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O comparatista italiano

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Mauro Cappelletti (1927-2004) é um daqueles teóricos do direito que nós, praticantes dessa arte/ciência, devemos sempre festejar. Cappelletti nasceu no norte da Itália, na região do Trentino. Mas foi fazer vida na Toscana, na artística Florença. Ali estudou direito e foi aluno de outro gigante, Piero Calamandrei (1889-1956). Foi aprender mais coisas na Alemanha, precisamente Freiburg e Tübingen. Voltou à capital do Renascimento para ser professor na universidade local. Fundou o Istituto di Diritto Comparato de Florença e integrou-se ao European University Institute. Foi ainda professor titular em Stanford. E, claro, ganhou o mundo, dando aulas em Harvard, Berkeley, Cambridge, Paris e por aí vai. Cappelletti escreveu bastante e foi devidamente traduzido entre nós. “Juízes legisladores?”, “O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado” e “Acesso à Justiça” (com Bryant Garth), publicações Sergio Antonio Fabris Editor, são de fácil aquisição. Quase octogenário, faleceu nas cercanias da sua amada Florença.

Cappelletti teve uma saga jurídica ímpar. Começou processualista, foi se aprofundando no constitucionalismo, no direito comparado e, por essa mistura, na filosofia do direito. Aliás, no seu perfil para a Associazione di Diritto pubblico comparato ed europeo, obra de Vincenzo Varano, consta: “Mauro Cappelletti foi um processualista civil e um constitucionalista; mas foi, sobretudo, um comparatista (e um dos ‘pais fundadores’ da moderna ciência do direito comparado), tanto que ele próprio, num ‘exame de consciência’, que constitui uma espécie de testamento espiritual, prefere se definir como um “processualcomparatista” ao invés de um processualista (Dimensioni della giustizia nelle società contemporanee, 1994, p. 157)”. Tendo também começado minha carreira como processualista, se é uma trajetória que não consigo imitar, posso ao menos invejar.

Nessa mistura de processualística, constitucionalismo e análise comparada, Cappelletti foi um dos primeiros a reconhecer o crescente papel da justiça constitucional nas nossas vidas e na política de todas as nações. “O século XIX foi o dos Parlamentos, o XX é o século da justiça constitucional”, costumava ele dizer. E devemos a Cappelletti (em “O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado”, Fabris, 1984), a noção de que “o controle jurisdicional da constitucionalidade das leis [difuso ou concentrado] não pode, certamente, identificar-se com a jurisdição ou justiça constitucional”. O controle de constitucionalidade “não representa senão um dos vários possíveis aspectos da assim chamada ‘justiça constitucional’”. Para além dele, temos os importantíssimos “remédios” constitucionais. E, entre nós, temos ainda a atividade da Justiça Eleitoral, como instância orientada à vigência da nossa Constituição no que toca ao estado democrático de direito, à forma republicana de governo e à soberania popular. Aliás, ao contrário do que dizem por aí, isso é algo comum mundo afora, a exemplo da Espanha e de Portugal, onde o papel de controle jurisdicional das eleições é atribuído às suas cortes constitucionais. Verdadeira lição, adequada como mão na luva, ao Brasil de hoje.

Some-se, como ponto alto no comparativismo de Cappelletti, uma das tendências mais visíveis na América Latina, que é a crescente absorção de conhecimentos e institutos processuais do common law. Como já dizia Dinamarco (em “Fundamentos do processo civil moderno”, Malheiros, 2002): o desejo por essa outra cultura foi “estimulado por estudiosos italianos que, como Mauro Cappelletti e Michele Taruffo, desenvolveram intensa cooperação com universidades norte-americanas. Os congressistas internacionais patrocinados pela Associação Internacional de Direito Processual contam com a participação de processualistas de toda origem” e isso acabou quebrando as barreiras entre as famílias jurídicas, antes tidas por insuperáveis. Maravilhoso!

E por aí chegamos ao acesso à Justiça, tema tão caro para Cappelletti, especificamente à absorção, entre nós, da experiência norte-americana das class actions. Foi com a ajuda decisiva de Cappelletti, como lembra Dinamarco, que o nosso sistema processual “iniciou uma abertura caracterizada, nas palavras de Barbosa Moreira, pela transmigração do individual para o coletivo (pequenas causas, ação direta, ação civil pública, mandado de segurança coletivo)”. Nessa transmigração não se abandona a tutela dos casos individuais, mas se amplia o “espectro de oportunidades e preocupações para que também a tutela coletiva seja uma realidade”, com o impacto de massa de que esta é capaz, atingindo sempre uma parcela significativa da sociedade.

E, assim, Cappelletti laborou para que, “diante da lei”, o indivíduo, em especial o humilde, não precisasse mais perguntar ao “porteiro” se devia entrar. Outros, como o Ministério Público, já escancarariam a porta para eles. Certamente, até Kafka (1883-1924) lhe diria: “Muito obrigado!”.

*É procurador regional da república e doutor em direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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