no cargo como moeda de troca para uma vaga no STF.  Moro apenas negou no Twitter, mas já tinha preparado um grande jogada contra Bolsonaro à noite. O ex-ministro vazou conversas que manteve com a deputada Carla Zambelli e o presidente para a Globo, que exibiu no Jornal Nacional. Em uma delas, a deputada, que é muito próxima do presidente, tenta comprar a permanência de Moro com uma vaga no STF. O ex-juiz responde “prezada, não estou a venda”. Uma frase que parece ter sido pensada já no vazamento. Pareceu tudo muito roteirizado. Um dos prints da conversa com Bolsonaro foi tirado antes mesmo do presidente visualizar a última mensagem, o que sugere que Moro já projetava o vazamento. O Jornal Nacional fez um resumo das suas realizações à frente do ministério, mas ignorou a Vaza Jato, escândalo do qual foi protagonista. Foi assim que Sergio Moro brilhou no jornal de maior audiência do país como o homem que não se corrompeu, que não se vergou diante da sanha dos poderosos. O ex-juiz não está de brincadeira no jogo político.

O heroísmo de Sergio Moro foi uma fabricação midiática. Mesmo depois da Vaza Jato, continuou sendo incensado pelo jornalismo lavajatista. Bolsonaro apanha bastante, mas Moro ainda conta com simpatia. Após o anúncio da demissão, já se via pipocar na imprensa a ideia de que o ex-ministro saiu porque, coitadinho, não aguentou mais interferências políticas de Bolsonaro. Ora, façam-me o favor! Sergio Moro sabia exatamente onde estava pisando quando topou integrar o governo de um político que fez fama atacando a democracia e exaltando a ditadura militar. Foi conivente com absolutamente todas as falas golpistas do presidente. Em fevereiro, a Polícia Federal sob o seu comando concluiu não haver indícios de que Flávio Bolsonaro cometeu os crimes de lavagem de dinheiro e falsidade ideológica, mesmo havendo uma pororoca de provas. Esse é o paladino moral do bolsonarismo.

Parte da imprensa parece que já começou a encerar o piso e acender as luzes da ribalta para o herói voltar a brilhar. A Folha, por exemplo, fez questão de lembrar que ele foi “juiz da Lava Jato” ao anunciar a sua demissão.

Na Globo News, Sergio Moro passou a tarde sendo exaltado pelo time de jornalistas que cobriram sua demissão. Mais de uma vez cometeram o ato falho de chamá-lo de “presidente”.

É assim que se vai construindo os monstros autoritários. Durante a coletiva, Sergio Moro surpreendeu ao elogiar os governos do PT por terem preservado a autonomia da PF. A declaração parece inusitada, mas há cálculo eleitoral embutido nela. Moro está se oferecendo ao público uma alternativa moderada (e de direita) a Bolsonaro. Depois da demissão, o juiz que não queria virar político acabou virando um potencial candidato à presidência da República. Se depender da generosidade costumeira da imprensa lavajatista, já está eleito.

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Estado de exceção permanente

Por Francisco Fonseca*

Desde a criação da Operação Lava Jato, e particularmente desde o golpe de 2016, em larga medida resultado do lavajatismo, o “jogo da política” – entendido como sistema partidário, alianças e disputas eleitorais, como busca, mesmo que historicamente problemática, da representação popular, entre outros aspectos –, em meio à relativa independência das instituições, vem sendo corroído a olhos nus.

Tal corrosão se expressa no fato insofismável de que a “política”, tal como a conhecíamos – no sentido acima – vem sendo substituída por grupos políticos que tomaram de assalto as instituições, a ponto de uma delas, o Poder Judiciário, tornar-se uma espécie de partido político, subdivido em outros em vista de suas ramificações. Isto é, cumpre “funções” de representação ou mesmo partidárias, entendidas aqui no sentido gramsciano de representação política de determinados grupos, porém efetivada por “agrupamentos não formais”.

Trata-se da “partidarização da Justiça”, que suplanta em muito a conhecida “judicialização da política”, uma vez que setores do Poder Judiciário (por exemplo, a referida Operação Lava Jato, a 13ª terceira vara de Curitiba, o TRF-4, o STF, além de setores do Ministério Público, entre outros) pautam sua atuação com fins eminentemente de poder, representando interesses econômicos, de grupos e frações de classes, partidários e internacionais, o que implica interceder no voto (isto é, na vontade) e na percepção popular, e sobretudo na representação política sem o escrutínio do voto, caso das instituições acima.

Instituições que formal e constitucionalmente deveriam garantir o funcionamento do Estado, sem se envolver no jogo da representação e das disputas políticas, campo a cargo do “sistema político”. Deve-se deixar claro não se tratar de visão idílica da política e das instituições, na medida em que essas últimas são também políticas e o Estado jamais foi/é “neutro”, a começar pelo fato de se tratar do Estado no capitalismo.

Trata-se de compreender que na chamada democracia liberal as instituições regulam as “regras do jogo”, com maior ou menor independência, mas minimamente permitem – dentro dos limites do capitalismo e das relações entre as classes e mesmo do contexto internacional – a expressão das correntes políticas que disputam, por plataformas distintas, o voto popular. Em resumo, mesmo com insuficiências estruturais, a vida política tem suas próprias regras, lógicas e relativa independência, naquilo que tem sido chamado de Estado de Direito Democrático no interior das democracias liberais.

Mas o jogo clássico da política tem tido crescentemente a concorrência das “instituições”, que deveriam, reitere-se – à luz dos princípios que regem o referido Estado de Direito –, estar acima dos interesses em disputa, uma vez que esses são historicamente representados pelos partidos políticos, que por sua vez se conectam, direta e indiretamente, com movimentos sociais, representações corporativas, segmentos da mídia, organizações não governamentais, e outras tantas formas de representação de interesses mais ou menos explícitos. Isso significa que as instituições formalmente estatais efetivamente “estão fazendo” política, de forma sorrateira, ilegal e ilegítima, usurpando completamente suas atribuições, como se sabe cabalmente sobre a Operação Lava Jato, expressão e símbolo da seletividade, da perseguição, da imoralidade pública, do patrimonialismo e do protofascismo.

Em outras palavras, o país vivencia, sobretudo desde 2016, o Estado de Exceção permanente, tendo como ponto de culminância a “eleição”, resultante da maior fraude política da história brasileira, de Bolsonaro. Tal excepcionalidade se evidencia desde a macropolítica até os “burocratas do nível de rua”, estimulados e encorajados a praticarem toda sorte de arbitrariedades a partir de interesses “particulares” e “grupais”, fundamentalmente antirrepublicanos.

A excepcionalidade vem se tornando “regra”, tal como na República de Weimar, a ponto de um país importante como o Brasil ter formalmente na presidência da República um chefe de milícia, com seus filhos e agregados atuando como chefetes de máfias do baixo clero. O caso Flávio Bolsonaro, apenas para citar um, é a expressão sintética desse perfil e modus operandi miliciano que está no poder no Brasil.

O conjunto de destruições e desestruturações perpetradas às instituições, aos trabalhadores e aos direitos humanos como um todo, o que inclui os de cidadania, desde 2016 e particularmente desde a ascensão do protofascismo bolsonarista, não tem obtido resposta suficiente das instituições. A própria figura de Bolsonaro, cujo mandato parlamentar infringiu por quase três décadas a regra mais elementar da democracia expressa na máxima “a democracia não tolera a intolerância”, não tendo sido impedida, expõe a fragilidade histórica de nossas instituições. Fragilidade essa levada ao paroxismo desde 2016, embora suas marcas sejam históricas: 1889, 1930, 1946, 1964, e de 2016, reitere-se, aos dias de hoje. Portanto, embora a “lógica da política” continue a operar, outra lógica – essencialmente distópica – opera paralelamente.

Em outras palavras, na lógica da política os partidos políticos continuam fazendo política (isto é, disputando o poder) à luz da representação e da dinâmica político/institucional/eleitoral; as eleições permanecem e se desenvolvem com seus rituais; a institucionalidade do regime democrático se mantém em funcionamento: notadamente o Parlamento como “lugar de debate” e o Poder Judiciário como instância recursal; os conflitos entre os grupos que representam visões de mundo e interesses distintos se mantém ativos; entre outros exemplos.

Contudo, essa institucionalidade formalmente democrática, isto é, voltada às garantias das regras do jogo, opera cada vez mais de modo meramente formal – embora haja espaços contraditórios para a “defesa da política” enquanto campo de disputa –, uma vez que partes significativas do Estado e de seus aparelhos atuam no plano da excepcionalidade, da instrumentalização política de órgãos do Estado (casos de setores da Polícia Federal, do Ministério Público, do STF e outros), retomando as características mais perversas da “República Velha”.

Nesse sentido, o Estado de Exceção age de maneira essencialmente política, produz fatos políticos em nome da “justiça” e da “lei”, derrogando direitos constitucionais (políticos, sociais e trabalhistas), desconsiderando os preceitos referentes aos direitos humanos, atuando em desacordo ao Estado laico e altera “resultados eleitorais”. Por vezes, os três poderes e as instituições deles derivadas confluem, levando ao paroxismo a “farsa democrática”, o que faz que as decisões tomadas escapem cada vez mais dos propósitos clássicos da política, isto é, o agir pautado pelas macrodiretrizes advindas da Constituição. Quando há disputas entre as instituições, por vezes, a defesa de princípios constitucionais ressurge – o que implica o tênue equilíbrio entre a derrogação do Estado de Direito Democrático ou sua defesa por interesses corporativos, ou políticos específicos, ou ainda por cálculo político.

Em outras palavras, o plano das regras do jogo político crescentemente está condicionado à posição situacional dos agentes institucionais perante os atores sociais. Exemplo maior é a prisão e soltura do ex-presidente Lula, uma vez que ambos os atos tiveram como móveis movimentos contraditórios, mas exógenos ao jogo democrático: no caso da prisão, o caráter persecutório ao PT e a Lula, não apenas para tirá-lo da disputa eleitoral, mas para estigmatizar as esquerdas e pavimentar o caminho para as direitas (Temer e depois Bolsonaro, como se viu) com suas pautas ultraliberais e antissociais que jamais seriam vitoriosas em disputas eleitorais cujas regras fossem as típicas do jogo eleitoral/democrático.

Claramente, como se sabe, os Estados Unidos estiveram/estão operando por meio de seus representantes no Brasil (Dalagnol, Moro, Temer, Bolsonaro e muitos outros). Mesmo no caso da libertação de Lula, as razões para tanto foram a tentativa de atenuar o lavajatismo/bolsonarismo (irmãos siameses) do que propriamente manter os princípios constitucionais. Afinal, o modus operandi da Lava Jato (“métodos inquisitoriais”) não apenas eram sobejamente conhecidos como, sobretudo, foram permitidos/acobertados pelo STF. Os exemplos são abundantes.

Em resumo, a vida política brasileira caminha na corda bamba entre a manutenção de mínimas regras democráticas e o Estado de Exceção, com clara preponderância para este. A partidarização (em sentido lato) dos aparelhos do Estado, cujas ações – com contradições, reitere-se –, ao intercederem no terreno da política, expressam a convivência esdrúxula entre democracia e autoritarismo, regras e exceção, política e arbítrio.

Logo, o jogo político/institucional/eleitoral se vê imiscuído à partidarização dos aparelhos de Estado (polícia, Ministério Público e Poder Judiciário), que por seu turno se ramificam em setores do Parlamento (partidos de direita, com PSL à frente) e inteiramente ao Executivo, tomado por uma estranha combinação entre milicianos, fundamentalistas religiosos, ultraliberais rentistas, grandes corporações nacionais e estrangeiras, militarismo selvagem e toda sorte de “elite de rapina”.

Essas duas lógicas, ou planos, convivem num hibridismo inédito que necessita ser compreendido para se repensar (e refazer) o próprio vocabulário político. Afinal, o que significam conceitos como democracia, representação, direitos humanos/sociais/trabalhistas, Estado laico, presidencialismo de coalizão, entre tantos outros?

A possibilidade de comunicação direta com milhões de usuários de redes sociais de forma inteiramente desonesta, cooptando grupos sociais vulneráreis, sem que haja qualquer meio fiscalizatório/punitivo eficaz, é mais um ingrediente importante dessa excepcionalidade em meio às regras democráticas cada vez mais apenas formais.

Mas a complexidade distópica implica considerar que há uma terceira lógica, referente ao papel da cleptocracia ultraliberal, rentista, miliciana, fundamentalista, militar e antipopular, uma vez que atua (esse consórcio) em meio a determinados processos econômicos que vinham se desenvolvendo (casos da desindustrialização e do rentismo), mas que confluem com outros que passaram a se desenvolver de forma aguda (casos da desestatização, da desnacionalização e da desconstitucionalização dos direitos sociais).

Tal cenário é levado ao limite pelas “cleptoelites” que estão no poder, pois seu projeto depredatório implica a liquidação da soberania econômica/política nacional e popular, a revogação da ciência e tecnologia nacionais, a destruição das instituições democráticas e a derrogação dos direitos sociais e trabalhistas. Esse projeto é uma das exigências fundamentais do capitalismo contemporâneo, representado economicamente pela quarta revolução industrial, politicamente pelas direitas em perspectiva internacional e ideologicamente pela manipulação ostensiva das “mentes e dos corações” de grupos sociais por meio das redes sociais e do universo digital (tal como demonstrado por E. Snowden e F. Assange e, em oposição, S. Bannon).

Os Projetos de Emenda Constitucional, as Medidas Provisórias e os Projetos de Lei provindos do bolsonarismo são, em verdade, elaborados por grandes interesses empresariais e rentistas sintetizados pela figura taciturna e cínica, em termos ético/políticos, de Paulo Guedes (por seu turno ligado a think tanks internacionais e nacionais ultraliberais). Nesse sentido, Bolsonaro e seu entorno tosco, como o próprio, são apenas os instrumentos bizarros das elites internacionais, notadamente sediadas nos EUA, mas com grandes conexões nacionais, e profundamente articuladas ao aparelho de Estado do imperialismo contemporâneo.

Tornar estruturalmente débil, em vários sentidos, um país importante como o Brasil, levando ao limite os processos de desnacionalização/desestatização/desconstitucionalização/desindustrialização/financeirização/pauperização parece ser o objetivo dessas elites predatórias tão bem retratadas por Ladislau Dowbor em A era do capital improdutivo (Ed. Outras Palavras, 2017). Pretende-se fazer com que a mão de obra brasileira seja essencialmente competidora com outros países, como Paquistão, Índia, Colômbia, México e tantos outros espalhados por quase todos os continentes, em termos de baixa qualificação, baixos salários e ausência de direitos.

Em outras palavras, um “mundo uberizado” à grande massa dos pobres, e a vida no exterior às elites, também enclausuradas em condomínios de altíssimo luxo no Brasil. Do ponto de vista do capital, a destruição do que havia de nacional (infraestrutura ligada à construção civil e ao petróleo) pela Lava Jato representou o início de um processo levado adiante por Temer e agora por Bolsonaro.

Tais processos acima narrados compõem a lógica trágica do capitalismo neoimperialista contemporâneo (também chamado de “necropolítica”), completamente desinteressado na democracia política e social, que as vê como óbices. Os governos petistas, por mais moderados que tenham sido, representaram óbices ao canibalismo ultraliberal, e por isso foram afastados, tal como, de forma violenta, Evo Morales na Bolívia.

No caso brasileiro, nada disso seria possível sem a participação ativa (atuando e/ou omitindo) das instituições que “roubaram/roubam” o voto dos brasileiros, notadamente os mais pobres, incutindo-lhes a crença de que o “problema do Brasil era a corrupção do PT”. É claro que partidos políticos, como o direitista PSDB, e a grande mídia, contribuíram fortemente para tanto, mas num cálculo suicida, como se pode observar.

Portanto, pensar e fazer política no Brasil contemporâneo implica exame profundo do Estado de Exceção (tal como apontado por G. Agamben), de sua relação contraditória com o que resta das instituições democráticas, e do papel do capitalismo internacional no Brasil.

A tarefa é árdua e exige a capacidade de repensar nossa própria forma de pensar a política, assim como sua relação com o capitalismo. Sem isso estaremos fadados a sermos pautados pela direita, tal como vem ocorrendo no Brasil, com resultados trágicos para o presente e para o futuro da maioria esmagadora dos brasileiros e do Brasil como Nação!

Por fim, tal movimento implica compreender a subversão conceitual que tais processos distópicos representam para, dessa forma e à luz de Maquiavel, “entender a realidade para mudá-la”.

*É professor de ciência política na FGV/Eaesp e na PUC/SP.

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Que anti vai dar as cartas em 2022? E a falta que faz uma rua para a turma do terceiro turno

Ciro Gomes continua encarnando uma das opções eleitorais para se contrapor ao bolsonarismo. Frentes de esquerda e opções à direita e ao centro ainda não têm contorno programático definido (Foto: Sérgio Lima/Poder360)

Por Alon Feuerwerker*

Poder 360

A máxima “é a economia, estúpido”, universalizada a partir da vitória de Bill Clinton em 1992 contra George Bush Primeiro, deve enfrentar um bom teste ano que vem. Se as previsões de recessão americana não se confirmarem, Donald Trump vai às urnas surfando crescimento sólido e pleno emprego. Restará aos democratas navegar no antitrumpismo, uma convergência de rejeições variadas, com foco comportamental e ambiental. Que bicho vai dar?

E por aqui? Se a economia continuar mal, o bolsonarismo chega a 2022 capenga. E sua melhor aposta seria o antipetismo. Mas é ingênuo imaginar que o bolsonarismo vai assistir passivamente à perenização da mediocridade econômica, e caminhar mugindo para o matadouro eleitoral. Se é verdade que Paulo Guedes resta como o último dos ministros ainda com crachá de super, a esta altura o mundo já percebeu: quem acreditou em carta branca caiu no conto do vigário.

O seguro morreu de velho e, na dúvida, o bolsonarismo e o lavajatismo continuam batendo no PT. Mas o presidente parece ter um olho no peixe e outro no gato, também abre fogo regular contra um nascente antibolsonarismo antipetista que lança raízes na direita, no autodeclarado centrismo, e até numa fatia da esquerda, esta em busca da plástica que remova as rugas de quase duas décadas de governos PT, e lhe permita aparecer como novidade.

Não será fácil vertebrar esse antitudo. Em 2018 naufragou, apesar da torcida. Talvez porque sua melhor aposta fosse o PSDB, ele próprio atingido pela marcha do lavajatismo. Mas convém não subestimar. Agora são vários candidatos “contra os extremismos”, desde o ainda tucano João Doria até a franjinha do PT ansiosa por livrar-se da liderança de Lula. Passando por Luciano Huck e por um Ciro Gomes cada vez mais disposto a bater nos outrora aliados.

Diz a sabedoria política: mais que para eleger alguém, a pessoa sai de casa no dia da eleição principalmente para derrotar alguém. Principalmente num segundo turno. Daí a importância de monitorar em tempo real a temperatura dos vários anti. Dois parâmetros são úteis aqui: a taxa de rejeição de cada nome/partido e as simulações de segundo turno. É um erro achar que a distância das eleições diminui a importância dessa medição. É o contrário.

Que anti será hegemônico daqui a três anos? O vacilo na medição dessa variável costuma ser fatal. Ano passado, a campanha de Fernando Haddad parece ter acreditado por um momento que a ida de Bolsonaro ao segundo turno desencadearia a aglutinação de um amplo movimento democrático antibolsonarista. Não rolou. O antipetismo mostrou-se bem mais forte. Pelo menos, Haddad teve um final digno. Não foi o caso do massacrado centrismo antiextremista.

Registre-se que na história do Brasil frentes da esquerda com os liberais só existiram com sucesso quando os primeiros aceitaram a liderança dos segundos. #ficaadica

É corajoso, e curioso, que as mais animadas articulações políticas opositoras apostem exatamente no que deu errado na eleição. Na esquerda, a frente ampla não programática. Na direita e no autonomeado centro, a advertência contra o risco de supostos extremismos. Talvez essa coragem se pague, mas por enquanto é visível a dificuldade de os atores concordarem em qualquer coisa que não seja a vontade de chegar ao poder só surfando na rejeição alheia.

Mas, se isso deu certo para o presidente por que não daria certo contra ele? Aliás, o fato mais vistoso da conjuntura é a agitação dos que apoiaram Bolsonaro contra o PT e agora conspiram a céu aberto para tentar se livrar dele. Exibem músculos na opinião pública, mas falta-lhes rua. Quem poderia fornecer? A esquerda. Mas esta não parece especialmente motivada, ainda, a injetar o combustível político indispensável aos algozes de tão pouco tempo atrás.

Pode ser também a Lava Jato. Daí as piscadelas cada vez mais explícitas, a pretexto de não deixar morrer a luta contra a corrupção. A dificuldade? A relação íntima do bolsonarismo com o lavajatismo. E como Bolsonaro não nasceu ontem, vetou sem medo de ser feliz um monte de coisas na Lei de Abuso de Autoridade. E seu indicado à Procuradoria Geral da República já estendeu o tapete vermelho à turma de Curitiba, lato sensu.

*É jornalista e analista político e de comunicação na FSB Comunicação.

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Reportagem

O bolsonarista pragmático

Marlen Couto

O Globo

Eles aprovam o governo Jair Bolsonaro, embora nem sempre concordem com as declarações do presidente e com todas as suas decisões. Também defendem a Operação Lava-Jato e as propostas anticorrupção encabeçadas pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, e econômicas de Paulo Guedes, sobretudo a reforma da Previdência. Por outro lado, podem deixar de avaliar positivamente o governo, se houver ruptura com essas pautas. Por enquanto, consideram que oito meses de gestão é pouco tempo para cobrar melhorias e tendem a ser otimistas com o futuro. Eis operfil de parte da população que considera o governo Bolsonaro ótimo ou bom e, simultaneamente, não se alinha totalmente à base mais fiel ao presidente, uma tendência apontada em recentes pesquisas de opinião e por analistas ouvidos pelo GLOBO.

A última pesquisa Datafolha, divulgada na semana passada, indica que a aprovação de Bolsonaro é de 29%. No entanto, este percentual é menor em algumas áreas do governo e quando são avaliadas posições e afirmações polêmicas do presidente, o que indica que, mesmo entre seus apoiadores, há quem tenha ressalvas. O instituto estima que 12% dos eleitores compõem o núcleo duro bolsonarista, mais alinhado às suas declarações.

BASE DIVERSA

O desempenho de Bolsonaro na educação e na saúde, por exemplo, tem taxas de aprovação de 19% e 13%, respectivamente, números inferiores àtaxa de aprovação geral do governo. Também abaixo desse patamar estão a aprovação àindicação do filho do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), para o cargo de embaixador nos Estados Unidos (23%), e à atuação de Bolsonaro no combate ao desmatamento e às queimadas na Amazônia (21%). Ainda na área ambiental, apenas 10% concordam com a sugestão do presidente em fazer cocô dia sim, dia não, para combater a poluição ambiental. Outra declaração polêmica de Bolsonaro, que chamou os governadores do Nordeste de “governadores de paraíba”, tem o apoio de 22%.

— O antipetismo ainda está forte. Há gente que apoia a agenda liberal, do Paulo Guedes, e que se alinha com o Moro, que votou no Bolsonaro para estimular a segurança pública. Continuam acreditando (no governo). Mas esse eleitorado tende a reprovar o discurso mais ideológico.

É um pessoal mais pragmático — explica o pesquisador da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, David Nemer, que monitora grupos bolsonaristas no WhatsApp.

Éo caso do carioca Diego Barenco, de 33 anos. O professor de educação física e motorista de Uber é favorável à reforma da Previdência e avalia que o governo tem projetos que podem melhorar o país, mas considera que Bolsonaro precisa ser mais moderado no discurso. Barenco afirma que só deixaria de apoiar o presidente “se descobrisse que é ladrão”.

— É cedo para alguma coisa melhorar já de cara. Temos que esperar. Só acho que, como governante, Bolsonaro teria que ser um pouco mais tolido. A briga com o Emmanuel Macron (presidente da França) foi desnecessária, da parte dos dois, mas ele podia ter se segurado um pouco — conclui, em referência à troca de farpas entre o francês e o brasileiro sobre a Amazônia.

Para Marco Marcondes, de 59 anos, morador de Dourados (MS), as declarações polêmicas de Bolsonaro não são o mais importante no seu governo e o presidente vai “se conter com o tempo”. Marcondes diz que apoia Bolsonaro por considerar que tem “ministério técnico” e cita Paulo Guedes e Sergio Moro como pilares da atual gestão. —Bolsonaro fala com agressividade, mas fala o que a gente quer escutar. Penso mais tecnicamente, sem muita emoção. Vamos pensar no Brasil. Não vou mudar por causa de besteirinha —diz o engenheiro, que discordou da indicação de Eduardo Bolsonaro para a embaixada nos EUA.

— Espero que ele (Eduardo) cumpra o dever e mostre que tem capacidade. Não concordo, mas não é o grande problema do Brasil. Posso discordar de alguma questão, mas na essência acho que Bolsonaro é uma pessoa sincera, que quer o melhor pro país — acrescentou.

A última pesquisa Datafolha também aponta que, mesmo entre os 29% que avaliam o governo como ótimo ou bom, 41% às vezes confiam nas declarações do presidente e 6% nunca confiam. Além disso, só 38% dos seus apoiadores acham que ele se comporta sempre como o esperado. O administrador Joselio da Silva Barreto, de Fortaleza, não está nesse grupo. Ele cita o primeiro escalão como motivo para apoiar o presidente, avalia que o governo vai melhor na economia e também é otimista com o futuro do país. Por outro lado, diz que o estilo “sem papas na língua” às vezes atrapalha:

— Quando o Bolsonaro fala de assuntos sérios e importantes, confio nele. Mas muitas vezes ele fala besteiras como “fazer cocô um dia sim e um dia não”, ou fazer chacota da esposa do Macron. Eu penso que o presidente não deveria se comportar assim, ele deveria ter cuidado com as palavras. Já Emanuelle Vasconcelos, de 32 anos, do Rio, define-se como “anti-PT” e diz que Bolsonaro “está tentando melhorar o país”. Ela cita a segurança como área com mais avanços, também acredita que as polêmicas estão prejudicando o governo, e diz que costuma concordar com a agenda do Palácio do Planalto. — Discordo só quando (no governo se) fala que menino usa azul e menina usa rosa. É uma questão de cada um —diz em referência à frase da ministra de Direitos Humanos, Damares Alves.

LAVA-JATISTAS

Isabela Kalil, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), destaca que a atuação do governo no combate à corrupção é central para essa base mais “volátil” do presidente:

— O grupo que nunca apoiou Bolsonaro tende a ser mais crítico ao enfraquecimento da participação da sociedade civil e a falas consideradas inadequadas e violentas. Na sua base, há insatisfação com apossibilidade de Bolsonaro abandonar a pauta anticorrupção. As pesquisas não conseguiram ainda captar suas nuances — conclui Isabela, que acompanha mobilizações pró-governo nas ruas

— O que aparece nas análises que realizei é que o bloco lavajatista pode desembarcar, vai depender dos desdobramentos da pauta anticorrupção. A antropóloga cita, como exemplos de afastamento dessa pauta, a crise na Polícia Federal, após a tentativa de interferência na Superintendência do Rio, o fato de o presidente não ter vetado completamente a lei do abuso de autoridade, e a investigação que envolve o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), suspeito da prática de rachadinha — apropriação de parte do salário dos funcionários de seu antigo gabinete na Assembleia do Rio. Por enquanto, segundo o Datafolha, a atuação de Bolsonaro no combate à corrupção é aprovada por 34%. Entre os que avaliam o governo como ótimo ou bom, chega a 69%.