Assim como Oxford (sobre a qual escrevi dia desses), Cambridge está a cerca de uma hora de trem de Londres. Não é uma cidade grande. Pouco menos de 150 mil habitantes, acredito. Dominada pelo rio Cam, ela está também entre os mais visitados destinos turísticos do Reino Unido. E aqui vai uma dica para quem quer flanar por lá: o passeio deve começar pela King’s Parade, rua/praça defronte ao King’s College, que, pela sua localização, marca a vida de cidade.
Cambridge tem aquele apelo todo especial para os que gostam do chamado “turismo cultural”. Isso está relacionado à sua universidade. Antiquíssima, ela foi fundada em 1209, a partir de uma dissidência de estudiosos de Oxford. Arenga boa! Cambridge está hoje entre as melhores universidades do mundo. Um dos primeiríssimos lugares em qualquer ranking. Ela conta com cerca de 20 mil alunos. A maioria é de graduação, sure. Mas há um alto percentual de pós-graduandos, em torno de 30/40 por cento do total, com o consequente impacto positivo no orçamento, nas pesquisas, nas publicações etc. Ela é o sonho – e para a grande maioria não passará de um sonho – de muitos estudantes nacionais e estrangeiros.
Tal qual a congênere de Oxford, a organização/governança da Universidade de Cambridge é sui generis. Na governança central, possui departamentos, faculdades ou “schools”, grandes museus (como o maravilhoso Fitzwilliam Museum, dedicado à arte em geral e a antiguidades), laboratórios (entre eles o Laboratório Cavendish, que já “laureou” uns 30 prêmios Nobel), a gigantesca University Library e a Cambridge University Press. Mas há a peculiar estruturação dual com o sistema de instituições independentes e autogovernadas, chamadas “colleges”, aos quais estão vinculados todos os docentes e os estudantes e que servem como um misto de residência e centro de estudos. Cambridge possui hoje 31 colleges. Alguns, como o citado King’s, o Trinity e o St. Jonh’s, para dar alguns exemplos, são prestigiadíssimos. O dinheiro investido em Cambridge – basicamente dinheiro público em uma instituição administrada “privativamente” – gera um conhecimento inestimável. Nas artes, na filosofia, na política, no direito, nas ciências e por aí vai. Isso é o que eu tenho como uma bela “parceria público-privada”.
Cambridge também comemora haver “educado” personalidades de grande destaque nos mais diversos métiers. Na política, Cambridge deu o primeiro e o mais jovem dos primeiros-ministros do Reino Unido, Robert Walpole e William Pitt “The Younger”, respectivamente. Nas letras, Cambridge celebra Christopher Marlowe, John Milton, Samuel Pepys, Lawrence Sterne, W. M. Thackeray, Kingsley Amis, John Dryden, William Wordsworth, Samuel Taylor Coleridge, Lord Byron e Lord Alfred Tennyson, entre outros. Na filosofia, ela vem com Erasmus de Rotterdam, Francis Bacon, Bertrand Russell e Ludwig Wittgenstein. Na economia, com gente do top de Thomas Malthus e John Maynard Keynes.
Mas parece ser nas “ciências” que Cambridge escreveu, ao longo dos séculos, a sua mais bela página. Para se ter uma ideia, Isaac Newton e Charles Darwin, dois dos mais importantes nomes da história da humanidade, passaram por Cambridge. Isso sem falar em James Clerk Maxwell, que, juntamente a Newton e Einstein, é considerado um dos maiores físicos de todos os tempos. Ou em Charles Babbage e Alan Turing, pais da ciência da computação que hoje conhecemos. Aliás, pais e pioneiros não faltam em Cambridge. Foi em Cambridge, em 1932, seguindo os passos de pioneiros como J. J. Thomson e Ernest Rutherford, que Ernest Walton e John Cockcroft realizaram, pela primeira vez na história, a cisão do átomo de maneira controlada. Assim como foi em Cambridge que, em 1953, Francis Crick e James Watson descobriram a estrutura do DNA, o que lhes deu, acompanhado de Maurice Wilkins (do Kings College London – KCL, onde fiz o meu PhD), o Prêmio Nobel de Medicina de 1962. E eles são apenas dois dos oitenta e tantos prêmios Nobel de Cambridge, número que nenhuma outra universidade conseguiu bater.
Bom, viva a ciência e todas as artes de Cambridge!
*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.
Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.
Dia desses, uma colega de trabalho, projetando seus estudos no exterior, me perguntou se valia mesmo a pena estudar no Reino Unido (onde fiz meu PhD), no caso dela para fazer um mestrado e, quem sabe, já em seguida, engatar num doutorado/PhD. Ela tinha dúvidas gerais do tipo: onde morar? Em Londres? Qual o custo da aventura financeiramente falando? Qual o custo em termos de tempo e de sacrifício para a família? E dúvidas acadêmicas: qual universidade? E o direito inglês, incluindo a sua metodologia de ensino, não seria muito diferente do nosso, já que fazem parte de duas famílias jurídicas diversas, o common law e o civil law? E por aí vai.
Respondi na medida do meu conhecimento. Dei notícias boas, claro. Londres, onde morei, é fantástica. As universidades são excelentes. Muitas estão entre as tops do mundo. E dei notícias, digamos, não tão animadoras, a exemplo do custo de vida, que, com a nossa desfavorável conversão da moeda, parece estar bem mais caro do que no meu tempo.
Mas, feito um balanço de tudo, minha resposta foi deveras positiva.
Na verdade, eu sempre enxerguei um mestrado/doutorado no exterior como uma oportunidade não apenas acadêmica, mas também linguística e, sobretudo, cultural.
Quanto à língua – e aqui anoto, por experiência própria no doutorado, a dificuldade com um idioma que não era o meu –, um período de estudos no Reino Unido deve melhorar exponencialmente o inglês do cidadão, inclusive o jurídico. E “os limites da nossa linguagem são os limites do nosso mundo”, acrescento, usando aqui livremente a famosa assertiva de Ludwig Wittgenstein (1889-1951). O português também. Textos mais elaborados. Mais concisos (à moda inglesa). Mais distantes do enfadonho “juridiquês”. Até mais fáceis e gostosos de ler, posso dizer.
E a oportunidade cultural justifica a opção por estudar em Londres, em lugar das mais “provincianas” Oxford e Cambridge. Sempre acreditei na assertiva de Samuel Johnson (1709-1784): “Quem está cansado de Londres, está cansado da vida”. Culturalmente, Londres está entre as cidades mais interessantes do mundo. Muita história e muita arte. Abundam museus de todos os tipos (morei pertíssimo do Museu Britânico). Música de altíssima qualidade. Teatro (e mil vivas para os musicais de West End) e cinema dos melhores. E, sobretudo, pelo menos para mim, tem a literatura. A imersão na cultura e na literatura inglesas torna o aprendizado do direito mais suave e lúdico. Para além das “filosofias” na relação de Shakespeare (1564-1616) com o direito, é possível travar contato com outro gigante da literatura inglesa, Charles Dickens (1812-1870) e a sua notadamente jurídica “A casa sombria” (1853). É possível se tornar íntimo da minha amiga Agatha Christie (1890-1976) ou mesmo ler/sonhar com as aventuras do detetive Sherlock Holmes nos locais onde as cenas se passam. É divertidíssimo.
E para não dizer que não falei de direito, especialmente sobre as idiossincrasias dos sistemas jurídicos brasileiro e inglês, aduzi que, apesar das origens diversas e do desenvolvimento até certo ponto paralelo, países filiados à tradição do civil law (ou romano-germânica) e países filiados à tradição do common law tiveram uns com os outros, no passar dos séculos, inúmeros contatos. No passado, instituições do common law foram absorvidas pelo civil law, e vice-versa. Esses contatos, recentemente, vêm, cada vez mais, se estreitando. Hoje, com a facilidade das comunicações e do intercâmbio cultural, um jurista inglês pode estar conectado com um jurista brasileiro em tempo real. Isso faz com que os sistemas se aproximem cada vez mais. E nunca esqueçamos que, em ambas as tradições, o direito sofreu forte influência da moral cristã. As doutrinas filosóficas coincidentemente em voga puseram em primeiro plano, desde a época da Renascença, o individualismo, o liberalismo e a noção de direitos subjetivos. A própria substância do direito – e aqui se está falando da concepção de justiça que, em ambos os casos, é a mesma – impõe semelhantes soluções para as questões jurídicas em ambas as famílias.
E, assim, intimei: escolha sua linha de pesquisa, faça suas malas e vá para a outrora Terra da Rainha. Quem sabe você não se torna amiga do Rei?
*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.
Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.
Tenho falado muito de livros, é verdade. Até já confessei a vontade de literalmente dormir entre eles. Mas não se enganem: os livros não são o único prazer da minha vida. Gosto também de viajar. E gosto de uísque, o cachorro engarrafado, e seus assemelhados. Se com a pandemia ando meio “aposentado”, já fui bom nisso. Falo tanto de viagens como de uísque. Fiquem certos.
Em assim sendo, vou misturar esses prazeres todos. Tratemos dos pubs de Londres, em especial dos apelidados “pubs literários”, que conheci/frequentei quando por lá morei. Eu posso dizer que os pubs literários estão para Londres – embora sem o mesmo glamour, reconheço – como os cafés literários estão para Viena ou, mais badaladamente, para Paris.
No que toca aos pubs, Londres não chega a ser uma Dublin. “Na Irlanda”, disse o Doutor Johnson, “ninguém vai aonde não se pode beber”. Dublin, menor do que Londres, deve ter hoje quase mil dessas “public houses”. É ao derredor delas que a vida gira: negócios e política, esporte e religião, o “meu” direito e a “nossa” literatura. E os pubs são testemunhas ou mesmo cenários da arte de gente como James Joyce, Sean O’Casey, Flann O’Brien, Brendan Behan, Patrick Kavanagh e Seamus Heaney, entre outros menos votados. Ou menos beberrões.
Mas Londres, até pelo igualmente chuvoso clima, tem a mesma preferência etílica. Quase todos os dias, fim de expediente, coisa de 17 horas, bebe-se alguma ou muita coisa. O pub é local de muita discussão sobre futebol. Mas a literatura tem também o seu espaço. E, com a ajuda do “Novel Destinations: Literary Landmarks from Jane Austen’s Bath to Ernest Hemingway’s Key West” (National Geographic Society, 2009), de Shannon McKenna Schmidt e Joni Rendon, vou citar três dessas casas, ditos “pubs literários”, que frequentei. Quanto a eles, tal como o velho guerreiro Timbira do “I-Juca-Pirama”, do nosso Gonçalves Dias, eu posso dizer, embora não com a mesma dramaticidade, “Meninos, eu vi”.
Começo por The Spaniards Inn, no pitoresco subúrbio de Hampstead. Dizem que Jonh Keats morava ali perto e era um habitué da casa. O pub é citado no “Dracula”, de Bram Stoker. E o Spaniards foi também cenário em “The Pickwick Papers”, de Charles Dickens. Isso já basta para garantir sua fama. Bairro fora do centro, eu ia a Hampstead vez ou outra, quando estava “cansado” de Londres. Embora isso me preocupasse deveras, já que, segundo o Doutor citado acima, “quem está cansado de Londres, está cansado da vida”.
Outro recomendadíssimo é The Anchor. Na beira do Tâmisa. Margem sul. Vista maravilhosa. Do rio e de boa parte de Londres (sua margem norte, mais rica e famosa), incluindo o domo da St Paul’s Cathedral. A redondeza é show. A Tate Modern, o museu de arte moderna do Reino Unido. E o Globe Theatre, a nova casa de Shakespeare, e isso já diz tudo. Contam que Samuel Pepys refugiou-se no The Anchor “enquanto assistia à destruição de Londres no Grande Incêndio de 1666”. Tem doido e memorialista para tudo. Já eu levei muitos amigos brasileiros lá. Caminhava por ali todos os finais de semana. Considero a caminhada pela margem sul do Tâmisa a melhor de Londres. E tomava umas pints, claro.
Por derradeiro, cito o antiquíssimo Ye Olde Cheshire Cheese, sito na Fleet Street, antiga rua dos jornais londrinos. Bem pertinho da biblioteca do King’s College London – KCL, onde estudava quase diariamente, eu baixava por lá com frequência. Os citados Doutor Johnson (que morava pertinho), Pepys (o do incêndio) e Dickens (que alude ao pub em “A Tale of Two Cities”) foram regulars de lá. Assim como Conan Doyle, G.K. Chesterton, P.G. Wodehouse, Thomas Carlyle, E. M. Foster, Joseph Conrad, Sinclair Lewis, W. B. Yests e outros membros do Rhymers’ Club. Eu mesmo nunca escrevi nada por lá. Mas levei uma queda na escada sem deixar cair a cerveja. O que já é alguma coisa.
Bom, as opções de pubs em Londres são muitíssimas. Há até passeios/caminhadas guiadas explorando isso. Quando inspiradas pela literatura, elas são apelidadas de “Literary London Pub Walks”. Estando lá, podem me chamar para tanto. Eu vou. Só não sei como volto.
*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.
Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.
Nas minhas idas diárias de Metrô até o centro de Londres para meu trabalho de pesquisa na universidade que me recebe, neste primeiro semestre de 2019, observo atenta e discretamente as pessoas, suas atitudes, seus costumes. Antes de vir para cá pela primeira vez, durante boa parte de minha vida, escutei que em um país culto como a Inglaterra as pessoas iam e voltavam do trabalho lendo livros no Metrô e nos ônibus. Era isso que esperava encontrar aqui. Que nada. Contei e contei muitas vezes e, numa média, percebi que hoje, aqui também, de cada 10 passageiros, entre 7 e 8 estão ligados em seus smartphones, até certo ponto alheios ao entorno, trocando mensagens com alguém do outro lado, lendo ou escutando notícias, vídeos, músicas. Alguns poucos leem esses jornais tabloides sensacionalistas de notícias, distribuídos gratuitamente na porta das estações, aqui muito comuns. Quero nesta carta dizer por que considero a Internet e as redes sociais uma pequena revolução, apesar de tudo que vemos também de negativo nelas.
Vi, no bairro onde estou morando temporariamente, Harlesden, um reduto de imigrantes humildes, indianos, árabes, asiáticos do leste, africanos, e muitos brasileiros, as coisas aparentemente mais contraditórias. Aqui tem de tudo, lojinhas e mercadinhos com produtos de todo o mundo, gente falando tudo que é língua. Muitas mulheres muçulmanas – e aqui existem muitas -, com seus véus ou hijabs, ativas e alegres falando em seus celulares nas suas línguas de origem, no que pode parecer um paradoxo. O centrinho comercial do bairro parece uma pequena 25 de março, em São Paulo, só que também com mercadinhos e lojas de produtos e fastfoods de tudo quanto é lugar do mundo, frutas vendidas nas calçadas, casas de jogos, com gente de tudo que nacionalidade, um pequeno mercado de Istambul. Como professor, fiz questão de procurar e visitar a escola infantil do bairro e percebi que mais de 2/3 das crianças são filhos de imigrantes, mas já inglesas.
Londres é uma cidade de fato mundial, com gente de todas as cores, raças, religiões, línguas, em todas as esquinas, especialmente na periferia. Tirando a barreira da língua, torna-se tão parecida com todas as grandes cidades do mundo e do Brasil. Do que vi no Metrô e no bairro, pensei comigo: como o mundo moderno está ficando cada vez mais igual, menor, interligado. Apesar do conservadorismo, de toda xenofobia, do fundamentalismo de direita, do racismo que vemos no continente e no mundo, com a globalização o caldeirão humano se mistura cada vez mais. E isso é bom. Fico pensando em como tudo tem mudado tão rapidamente desde que acordei para a vida consciente.
Mas vamos voltar aos celulares e às redes sociais. Mesmo na Europa, um ser humano do ano 1750, pela forma como se comunicava e se locomovia, em veículos puxados por animais e barcos a vela, estava tecnologicamente muito mais próximo de um habitante do Império Romano do que do seu neto em 1850, tamanha foi a transformação iniciada pela Revolução Industrial, que ligou um botão, iniciou um frenético e pela primeira vez ininterrupto processo de transformação tecnológica que mudou a face do mundo em tão pouco tempo. Quando Abraham Lincoln morreu nos EUA, em 1865, passaram-se 13 dias para a notícia chegar à Europa e possivelmente muito mais até o Brasil, pois as informações viajavam na velocidade dos veleiros que cruzavam os mares, não havia ainda cabos submarinos. Os navios a vapor estavam apenas engatinhando.
Hoje, com centenas de cabos de comunicação estendidos nos leitos dos oceanos e 5000 satélites girando aí em cima, se acontecer agora um terremoto no Japão ou na Bolsa de Londres, em 13 minutos todo o mundo estará sabendo. Depois que o primeiro avião atingiu uma das Torres Gêmeas em Nova Iorque, ainda em 2001, boa parte dos seres humanos, informados do atentado em questão de minutos, correu para frente das TVs em suas casas, escritórios ou lojas e viu o segundo avião bater na outra torre ou visualizou em tempo real o desabamento daqueles prédios. Por vezes, não nos damos conta de como tudo muda cada vez mais rápido.
O fato é que mundo é cada vez mais um só, integrado, uma Aldeia Global, termo criado pelo filósofo canadense Herbert McLuhan na década de 1960, que tinha como objetivo sugerir que as novas tecnologias eletrônicas e o progresso tecnológico tendiam a encurtar distâncias e reduzir todo o planeta a uma mesma comunidade, um único mundo, onde todos estariam, de certa forma, interligados com todos. O cientista social espanhol Manuel Castells, ao final da década dos anos 90, já no início da Internet para todos, também disse que temos hoje uma Sociedade em Rede. Quais têm sido e serão no médio prazo as consequências estruturais na sociedade humana e nas mentes de toda essa vertiginosa mudança?
O escritor inglês Aldous Huxley, impressionado com o que via ainda na década de 1960, chamou tudo isso de um Admirável Mundo Novo, no título de seu famoso livro, que li há quase 40 anos, ainda garoto, encantado. Vendo esse turbilhão de mudanças tecnológicas, que acelera também os processos físicos, socais, históricos, que dá ao ser humano um imenso poder e ao mesmo tempo encurta o tempo de tudo, que nos exige cada vez mais, nos enche de informações até o cérebro não suportar, que a tudo liquefaz, desfaz, como disse o pensador Zigmunt Bauman, fico imaginando, sonhando, aonde iremos como espécie neste novo milênio, se não nos destruirmos antes? Aonde acabará tudo isso? Até onde irá a humanidade? Pena que nossa vida seja tão curta e não possamos acompanhar a saga humana pelos próximos séculos.
A comunicação em tempo real por aparelhos eletrônicos através da Internet e das redes sociais virou uma febre, uma tentação difícil de resistir, incorporada ao modo de vida e trabalho diário, e que está alterando o próprio ethos humano, afastando, mas ao mesmo tempo, contraditoriamente, aproximando as pessoas. Também acelera todos os processos produtivos e sociais. As empresas de todo porte as usam em todos os seus processos intrafirmas. Aparentemente, conversamos cada vez menos com quem está próximo, mas ao mesmo tempo nos ligamos cada vez mais com mais pessoas, com quem está longe ou em fontes de informação que selecionamos, através das redes sociais e aplicativos.
Há apenas 30 anos, os únicos que portavam um equipamento de comunicação portátil eram alguns soldados ou técnicos de empresas, com um aparelho pesando alguns quilogramas e uma antena imensa. Lembremos que o rádio em massa e a TV chegaram mundo e ao Brasil há apenas 60 ou 70 anos. Os primeiros computadores pessoais para o cidadão comum, que hoje parecem coisas de museu, e a Internet para grande massa das pessoas, só existem de meros 25 anos para cá. Quando surgiram, há apenas 20 anos, os celulares mais antigos só faziam ligações para outros aparelhos, pesavam quase 1 Kg, não tinham acesso à Internet, além de serem caríssimos para a maioria.
Os celulares e smartphones têm apenas 10 anos – já estamos tão acostumados com eles que às vezes esquecemos disso -, mas hoje já existem 6 bilhões deles, uma vertigem, até mesmo na mais isolada aldeia africana, na Sibéria ou na selva amazônica. Quase todas as empresas e grande parte das residências já têm um aparelho de Internet sem fio. Tais aparelhos e os computadores vêm mudando consideravelmente o modo de vida humano. Com eles, a mais simples das pessoas pode hoje acessar um site ou conversar instantaneamente com a família ou amigos do outro lado da cidade, do país ou do mundo a qualquer hora, fazer compras em lojas, operar sua conta bancária, monitorar sua casa ou seu filho na escola, receber imagens ou ver filmes, fazer reuniões eletrônicas com pessoas que estão há milhares de quilômetros etc. Um poder considerável se bem usado. E tudo em tão pouco tempo. Que diferença do tempo em que se esperava até meses por uma carta para saber notícias, há apenas meio século, quando o tempo demorava a passar. Hoje é o cérebro que mal consegue acompanhar o ritmo frenético das coisas. Quais estão sendo e serão as implicações mais profundas dessa mudança para a sociedade humana nas próximas décadas?
Bauman e especialmente o pensador italiano Humberto Eco, por exemplo, morreram pessimistas com o que viam, enxergavam em tudo isso, a meu ver, um problema, pois que tais inovações estariam também, segundo eles, liquefazendo os valores positivos que dão coesão à sociedade, o caráter, fragmentando o pensamento mais reflexivo. Há também outros autores que veem um sentido negativo em tudo isso, dizendo que, com o advento da Internet e das redes, estaríamos começando a viver em realidades paralelas, em ambientes apenas virtuais, com o ser humano perdendo sua sensorialidade, seu contato com o mundo real. Outros chegam a afirmar que o caminho das redes sociais é o da imbecilização e massificação da população mundial, que passaria a viver em uma realidade distópica, em telas e mais telas, distante do real.
Tenho cá minhas dúvidas sobre todas essas visões, que considero exageradas. Não deixo de ver esses riscos, mas quero aqui mostrar também o lado progressivo de tudo isso. Confesso que sou um entusiasta da revolução tecnológica, da Internet e das redes sociais. Vejo-as como um processo muito contraditório sim, mas ao mesmo tempo como instrumentos extremamente transformadores, pois estão dando às pessoas comuns um fenomenal poder de comunicação, informação e interação absolutamente inimagináveis para elas há algum tempo. Um poder que um ser humano do ano 1900 ou mesmo 1950, por mais rico ou visionário que fosse, sequer podia sonhar. Por isso os governos ditatoriais, como na China, sabedores desse potencial, monitoram, limitam e censuram as redes sociais, porque as veem também como um grande perigo. Mesmo nos EUA, não nos enganemos, se um dia precisarem, por se se sentirem ameaçados, desligarão o botão da Internet e das redes sociais ou bloquearão metade de seus usuários.
Avalio também que esse processo está de fato quebrando o monopólio da informação na mão dos grandes grupos de comunicação e dos governos. E isso é bom. As maiores fontes de informação continuam nas mãos de grandes empresas capitalistas de comunicação, sem dúvida, que são conservadores. Mas por outro lado, jornalistas e cidadãos comuns criam e mantém milhões de sites, páginas e blogs independentes, que vão democratizando a informação em tempo real, quebrando aqueles monopólios. É um processo incompleto, claro, porque muito recente, mas progressivo e em andamento. Não é à toa que muita coisa que vemos hoje nos grandes telejornais já vimos antes em sites e blogs de notícias e nas redes sociais e aqueles grandes meios já não podem esconder muita coisa. Os grandes telejornais, na maioria das vezes, veiculam notícias já atrasados em relação às redes.
Bilhões de pessoas seguem páginas, sites, ou estão em grupos de discussão, interagindo, se informando, recebendo mensagens e notícias dos amigos quase em tempo real, lendo mais, pensando mais, tomando contato com versões opostas, com o contraditório, sobre os distintos assuntos. Um turbilhão, que arrasta a todos para dentro, sobre todos os assuntos. E isso faz avançar o pensamento, penso. Um único fato importante é compartilhado milhões de vezes em todo país e mesmo no mundo em questão de poucas horas. Lembremos que o conservadorismo, o obscurantismo, sempre se apoiaram na escuridão, nas trevas, na ignorância das pessoas, na desinformação. E a informação cria luz, ilumina.
Hoje uma simples criança pode pesquisar e saber de qualquer assunto nos mecanismos de busca. Cegonhas já eram. Os computadores, celulares, sites e as redes sociais têm dado às pessoas a oportunidade de fugir do pensamento único, potencialmente saberem sobre tudo, se quiserem. Os retrocessos temporários no pensamento das massas que vemos nos países e nas redes não são culpa dessas tecnologias em si, mas decorrentes de outros fatores, como nosso passado de incultura e ignorância, que não conseguimos superar, da publicidade massificante das grandes empresas, cujos únicos valores são o consumo e a aparência, e da confusão política criada pelas atitudes erradas das lideranças e grupos políticos.
Humberto Eco, a quem muito admiro e nos deixou a poucos anos, chegou a dizer que as redes sociais deram voz a uma multidão de imbecis, sugerindo, pelo que se pode entender, que são um problema. Prefiro ver de outra forma. É obvio que há muita coisa de ruim nas redes, ideias equivocadas, ódio, fundamentalismo conservador, mentiras, maldade, insultos de toda ordem, banalidade. Mas as ideias conservadoras e maléficas não são criadas pelas redes sociais nem como decorrência delas. Máquinas não criam ideias. Isso tudo que vemos surgir de errado nas redes sociais hoje, o conservadorismo, o ódio, o obscurantismo, a xenofobia, o racismo, as fake news, a futilidade, já existiam, estavam ai; as redes apenas destaparam o lado mais obscuro da mente humana, ampliando sua difusão. Mas por outro lado, a tecnologia e as redes também nos dão a oportunidade de enfrentar essas ideias equivocadas, fazer o contraponto, e chegar a milhões instantaneamente, o que antes era impossível. A questão é que os setores de direita também têm sabido usar muito bem esses mecanismos, às vezes bem melhor que as esquerdas ou os movimentos progressistas.
Além disso, a proliferação de ideias conservadoras, o retorno de governos de direita em vários países, não são explicados pelo advento da Internet e das redes sociais, mas em grande medida pela decepção dos povos com governos de esquerda ou com aqueles que se esperava fossem de fato progressistas, que frustraram suas expectativas, levando as pessoas a os castigarem, elegendo seus adversários conservadores mais duros. Contra a esquerda pesa também até hoje, em todo mundo, o véu pesado do colapso das experiências socialistas no Leste Europeu, o que dá um argumento poderosíssimo ao conservadorismo, assunto que a esquerda ainda não enfrentou ou se nega a passar a limpo.
O que explica o rebaixamento da cultura hoje, o conteúdo banal das músicas que exercem fascínio sobre milhões, a superficialidade, a imensa confusão, a corrosão do caráter, o desinteresse de grande parte da juventude pela política, que vemos também nas redes, não é seu advento em si, mas a deficiência de nossa educação, a moral consumista e imediatista do capitalismo já em decadência, a desilusão com a política e também o imenso desgaste da ideia de uma sociedade alternativa ao capitalismo, para lembrar nosso velho Raul Seixas, com a consequente erosão dos valores sobre os quais ela se assenta, criado em parte pelas frustrações com as experiências que se propunham superiores.
O que levou Trump ao governo nos EUA foi de certa forma a decepção e o voto de muitos setores da população norte-americana, inclusive de trabalhadores negros e da juventude, pobres, com Obama. Toda expectativa com seu governo foi em grande medida frustrada. O que dá força ao conservadorismo no Brasil de hoje não são as redes sociais, mas a frustração de grande parte da população com os governos de esquerda recentes. Enquanto as esquerdas e movimentos progressistas não passarem tudo isso a limpo e não souberem reconhecer de forma autocrítica perante as populações onde erraram, ficará mais difícil virar o jogo. Não basta a esquerda criticar o erro dos eleitores de direita se não sabe reconhecer os seus próprios. Novamente, portanto, devemos perceber que o problema não são a comunicação cada vez mais rápida e as redes sociais, mas o que se comunica nelas.
Evidentemente, não nego, que o vício das redes sociais são um grande risco à fragmentação do pensamento, para nos afastar de uma atitude mais reflexiva e profunda, da leitura paciente e compreensiva de um bom livro ou texto. Esse é um perigo maior, por exemplo, para as crianças, que não querem desgrudar dos jogos nos tablets. Quem tem filhos sabe do que falo. Mas o pensamento pouco reflexivo e tendente a esse vício também não é culpa das redes sociais e da tecnologia, mas de uma educação que não imponha regras.
Esse risco se resolve de outra forma, com disciplina, horários determinados para cada coisa em nossa vida, tempo certo para o trabalho, para o estudo e a leitura, para o lazer, atividade física, necessidade de informação etc., reduzindo a exposição ao vício das redes sociais. Muitas escolas obrigam os alunos a colocarem de lado os celulares na entrada da escola ou da sala de aula. Pais estabelecem horários para cada coisa às crianças. Como vemos, mais uma vez, o problema não são as redes, mas sim como nós planejamos e o que fazemos com nosso tempo. Talvez os ingleses já não leiam livros no Metrô de Londres porque podem ter concluído que é melhor ler em casa com calma do que no balanço dos trens, sendo mais eficaz aproveitar o tempo de viagem para se informar e comunicar, o que também é uma necessidade. Ou porque avaliem que podem aprender tantas coisas no que leem nas redes quanto nos livros.
A luta por uma sociedade melhor, baseada em outros valores como solidariedade social, igualdade, justiça, paz, segurança, com o que muitos de nós sonhamos, não será decidida pelas redes sociais, mas pelas ideias que propagamos nelas e especialmente pelas lutas sociais, se soubermos conquistar as mentes humanas para a melhor alternativa. As Internet e as redes sociais são, nesse sentido, apenas ferramentas poderosíssimas de informação, de acesso a muitas pessoas, de esclarecimento e empoderamento social, de integração, se soubermos usá-las a serviço das ideias e fins corretos. Hoje cada um de nós pode falar com 100, 200 ou milhares de vezes mais pessoas em um único dia do que falávamos há apenas 15 anos.
O problema é que tudo ainda é muito recente e não acontece no ritmo que queremos, apesar de as coisas mudarem cada vez mais rapidamente. Além disso, os donos dessas grandes redes sociais tentam limitar cada vez mais o alcance das publicações. Governos censuram as redes. Também há uma guerra de versões entre os opostos políticos. Mas com a revolução tecnológica, a Internet e as redes sociais, inexoravelmente o tempo histórico de tudo se acelera, ao contrário do que avaliam os mais pessimistas. As experiências com ideias e governos, por exemplo, serão feitas cada vez mais rapidamente. O desgaste do novo governo no Brasil, com apenas poucos meses, é um exemplo da aceleração dos processos em que as redes sociais contribuem e muito. A atual guerra nas redes politiza o país e não deixa quase ninguém de fora, envolve a quase todos. O desfecho de para onde irão os países e a humanidade, se para o bem ou para o mal, para uma sociedade melhor ou de volta para a barbárie – risco que não está afastado, não será decidido pela existência em si das redes sociais. O resultado de tudo isso está em aberto. Vai depender antes de tudo das ideias que nelas propagamos, de ousadia e das lutas sociais
Obviamente, esta profunda transformação tecnológica e do modo de vida ocorre dentro do sistema da capital, que de tudo se apropria para obter lucro. As empresas produtoras de smartphones e computadores não os produzem para o bem das pessoas e da sociedade, mas para seus ganhos. Microsoft, FACEBOOK e outras gigantes da informática são empresas capitalistas. Paralelamente a toda essa transformação tecnológica, com o capitalismo em seu regresso ao liberalismo mais radical, há também um processo de rápida reconcentração de renda e riqueza no mundo, com uma volta do crescimento da pobreza, inclusive nos países centrais. Mesmo as classes médias dos EUA e da Europa estão descendo a ladeira rapidamente em sua renda real e seu nível de vida. Eu nunca esperava encontrar tantos mendigos como vi aqui em Londres.
Não é este sistema que estou defendendo; pelo contrário somos muito críticos e lutamos contra isso. Do que falo aqui é que por dentro de todo esse sistema social avassalador, desse turbilhão estonteante, há também elementos extremamente contraditórios e progressivos que podem ser aproveitados. Em minha modesta opinião, a Revolução Tecnológica e das comunicações, com a informação sobre quase tudo em tempo real, os mecanismos de busca, as redes sociais, é um deles. Ela está ajudando a dissolver o velho mundo e seus pilares. O que vemos de ruim hoje são antes de tudo reações conservadoras a esse movimento, como foi a Inquisição em seu momento. Mas o mundo seguiu em frente. Para que lado iremos, dependerá de nós.
Os seres humanos que sofreram ou perderam a vida na Idade das Trevas, na Inquisição, nos campos nazistas ou em ditaduras sanguinárias viveram em momentos muito mais difíceis e piores que o tempo histórico que nos corresponde viver. Mesmo assim, a humanidade terminou por superar aqueles tempos obscuros e de sofrimento, achando uma saída. Com todas as contradições e confusão que ainda vemos hoje, devemos acreditar que a inteligência, a capacidade de reflexão e a bondade humanas poderão superar nosso lado bárbaro, o ódio e a irracionalidade, abandonando as ideias e sistemas sociais que geram desigualdade e sofrimento, achar um caminho certo. Já fizemos isso outras vezes. O caldeirão humano está cozinhando. Mesmo sabendo de todas as suas limitações e contradições, especificamente no que toca à Revolução Tecnológica, a Internet e às redes sociais, demos boas-vindas à nossa Aldeia Global, à Sociedade em Rede, a esse Admirável Mundo Novo.