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O nível do policial

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Vou tratar hoje de dois assuntos controversos nas letras. A questão do gênero ou da tipologia da literatura, que é bastante controversa. Grandes obras normalmente não se conformam às regras do gênero; e muitos críticos literários sequer reconhecem a existência desse conceito (de gênero da literatura). Eu já acho que essa classificação é possível. Reconheço que uma das minhas literaturas preferidas, a literatura policial ou detetivesca, como literatura de massa, é um gênero bem definido. E aqui eu chego à segunda controvérsia, na qual me deterei amiúde: a literatura de massa, popular, como a dos romances policiais, pode ser uma “alta” literatura?

Houve um tempo em que a divisão entre “alta” e “baixa” literatura era visível ou ao menos reconhecida/propagada pelos entendidos do assunto. Como registra Miklós Szabolcsi (em “Literatura universal do século XX: principais correntes”, Editora Universidade de Brasília, 1990), é “possível traçar uma linha divisória entre as duas espécies de literatura, com base em diversos pontos de vista, sejam os da sociologia da literatura ou da estética, sejam os referentes às diferenças de função. O comum mesmo é citar, a título de fundamentação, as narrativas reiterativas, de produção fácil e compostas por módulos já prontos, que têm o poder de emocionar e horrorizar com facilidade e são caracterizadas pela trivialidade do texto. Pode acrescentar-se, no entanto, a possibilidade de recepção rápida, a compreensão sem dificuldades e, finalmente, determinados procedimentos ligados à difusão e à produção. Mas são critérios incertos e discutíveis. (…) O fato é que as pegadas das obras arroladas nesse gênero podem ser acompanhadas a partir do século XVIII. A evidente divisão da literatura ‘alta’ e ‘baixa’ ou ‘trivial’ consolida-se no final do século XIX, simultaneamente com o fato que é sua causa: a ‘alta’ literatura vai se tornando excludente, em face das dificuldades que oferece para a compreensão”.

Todavia, sobretudo a partir do começo do século XX, os territórios da “alta” e da “baixa” literatura se expandiram causando uma mistura entre os seus conjuntos. Como explica Szabolcsi, “de um lado, porque a vanguarda destrói os limites estabelecidos entre a arte ‘elevada’ (de elite) e a ‘inferior’ (popular), de outro, porque, em função de causas técnicas e comerciais, cresce o número de obras culturais modernas que, empregando as conquistas da literatura ‘superior’ e assimilando-lhe a cosmovisão e as técnicas, passam a prometer leitura rápida e leve, diversão e esquecimento. O best seller, o êxito de livraria, não é simplesmente uma leitura soporífera e dissuasiva. Frequentemente, representa correntes formativas e excitantes, que conquistam grande parcela de leitores-consumidores”. Já tratei até desse tema e citei Graham Greene, Morris West e John Le Carré, escrevendo aventuras, thrillers, policiais ou romances de espionagem, como perfeitos casos de best-sellers que realmente escreviam bem.

O que dizer da qualidade dos precursores do romance policial? De Edgar Allan Poe, por exemplo, “com sua reconstrução intelectual dos crimes”? Na verdade, depois de outros precursores do século XIX, como Émile Gaboriau e Maurice Leblanc, a leitura do policial assiste “ao surgimento de clássicos como Conan Doyle e Edgar Wallace e, a partir dos anos 30, com Agatha Christie e Georges Simenon. Tornam-se parte integrante da literatura, em face das exigências de um amplo círculo de leitores, que deseja a sobrevivência do romantismo dos bandidos e mostra-se ávido da investigação e das emoções da adivinhação dos enigmas. Tanto é verdade que, a seguir, instalam-se profundamente na estrutura literária, a ponto de obras ‘elevadas’ passarem a fazer uso dos recursos e das máscaras do romance policial. Primeiro, com G.K. Chesterton; depois, com Grahan Greene, Friedrich Dürrenmatt, Max Frisch e o nouveau roman francês, a ponto de diluir, aqui também, as fronteiras entre os dois estilos”. E podemos citar outras referências do século XX, como Dashiel Hammett e Raymand Chandler, suprassumos do policial noir, ou Erle Stanley Gardner, que nos dá o tipo jurídico do advogado-detetive, com o seu Perry Mason. E por aí vai.

Na verdade, para mim, não existe uma barreira intransponível à literatura de massas, em especial à literatura policial/detetivesca, ao país da “alta” literatura. Desconfio de Tzvetan Todorov quando afirma (em “Poética da Prosa”, Martins Fontes, 2003): “quem quiser ‘embelezar’ o romance policial, faz ‘literatura’ e não romance policial”. Acredito que faz os dois. E dou como exemplo definitivo Umberto Eco. Alguém vai me dizer que “O nome da rosa” (1980) não é altíssima literatura detetivesca?

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Um larápio sedutor

Arsène Lupin é personagem criado por Maurice Leblanc (Foto: cedida)

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

O Netflix acaba de lançar a série “Lupin”, baseada na personagem Arsène Lupin, o “gentleman cambrioleur” (espécie de ladrão e cavalheiro), criada pelo escritor francês Maurice Leblanc (1864-1941). O site oficial do Netflix afirma que, na adaptação para a pequena tela, “o ladrão gentil Assane Diop [esse é o nome dado ao anti-herói da série] quer se vingar de uma família rica por uma injustiça cometida contra o pai dele”. Não assisti ainda. Mas pretendo.

De toda sorte, essa série do Netflix me fez lembrar que “Les Aventures d’Arsène Lupin”, numa publicação da Hachette – Français langue étrangère, foi um dos primeiros livros que li na língua falada em Paris, quando ali estive, acho que em 2006, como aluno da Alliance Française. Que saudade daquele tempo!

Maurice Leblanc é um grande achado para um amante da literatura policial/detetivesca. Para quem não sabe, Leblanc é natural de Rouen, na Normandia francesa, descendente de uma família de ricos industriais. Ainda criança, conheceu seus conterrâneos normandos Gustave Flaubert (1821-1880) e Guy de Maupassant (1850-1893). Foi protegido deste. Estudou direito. Trabalhou nos negócios do pai. Morou no estrangeiro. Abandonou o direito e a indústria. Foi ser escritor em Paris. Misturou-se com gente como Edmond de Goncourt (1822-1896), Émile Zola (1840-1902) e Stéphane Mallarmé (1842-1898), entre outros. Dizia-se socialista e livre pensador. Ao final, nos deixou diversos romances e contos.

Entretanto, foi com o seu Arsène Lupin, cujas aventuras foram originalmente publicadas, a partir de 1905, na revista Je sais tout, que Leblanc alcançou pleno sucesso. Foi comparado – ou mesmo tido como herdeiro – a Edgar Allan Poe (1809-1849) e Arthur Conan Doyle (1859-1930). As aventuras de Lupin se passam na França da Belle Époque (que maravilha!) ou da virada dos anos 1920. Lupin é um “gentleman cambrioleur” do tipo anarquista. É alegadamente inspirado em um personagem real, Alexandre Marius Jacob (1879-1954), celebrado anarquista/fora da lei francês. Mas, em razão da 1ª Grande Guerra, Lupin torna-se também um patriota (para meu desgosto, pois desconfio deveras desse tipo quase sempre impostor). E, à medida que o tempo passa, ele vai transmudando de larápio para detetive. Lupin é sobretudo uma figura cativante. Esportista e bom de briga. Mestre dos disfarces. Misterioso e ao mesmo tempo divertido e sedutor. Um “ladrão de casaca”. Sagaz, suas peripécias para resolver qualquer enigma são surpreendentes. No dossier pédagogique da citada edição de “Les Aventures d’Arsène Lupin” consta: “Figura insólita do romance policial e de aventura, Arsène Lupin tornou-se um verdadeiro mito popular em França e no mundo inteiro”. Encontramos um pouco dele já em Hercule Poirot e James Bond, por exemplo. E, claro, Lupin foi bater no cinema, na TV, no teatro, no desenho animado e até no excelente mangá japonês.

Para mim, uma das coisas mais interessantes em Arsène Lupin é ser ele é uma “resposta francesa” ao meu querido Sherlock Holmes, do britânico/escocês Conan Doyle. Isso até deu confusão. Uma querela. E, por instância de Conan Doyle, Leblanc teve de mudar o nome da personagem Sherlock Holmes (isso mesmo: havia um Sherlock nos casos de Lupin) para Herlock Sholmes. Acho que, aqui, Leblanc/Lupin não disfarçou muito bem.

Também acho maravilhoso o fato de Arsène Lupin ser uma personagem da Belle Époque francesa. Para quem já conhecia a ambiência dos casos do Inspetor Maigret, de George Simenon (1903-1989), mais pé no chão, próxima à realidade das ruas, foi uma viagem imaginária num mundo de glamour e sofisticação. Uma fuga das coisas da vida. E tipicamente francesa, bien sûr.

Para terminar, jogo a indagação: podemos gostar dessa mistura de ladrão e herói? Na ficção, pelo menos, parece que ela nos provoca grande atração. Vide a lenda inglesa de Robin

Hood, tantas vezes já contada e recontada, no papel e na tela. E na vida real, essa simbiose mocinho e bandido, é possível? No Brasil, parece que sim. Embora, nem na Inglaterra, nem em França, nem aqui, de vera, isso seja recomendável.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.