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Reportagem especial

A comuna do RN: como um sapateiro, um estivador, um sargento e um servidor público transformaram Natal na primeira capital comunista das Américas

Por Bruno Barreto

O governador do Rio Grande do Norte Rafael Fernandes Gurjão caminhava para mais uma solenidade maçante (no caso a formatura dos contabilistas do Colégio Santo Antônio) daquelas cheias de bajuladores, que os políticos só vão por obrigação, no Teatro Carlos Gomes (atual Alberto Maranhão).

Era por volta das 19h30 do dia 23 de novembro de 1935 e o governador nem fazia ideia do que estava por vir até que surge no vácuo o som dos estampidos. Começava naquele momento o que para a direita se convencionou chamar de Intentona Comunista de 1935 e para a esquerda se tenta dar o nome de Levante ou Insurreição no lugar da palavra que significa “cometimento temerário” ou “plano insensato”.

No quartel do 21º Batalhão de Caçadores do Exército um grupo de sargentos tomou o controle, quebrou a hierarquia e prendeu oficiais em nome de Luís Carlos Prestes, conhecido como “Cavaleiro da Esperança”, líder da Aliança Nacional Libertadora (ANL).

No Rio de Janeiro e em Recife também teríamos sublevações, mas as duas cidades não foram tão longe quanto Natal. A capital dos potiguares tornava-se naquele 23 de novembro a primeira cidade comunista das Américas.

A revolução, intentona, levante ou insurreição espalhou pelo Rio Grande do Norte e quase metade do Estado foi tomado de assalto.

À frente do movimento estavam tipos populares como sapateiro José Praxedes que proclamou a instauração de uma Junta Governativa Popular Revolucionária. Mossoró estava representada pelo funcionário do Colégio Atheneu João Galvão. Além de João Francisco Gregório, presidente do Sindicato dos Estivadores que assumiu o controle do cais do porto.

O líder militar do movimento era o Sargento Quintino Clementino Barros, um músico. Ele tomou o quartel do 21º BC do Exército em poucos minutos com a ajuda do soldado Raimundo Francisco de Lima (“Raimundo Tarol) e o cabo Giocondo Dias (“Cabo Dias”).

Os oficiais rendidos não aceitaram aderir à revolução e ficaram presos no cassino do quartel. Coube ao “Cabo Dias” pronunciar a voz de prisão: “os senhores estão presos em nome do capitão Luiz Carlos Prestes!”.

Enquanto isso o governador e seu séquito fugiam. Primeiro Rafael Fernandes se escondeu no consulado improvisado do Chile. Depois no da Itália e por fim foi parar em um navio mexicano ancorado no porto de Natal onde ficou até ter o poder restabelecido com ajuda de forças policiais da Paraíba. Foram três asilos políticos em três dias.

Durante pouco mais do que três dias, ou 82 horas como apontam alguns historiadores, ocorreram saques, ou expropriações, todo o dinheiro do Banco do Brasil foi raspado e parte dele distribuído entre os pobres. O bonde passou a funcionar com preços das passagens reduzidos e a revolução se espalhou por quase metade das 41 cidades potiguares naquela época.

Com a chegada de forças militares da Paraíba e com o fracasso do levante no Rio de Janeiro e em Recife os sublevados decidiram por evitar um banho de sangue e fugiram no dia 27 de novembro.

A seguir mostramos uma série de fatos que você não conheceu na escola quando estudou a respeito da “Intentona Comunista de 1935”.

 

Disputas entre oligarcas deram condições políticas para o movimento

Há menos de um mês Rafael Fernandes tinha tomado posse no cargo em tumultuado processo eleição indireta. Era primeiro (e seria o único) governador sob a égide da liberal constituição de 1934.

A confusão se dava pela eleição de 1934 que manteve os padrões da República Velha (1889/1930) com fraudes, violência e voto de cabresto, três elementos que findam sendo uma coisa só: o desrespeito à vontade do eleitor.

Foi neste pleito que escolheu os deputados que elegeriam o Governador do Rio Grande do Norte de forma indireta. As forças políticas que davam as cartas no Estado estavam divididas entre o Partido Popular (PP) que reunia os oligarcas derrotados no Golpe de 1930 e o a união dos grupos de Café Filho e do ex-interventor Mário Câmara que formavam a Aliança Social.

Na primeira contagem a dupla Café Filho e Mário Câmara levou a melhor, mas o PP denunciou fraudes e o recém criado Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou novas eleições.

Novamente o tripé voto de cabresto, violência e fraudes estava posto lado a lado. No fim o PP venceu elegendo três deputados federais e 14 estaduais contra dois federais e 11 estaduais de seus adversários.

Rafael Fernandes virou governador, mas teria que lidar com o ranço dos adversários que passaram a conspirar diariamente. Não era uma conspiraçãozinha de gabinete. Era algo aberto e provocador.

Assim relata Natanael Sarmento em “Às Armas Camaradas!” (pág.30)

“As tramas conspiratórias à deposição de Rafael Fernandes eram públicas, os conspiradores não davam importância à confidencialidade. A movimentação dos chefes políticos interioranos, prefeitos, ligados ao interventor Mário Câmara, e as confabulações dos partidários de João Café Filho, ocorriam à luz do dia”.

A disputa entre duas pontas da elite política acabou aproximando membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e da ANL aos derrotados da eleição de 1935.

Era uma situação que enfraquecia politicamente o governador e contribuiu para o levante comunista.

Para piorar a situação, Fernandes tinha demitido 300 guardas-civis que estavam indignados e prontos para aderir à revolução.

Tudo isso em um contexto do mundo entre guerras (1918/39) em que a polarização entre nazifascimo e comunismo esmagava a democracia liberal. Isso, claro, se refletia num Brasil que dali a dois anos sofreria com o Golpe do Estado Novo.

As tensões no Rio Grande do Norte eram reflexo da disputas entre a ANL e a Ação Integralista Brasileira (AIB) – de orientação fascista- em que o próprio Getúlio Vargas tentara se equilibrar entre os polos para, ao golpear a frágil democracia brasileira em 1937, colocar os dois grupos na ilegalidade,

A revolução se espalha pelo interior

Revolução é notícia pelo pais e chega ao interior do RN

Com o controle em Natal a fase seguinte seria espalhar a revolução para o interior. Assim foram formadas três colunas: a primeira rumou ao litoral sul até a divisa com a Paraíba. A segunda saiu pelo litoral norte com o objetivo de alcançar por esse trajeto Macau e Mossoró até a divisa com o Ceará. A terceira rumou para as regiões Central e Seridó.

O objetivo era depor prefeitos, assumir o controle administrativo e soltar os presos políticos. Além de confiscar dinheiro e armas.

Aliciar novos revolucionários era outro plano.

Essa estratégia se repetiu em quase metade dos 41 municípios existentes no Rio Grande do Norte naquela época. Os governos populares com lideranças ligadas ao PCB, Aliança Social e ANL.

Foi tomado o controle nas cidades de Santa Cruz, Nova Cruz, Currais Novos, Acari, Ceará-Mirim, São Gonçalo, Taipu, Baixa Verde (atual Campo Redondo), Macau, São Miguel, São José de Mipibu, Arês, Canguaretama, Goianinha, Lajes e Angicos.

A Guerrilha do Vale do Açu

 

Imagem de Manuel Torquato:  Guerrilha surge antes do levante e termina em 1936

No Vale do Açu, antes mesmo da revolução, já estava em uma guerrilha rural sob o comando de Manuel Torquato. Natanael Sarmento em “Às Armas Camaradas!” (Pág. 83) o descreve como um homem de leituras, convicções políticas e, sobretudo, de ação.

Ele chegou a ser preso em Mossoró, mas conseguiu fugir. A sua atuação foi um ensaio do que estava por vir.

A guerrilha surgiu antes do levante de 35 e seguiu após o fracasso. Eram ataques surpresas em que o líder conclamava os camponeses à luta contra a exploração e o monopólio da terra.

Por conta da estratégia que se assemelhava ao cangaço, os jornais de forma proposital faziam os leitores crerem que o militantes da Guerrilha do Vale do Açu eram cangaceiros.

A guerrilha só caiu em 1936.

Mossoró teve papel discreto

Praça Rafael Fernandes nos anos 1930. Mossoró ficou em compasso de espera (Foto extraída do site Memória Fotográfica)

Nos anos 1930 Mossoró já era a segunda cidade em importância do Rio Grande do Norte, mas curiosamente a terra da resistência ao bando de lampião oito anos antes ficou em compasso de espera.

E olhe que a cidade tinha um PCB organizado e em permanente contato com a guerrilha de Assú.

Brasília Carlos Ferreira em “O Sindicato do Garrancho” (Pág. 137) é quem melhor narrou o quadro na capital do Oeste.

“Em Mossoró, estranhamente, não aconteceu nada. Além de toda preparação anterior e da combinação prévia de não resistência por parte das corporações ali sediadas, havia a ‘guerrilha’, homens armados, experientes e dispostos, esperando apenas o sinal para saírem das matas e começarem a luta”.

A expectativa seria de Mossoró ser dominada sem um único tiro, mas faltava um sinal para deflagrar o movimento. Equipes se revezavam nos Correios à espera do telegrama até que chegou a mensagem: “Zeca baixou o hospital”. Era a senha para abortar a missão.

A revolução tinha fracassado.

O único feito prático do levante comunista em Mossoró foi a libertação de presos políticos da Cadeia Pública para se juntar à “Guerrilha”.

Dinarte, o “general” fanfarrão e o monsenhor integralista  

Dinarte e Walfredo: futuros governadores do RN que tentaram aparecer na resistência (Fotomontagem: Blog do Barreto_

Um dos fatos mais emblemáticos do Levante Comunista de 1935 no interior do Rio Grande do Norte foi a batalha da Serra do Doutor. A ela dois futuros governadores do Estado estão atrelados de forma, digamos, pitoresca.

A começar por Dinarte Mariz que foi governador e senador (pelo voto e biônico) e se forjou politicamente com base numa narrativa que se não foi inventada foi bem aumentada.

Dinarte, oligarca do Seridó, empolgado adesista de 1964, gabava-se de ser um anticomunista que pegou em armas. “Não sou anticomunista de gabinete. Sou anticomunista de fuzil na mão”, disse em discurso no Congresso Nacional (Às Armas Camaradas, Pág. 92).

Ele se colocava como um “general da batalha da Serra do Doutor”. Os jornais alinhados aos oligarcas reproduziam esse suposto heroísmo dando-lhe a patente de “General da Serra”.

No entanto, a badalada Batalha da Serra do Doutor, ocorrida na atual cidade de Campo Redondo, região do Trairi, não passou de uma troca de tiros sem vítimas cujo prejuízo se limitou a explosão com uso de dinamite em um caminhão abandonado no local. Os combates de ambos os lados fugiram.

Dinarte estava distante e só chegou quando o confronto tinha encerrado.

O ex-comandante da Polícia Militar e ex-prefeito de São Gonçalo do Amarante José Paulino de Souza conta que esse tal heroísmo de Dinarte não passou de uma busca por apoio logístico (informação extraída de “O Comunismo: as lutas políticas do RN na década de 30”, pág. 125).

“Dinarte foi para Santa Luzia, na Paraíba, a procura de meios de defesa. Depois que tudo terminou ele voltou com uma tropa da Paraíba, segundo soube, para cooperar na reorganização da resistência. Mas general ele não foi”.

O delegado Enoch Garcia, responsável por relatórios sobre o movimento, também descarta o heroísmo em campo de batalha atribuído à Dinarte (informação extraída de “O Comunismo: as lutas políticas do RN na década de 30”, pág. 132):

“Todo mundo queria que Dinarte tivesse tomado parte da Serra do Doutor. Ele não tomou parte da Serra do Doutor, como eu não tomei, como Humberto Gama não tomou. Lá tomaram parte Pedro Graciliano, José Epaminondas, Genésio Cabral, Antonio de Castro… e, inclusive, muitos civis (…)”.

Se a fanfarronice de Dinarte foi pitoresca neste episódio a do Monsenhor Walfredo Gurgel, outro futuro governador, não deixa por menos.

Seguidor na época do integralismo, ele largou a batina, pegou um revolver e colocou na cintura para combater na Serra do Doutor para onde também levou bombas no carro. Ele foi ao local, não entrou em combate e voltou.

Consta que nas imediações faltou remédio para dor de barriga para atender os que fugiam da batalha. Não ficou claro se Monsenhor Walfredo Gurgel foi um dos que recorreu aos serviços da medicação.

Mas tanto em tanto em “Ás Armas Camaradas” (Pág. 96) como em informação extraída de “O Comunismo: as lutas políticas do RN na década de 30” (Pág. 128) a citação sobre o surto de dor de barriga vêm logo após a história da participação relâmpago do religioso/político na resistência.

O “dinheiro achado” e “os observadores de engorda de tatu”

Cofre do Banco do Brasil em Natal foi esvaziado pelos insurretos (Imagem: Wikimedia Commons )

Após tomar o poder, os revolucionários ocuparam a casa oficial do governador, controlaram os rádios dos quarteis e os correios e telégrafos assim como o cais do porto.

Agora o que fazer? O objetivo era implementar uma reforma agrária e distribuir dinheiro para a população. Outra ação importante foi o pagamento dos salários atrasados da extinta Guarda Civil.

O dinheiro foi recolhido no Banco do Brasil e na Recebedoria de Rendas. No primeiro foram expropriados dois mil, novecentos e quarenta contos, centro e quatro mil réis e no segundo oitocentos e oitenta e seis contos, cento e vinte e quatro mil réis. Os revolucionários tinham uma fortuna em mãos.

Para tirar o dinheiro do Banco do Brasil foi necessária uma escolta levando o mecânico Manoel Severino que arrombou o cofre com o uso de um maçarico.

Após o fim do levante, em telegrama enviado à Vargas, Rafael Fernandes relatou um “confisco” de mais de cinco mil contos de réis.

De fato, a história registra a recuperação de apenas 800 mil réis, ficando pelo menos mais de dois terços da fortuna sem dono.

Várias lendas surgiram na capital. Uma delas é a dos “achadores de dinheiro”. Quatro décadas antes do nascimento do bordão “Follow the money” (“Siga o dinheiro”) ficar conhecida durante a investigação feita pelos jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein do caso “Watergate” que derrubou o presidente estadunidense Richard Nixon, a sabedoria natalense já tinha percebido essa como a melhor estratégia para identificar quem se deu bem com o “dinheiro achado”. A frase comum era: “se o tatu está gordo, alguma coisa ele come”.

De fato, do nada surgiram novos ricos. Casas foram reformadas. Empreendedores improváveis estavam posando de cidadão de bem, gerador de empregos e pagador de impostos.

“A Liberdade” que não circulou

“A Liberdade” não teve tempo de circular (Foto: reprodução)

Um dos problemas para a revolução dizia respeito à comunicação. Logo que tomaram o poder os revolucionários requisitaram duas belonaves da Companhia Aérea Condor para distribuir informativos à população.

Mas era necessário por um jornal nas ruas.

Com a imprensa oficial sob controle revolucionário, foi instituído o jornal “A Liberdade”, que nas palavras de Natanael Sarmento em Às Armas Camaradas (Pág. 65) mais parecia uma obra de ficção:

A Liberdade, o jornal oficial revolucionário, mais parece uma obra de ficção. Um artigo sobre A Marcha da Revolução Libertadora traz afirmações apologéticas e inverídicas da revolução no país. Um amontoado de notícias sobre levantes, greves e vitórias do movimento Nacional Libertador, inverídicas”.

A edição de “A Liberdade” ficou sob responsabilidade de Raymundo Reginaldo da Rocha. Na primeira e única edição foi apresentado o programa da revolução que previa reforma agrária, democracia, proteção aos trabalhadores e moratória da dívida externa.

Houve publicação de artigos sobre arte e uma pitoresca publicidade do Sal de Frutas Eno, um produto estrangeiro em uma publicação de um Governo Popular Revolucionário Nacional Libertador.

Mas “A Liberdade” sequer chegou a circular com seus mil exemplares. A tiragem foi apreendida pelas tropas da reação que retomaram o poder na capital em nome do governador Rafael Fernandes e do presidente Getúlio Vargas.

Mulheres também estiveram no Levante Comunista

A VERDADEIRA HISTÌRIA DO BRASIL
Infelizmente atuação das mulheres foi minimizada, mas elas estiveram presentes (Imagem: reprodução)

 

É lógico que na terra de Nísia Floresta, Celina Guimarães, Alzira Soriano e Maria do Céu Fernandes haveria uma intensa participação feminina em seu maior levante popular.

Houve uma tentativa de apagar da memória a participação feminina no movimento, mas não há como negar nos relatórios os trechos sobre as “mulheres vestidas de homem” que vestiram as fardas militares e pegaram em armas.

Eram integrantes da União Feminina. Algumas delas donas de casa. Outras lavadeiras. Gente da periferia de Natal que se colocou na luta por uma sociedade mais justa.

Leonina Félix teve intensa atuação no processo enfrentando ataques da mídia reacionária que lhe atribuía insultos como os apelidos de “amante”, “amásia” ou “mulher vestida de homem”.

Junto à ela estiveram Chica Pinote, Chica da Gaveta, Maria da Cruz Nunes e Raymunda Pires.

Foram ao todo 33 mulheres indiciadas e denunciadas pela participação no levante de 1935 ao Tribunal de Segurança Nacional. Contando a movimentação em todo o Brasil naquele mês de novembro 42% das mulheres denunciadas estavam no Rio Grande do Norte.

O herói fake da PM

PM rende homenagens a um herói forjado em fraudes em documentos (Foto: Mateus Ângelo)

Um dos episódios mais lamentáveis do pós-35 foi a manipulação de documentos públicos para a criação do mito do Soldado Luiz Gonzaga, herói da resistência à intentona comunista.

Por décadas ele foi peça de propaganda anticomunista no Rio Grande do Norte, inclusive sendo objeto de uma mausoléu no Cemitério do Alecrim erguido nos anos 1970 pelo então governador Tarcísio Maia.

Tudo não passou de uma falsificação desmascarada pelo desembargador João Maria Furtado no livro “Vertentes”, publicado em 1976.

Gonzaga era um morador de rua, considerado uma pessoa com problemas de sanidade mental que filava comida no quartel da Polícia Militar e fazia alguns serviços para os soldados. Durante a fuga de alguns policiais no cerco ao quartel da PM lhe deram um fuzil.

Furtado conseguiu comprovar que o major Luiz Júlio forjou o alistamento de Gonzaga e adulterou os relatórios que originalmente ignoravam a história da figura conhecida como “Doidinho” com o apoio do Dr. João Maria Medeiros.

A desconfiança sobre a farsa persistiu por vários anos pela ausência de citações sobre a morte dele em depoimentos e reportagens nos jornais. Também permaneceu sob mistério a autoria do assassinato.

Somente nos anos 1990 o autor do homicídio apareceu. Trata-se de Sizenando Filgueira da Silva que aos 75 anos decidiu confessar numa entrevista à Tribuna do Norte, publicada em 12 de dezembro de 1995. Extraímos o depoimento do livro “O Comunismo e as Lutas Políticas no RN na Década de 1930” de autoria de Luiz Gonzaga Cortez.

Confira a fala de Sinzenado (Pág. 91):

“Ele não era herói nem militar na época. Ele apenas era um débil mental, menor de idade, e deram-lhe um fuzil para acompanhar os que fugiam do quartel em procura da base naval. Depois que fiz a prisão do major Luiz Júlio (comandante do Batalhão da PM), e de um coronel do Exército, eu olhava para a direita e vi quando ele estava procurando pontaria para atirar. Antes que atirasse eu atirei, só dei um tiro e ele caiu. Ele estava por trás de uma moita no mangue (…)”.

O livro Às Armas Camaradas (Pág. 82) traz a informação de que João Medeiros Filho escreveu uma carta a O Poti em 13 de outubro de 1985 admitindo a adulteração de documentos feita pelo pai para forjar o mito classificando-a como “alteração de boa-fé”. “No entanto, esse episódio da fraude do Soldado Luiz Gonzaga está longe da boa-fé. Fraude é fraude”, avaliou o autor Natanael Sarmento.

Até hoje muitos setores da PM potiguar celebram a figura de um herói forjado para uma propaganda anticomunista.

Bibliografia consultada:

BRASÍLIA, Carlos Ferreira: O Sindicato do Garrancho. Mossoró: Coleção Mossoroense, 2000.

CORTEZ, Luiz Gonzaga: O Comunismo e as Lutas Políticas na Década de 30. Natal: Sebo Vermelho, 2015.

SARMENTO, Natanael: Às Armas Camaradas! A insurreição comunista e o Governo Popular de 1935 em Natal. Mossoró: Sarau das Letras, 2016.

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Reportagem

O Golpe de 64 não salvou o país da ameaça comunista porque nunca houve ameaça nenhuma

Por Alexandre Andrada

The Intercept 

Há uma farsa historiográfica que ronda a praça de maneira persistente: a tese de que que a “revolução de 64” teria salvo o Brasil da ameaça comunista.

Conversa para boi dormir.

A renúncia de Jânio Quadros em 1961, e a ascensão do seu vice João Goulart, odiado pelo partido mais conservador da época, a UDN, de Carlos Lacerda, e por parte dos militares, foi o ápice de uma cisão ideológica que perdurava havia quase 20 anos. De agosto de 1961 a março de 1964, Jango foi alvo de uma guerra discursiva que o pintou como corrupto e conspirador de uma ofensiva comunista. Era tudo fantasia.

O rolo começou em 1946 com uma briga política que se estendeu por duas décadas entre os três partidos dominantes da chamada Terceira República (1946-1964), incendiada pela UDN de Lacerda. Os udenistas, derrotados nas urnas por Vargas (1950) e depois por Juscelino Kubistchek (1955), faziam uma guerrilha com notícias e editoriais falando sobre o risco iminente de o país virar comunista sem base nenhuma na realidade.

Na Constituinte de 1946, os comunistas do PCB formavam uma bancada respeitável, com um senador – Luís Carlos Prestes – e 14 deputados. Entre esses, Carlos Marighella.

Marighella, que se tornaria mundialmente conhecido por sua guerrilha urbana e acabaria morto pela Ditadura Militar em 1969, era um congressista como outro qualquer. Fazia discurso, frequentava gabinetes, apresentava moções e tomava cafezinho com seus pares.

 O fracasso nas urnas foi transformando a UDN em uma organização golpista.

Em maio de 1947, a justiça declarou ilegal a existência do PCB e os mandatos dos comunistas foram cassados. Diante do golpe jurídico, os comunistas não apelaram para as armas. Ao longo da Terceira República, eram três os partidos dominantes. O PTB, partido de Vargas e Jango, que ocupava a porção à esquerda do espectro político; o PSD, partido centrista, que abrigava Dutra e JK, e a UDN, partido de viés mais liberal, cujo ponto central era o ódio a Vargas.

A UDN era o partido favorito da grande imprensa, de setores da classe média  e da intelectualidade nacional. Só não era o partido favorito dos eleitores. O fracasso nas urnas foi transformando a UDN em uma organização golpista. Se hoje é o “bolivarianismo” que assusta o “cidadão de bem” brasileiro, nos anos 1950 o fantasma regional era o “peronismo”.

Carlos Lacerda em comemoração pela criação do Estado da Guanabara.

Carlos Lacerda em comemoração pela criação do Estado da Guanabara (Foto: Wikimedia Commons)

Às vésperas das eleições vencidas por Vargas, o jornal do udenista Carlos Lacerda, uma das grandes figuras do partido, publicava declarações de um general, afirmando: “o governo tem conhecimento de um vasto plano subversivo organizado pelos comunistas, cuja eclosão se daria ao mesmo tempo, em todo o território nacional. O governo brasileiro está de posse de dados concretos comprovando que o sr. Getúlio Vargas mantém relações com o general Perón, presidente da Argentina”. Dizia-se que Perón financiaria o movimento “para restaurar a Ditadura” no Brasil.

Apelava-se para o medo, plantava-se a semente da paranoia. Mas Vargas saiu-se vitorioso, com 48,5% dos votos. Quando a derrota ficou evidente, a UDN optou por não reconhecer o resultado. O jornal de Lacerda trazia em letras garrafais: “Getúlio não foi eleito legalmente”. Como Vargas não obteve mais de 50% dos votos, golpistas como Lacerda e Aliomar Baleeiro passaram a insistir na tese de que a maioria do eleitorado o rejeitara. Tentam na Justiça barrar a posse de Vargas.Ficou famosa a frase de Lacerda, repetida à exaustão naqueles tempos: “Vargas não deveria ser eleito. Se eleito, não deveria tomar posse. Se tomasse posse, não poderia governar”.

Ainda que tenha feito um governo algo conservador, segundo percepção de renomados historiadores do país, Vargas não pôde governar. Em 1954, em meio às denúncias de orquestrar um plano secreto junto com Perón e de corrupção no Banco do Brasil, a UDN pede seu impeachment, que é rejeitado no Congresso.

Após o episódio da rua Toneleros – quando morreu o oficial da Aeronáutica Rubens Vaz, e Lacerda é alvejado –, Vargas é instado pela cúpula militar a renunciar à presidência. Naquela noite, mata-se com um tiro no peito. Aos se aproximarem as eleições de 1955, temendo a derrota, a UDN volta a pregar o golpe. Primeiro são denúncias contra Juscelino Kubistchek, acusando-o de corrupto. Adiante, a defesa desavergonhada da não realização das eleições naquele ano.

Em editorial de junho de 1955, Lacerda afirmava:

“Não há mais a menor dúvida: a eleição, nas atuais circunstâncias, significa a vitória dos que há longo tempo se prepararam. […] Em nome de que se pretende que toleremos a volta da oligarquia, com o seu cortejo de corrupção e violência? Sustentamos que existe, ainda, uma saída ‘legal, para a falsa legalidade que se pretende manter… A saída que existe… é a concessão de plenos poderes a um Executivo responsável, capaz de realizar as reformas preliminares de que carece a nação…”

Com a chapa JK-Jango eleita, a UDN tenta o golpe na justiça. Afonso Arinos tenta barrar a diplomação dos vencedores, argumentando que teria havido participação do PCB (ainda ilegal) na campanha dos eleitos.

Em novembro de 1955, percebendo as movimentações de um golpe orquestrado por setores civis (leia-se UDN) e militares, o general Henrique Lott põe em marcha o chamado “golpe preventivo”, garantindo a continuidade da legalidade no país.

JK consegue tomar posse e chegar ao final de seu governo, feito raro para a época. Nas eleições de 1960, a UDN decide apoiar Jânio Quadros, fenômeno político e então governador de São Paulo, mas que não fazia parte do partido.

Jânio, porém, renuncia à Presidência em agosto de 1961, jogando o país no caos. É nesse cenário que João Goulart (PTB), seu vice, torna-se presidente. Iria se tornar, na verdade. É declarado persona non grata para a segurança nacional por parte do Congresso, que se articula para impedir que o herdeiro de Vargas tome posse. Setores civis e militares quiseram impedir o cumprimento do texto constitucional. Havia o que se chamava de “veto militar” ao nome de Goulart.

No Rio Grande do Sul, começava a campanha pela legalidade, liderada por Leonel Brizola. Entre os legalistas, estavam o chefe do Exército naquela região, o general Machado Lopes. Circula a notícia que o II Exército, com sede em São Paulo, se encaminharia para o sul, de forma a desbaratar a resistência.

Havia o que se chamava de “veto militar” ao nome de Goulart.

A ameaça passa a ser não de um golpe civil-militar, mas de guerra civil. O Jornal do Brasil em editorial afirmava: “a expressão guerra civil é a única que cabe para definir o que pode acontecer, a qualquer momento, no Brasil”. Até o The New York Times alertava: “os oficiais do Exército brasileiro, que desafiaram sua Constituição e a vontade dos eleitores ao se recusarem a deixar João Goulart assumir a presidência, trouxeram seu país à iminência de uma guerra civil.”

O jornal Correio da Manhã se manifestou em editorial intitulado “Ditadura”, no qual dizia: “o manifesto dos ministros militares, coagindo o Congresso… é o golpe abolindo o regime republicano no Brasil. É a ditadura militar.”

O meio-termo encontrado foi deixar Jango assumir, mas castrado dos poderes presidenciais, graças a um parlamentarismo de ocasião. Era o golpe envergonhado. Voltavam-se a utilizar as velhas armas contra Jango: uma suposta conspiração internacional de caráter peronista, as supostas tendências comunistas do latifundiário e as alegações de corrupção.

O golpe ocorreu quase sem resistência, pois resistência não havia.

Em 1964, o deputado udenista Bilac Pinto afirmava, sem qualquer prova concreta, que Goulart preparava uma revolução, que o presidente organizava uma guerrilha armada no país. Aproveitando-se do ambiente caótico de 1964, em que se somavam a crise econômica e alta polarização política, fez-se o golpe civil-militar de 31 de março.
A suposta guerrilha de Jango, o suposto armamento em posse das Ligas Camponesas (o MST da época), a suposta infiltração comunista nas Forças Armadas, era tudo fantasia.

O golpe ocorreu quase sem resistência, pois resistência não havia. Deu-se um golpe, pois um golpe se queria dar desde 1951, pelo menos. A luta armada comunista, que jamais colocou em risco o governo brasileiro, só emergiu após a implementação da ditadura, não antes. Enfim.

Houve um tempo no Brasil no qual políticos civis não reconheciam o resultado das eleições, que não se conformavam com uma democracia na qual os eleitores elegem seus adversários.

Houve um tempo no Brasil no qual militares de alta patente se arvoravam o direito de falar de política. Tempo em que generais ameaçavam não reconhecer o resultado das urnas, caso o eleito não fosse do seu agrado.

Às vésperas das eleições de 2018, o cenário se repete.

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Filha de Prestes e Olga Benário fará palestra em Mossoró

Anita Prestes estará em Mossoró

A historiadora e doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense, Anita Leocádia Prestes, filha dos revolucionários Luis Carlos Prestes e Olga Benário,  vem Mossoró para ministrar, no dia 14 de setembro, a palestra de abertura do décimo congresso dos professores e professoras da UERN.

A palestra “Luiz Carlos Prestes, a Constituinte e a Constituição de 1988” é aberta ao público e terá início às 19h no auditório do Hotel Vila Oeste. A discussão vai rememorar o aniversário de trinta anos do documento cidadão, em meio a uma conjuntura de retirada de direitos e ataques à classe trabalhadora.

Para a historiadora, mesmo após 30 anos da promulgação da Constituição de 1988, os brasileiros ainda vivem  reféns da tutela militar, com artigos que ora  ou outra voltam a serem utilizados para frear manifestações populares, criminalizar os movimentos e atacar a organização dos trabalhadores e trabalhadoras e essa será uma das tônicas da discussão na abertura do Congresso da ADUERN

Anita é professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada do Instituto de História da UFRJ, autora de A Coluna Prestes (Paz e Terra, 1997), Tenentismo pós-30: continuidade ou ruptura? (Consequência, 2014), Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro (Boitempo, 2015), Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo(Boitempo, 2017).

O Congresso – O décimo congresso da ADUERN tem como tema “Sindicato em Luta: contrarreformas e os impactos para o movimento sindical”. As inscrições dos professores e professoras associados já podem ser feitas AQUI. As mesas e grupos de discussões são restritas aos sócios do sindicato.

Além da palestra de abertura com  Anita Prestes, o congresso segue no sábado (15/09) com as rodas de discussão e votações. As atividades serão realizadas no auditório da FAEF, no Campus central da UERN.   Confira a programação completa do sábado:

7h30 às 8h – Mesa de abertura – auditório da FAEF

8h às 9h – Mesa de instalação do congresso

9:00 as 10:15 – Discussão nos grupos sobre conjuntura e condições e trabalho

10:15 as 10:30 – Lanche

10:30 as 12:00 – socialização das discussões dos grupos

12:00 as 14:00 – intervalo para Almoço

14:00 as 18:00 – Plenária Final: Mudanças no Regimento Interno da ADUERN e plano de lutas

Às 19h30 será realizada a festa de aniversário dos 39 anos da ADUERN, que marcará o encerramento do congresso.