Categorias
Crônica

Um altíssimo detetive

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Volto hoje a um assunto polêmico: a distinção entre a “alta” e a “baixa” literatura. Houve um tempo em que essa distinção era até propagada pelos entendidos do assunto. Como registra Miklós Szabolcsi (em “Literatura universal do século XX: principais correntes”, Editora Universidade de Brasília, 1990), era comum traçar “uma linha divisória entre as duas espécies de literatura, com base em diversos pontos de vista, sejam os da sociologia da literatura ou da estética, sejam os referentes às diferenças de função”. Dizia-se que “as narrativas reiterativas, de produção fácil e compostas por módulos já prontos, que têm o poder de emocionar e horrorizar com facilidade” são características da trivialidade do texto, assim como “a possibilidade de recepção rápida, a compreensão sem dificuldades e, finalmente, determinados procedimentos ligados à difusão e à produção”. Embora estes sejam critérios incertos e discutíveis, essa “divisão da literatura ‘alta’ e ‘baixa’ ou ‘trivial’ consolida-se no final do século XIX, simultaneamente com o fato que é sua causa: a ‘alta’ literatura vai se tornando excludente, em face das dificuldades que oferece para a compreensão”.

Alguns gêneros literários, como a autoajuda, o romance romântico ou “feminino”, o faroeste e a ficção policial ou detetivesca, para muitos eram/são considerados “baixa” literatura. O valor de “alta” literatura, anota Marina Pastore (no texto “Como um clássico se torna um clássico? A fronteira entre arte e entretenimento na literatura”, publicado na revista Anagrama, em 2012), seria “reservado ao domínio dos clássicos e da ‘literatura de proposta’, expressão sugerida por Umberto Eco para designar o tipo de literatura que não atende às expectativas do leitor, mas consegue formar um público próprio e cria novas expectativas para ele”.

É exatamente através de Umberto Eco (1932-2016), pelo seu exemplo, que manifesto e justifico minha indignação a esse preconceito para com a querida literatura policial/detetivesca, barrando-a de entrar no “baile” da “alta” literatura. E também discordo de Tzvetan Todorov (em “Poética da Prosa”, Martins Fontes, 2003), quando afirma, contornando a problemática, que, “quem quiser ‘embelezar’ o romance policial, faz ‘literatura’ e não romance policial”.

Eco faz os dois – “alta” literatura e romance policial –, sem dúvida. E logo em seu romance de estreia, “O nome da rosa” (“Il nome della rosa”), de 1980.

Em “O nome da rosa”, alegadamente, Eco reproduz um manuscrito de um frade chamado Adso de Melk, que, quando jovem, teria presenciado os terríveis acontecimentos narrados no livro. O manuscrito/enredo de “O nome da rosa”, ambientado numa antiquíssima abadia beneditina, está dividido em sete dias. Seguindo a veia dos romances policiais, o enredo gira em torno das mortes de sete monges nos sete dias seguidos, em circunstâncias extraordinárias. Mortes que, a pedido do Abade, o protagonista Guilherme de Baskerville, ajudado pelo seu pupilo Adso de Melk, nos moldes de Sherlock Holmes/Dr. Watson, busca desvendar.

Mas isso tudo coincide com um encontro para solução de intricadas questões teológicas, previamente acertado para se dar na abadia, entre frades franciscanos e uma legação papal, da qual faz parte um dos grandes inquisidores da Igreja, Bernardo Gui (1261-1331). De uma erudição ímpar, cheio de citações em latim, “O nome da rosa” não é simplesmente uma história de crimes. Ele é também um maravilhoso estudo do Medievo, sobretudo da vida religiosa no século XIV e das ideologias – heréticas ou não – no seio da Igreja de então.

Ademais, “O nome da rosa” é uma estória sobre livros e sobre o poder infinito das palavras. A “rosa” do livro, palco dos acontecimentos narrados, é a grande biblioteca da abadia, na qual estariam guardadas – ou escondidas – maravilhas da escrita e da arte das iluminuras, de origem grega e latina, heréticas ou não, numa época em que, antes da invenção da imprensa por Gutenberg (1400-1468), a Igreja detinha, no Ocidente, o monopólio do saber. A biblioteca é um labirinto, infinito e cheio de desvios, como se assim fosse – de fato o é – a sabedoria da humanidade simbolizada nos livros. Aliás, sendo Eco professor de semiótica, um simbolismo especial perpassa a obra, com referências e homenagens a inúmeras figuras da literatura.

Alguém vai me dizer que “O nome da rosa” (1980) não é altíssima literatura detetivesca?

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

Categorias
Crônica

Altíssima ficção

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Vou seguir tratando da controversa divisão entre “alta” e “baixa” literatura. E, desta feita, vou focar na ficção científica, um dos mais importantes e populares gêneros de literatura. Seus fãs, seus clubes, seus prêmios (sendo o Nebula e o Hugo os mais prestigiados) são muitíssimos.

Suas estórias vendem aos tubos. Invariavelmente, essas estórias vão bater nas telas grande e pequena. Sucesso para além das fronteiras da nossa imaginação. E eu a acho uma literatura estelar.

Embora já existisse alguma produção do tipo desde o Iluminismo – afinal, com as “luzes” focamos na ciência –, convencionalmente, tem-se nas aventuras e na “littérature d’anticipation” de Jules Verne e na “science fiction” de H. G. Wells os precursores do gênero ficção científica.

Como anota Miklós Szabolcsi (em “Literatura universal do século XX: principais correntes”, Editora Universidade de Brasília, 1990), “essa nova corrente inicia-se com Jules Verne, cuja obra ainda mantém em equilíbrio harmônico os elementos históricos, a descrição humana e futurologia técnica, caraterísticas que, com certeza, encerram o segredo de sua influência e de seu sucesso junto aos leitores; Herbert George Wells, por sua vez, apresenta utopias técnicas mais amargas e agourentas, que mostram um futuro distante forrado de pessimismo com relação ao ser humano”.

Sem demérito algum ao autor de “A máquina do tempo” (“The Time Machine”, 1895) e “A Guerra dos Mundos” (“The War of the Worlds”, 1898), devo aqui anotar que sou um fã de Verne, de suas “Viagem ao centro da terra” (“Voyage au centre de la terre”, 1864), “Vinte Mil Léguas Submarinas” (“Vingt mille lieues sous les mers”, 1870), “A volta ao mundo em 80 dias” (“Le tour du monde en quatre-vingts jours”, 1873) e, ao final, do seu conjunto “Viagens Extraordinárias” (“Voyages Extraordinaries”). Como aduz Bruno Blasselle, em “Histoire du livre: le triomphe de l’édition” (Gallimard, 2006, vol. 2), “se existe um autor no qual o progresso científico há inflamado a imaginação das pessoas, este é Jules Verne”, alegadamente o escritor mais traduzido da história.

É necessário registrar que o gênero ficção científica tem fronteiras muito mais amplas do que costumamos imaginar (afinal, onde estão as fronteiras da imaginação?). Aqui quero dizer que nesse gênero estão muito mais do que um “2001: Uma odisseia no espaço” (“2001: A Space Odyssey”, 1968), de Arthur C. Clark, para didaticamente darmos um exemplo marcadamente específico dessa literatura (e do cinema dela decorrente). Por exemplo, no gênero ficção científica entram distopias como “Admirável mundo novo” (“Brave New World”, 1932), de

Aldous Huxley, “Fahrenheit 451” (1953), de Ray Bradbury, “1984” (“Nineteen Eighty-Four”, 1949), de George Orwell e “O Homem do Castelo Alto” (“The Man in the High Castle”, 1962), de Philip K. Dick. Temores do presente projetados num futuro até “próximo”. E, claro, distopias interplanetárias mais que ousadas, baseadas nas descobertas científicas de hoje e suas possibilidades de realização futuras quase infinitas. Este é o caso de Isaac Asimov e sua série, obra-prima da literatura, “Fundação” (“Foundation”, iniciada em 1942). Alguém pode querer literaturas de nível mais elevado do que as proporcionadas pelos autores e livros acima citados?

Doutra banda, é crucial aqui afastar o preconceito, vinculado à confusão entre o gênero ficção científica e um certo tipo de cinema/TV baseado nele, que alguns enxergam como superficial ou mesmo “mentiroso demais”. Pode até existir. Mas é fato já constatado a realização de muitas das “ficções” previstas por aqueles grandes autores “mentirosos”, digo “visionários”.

Para encerrar, ouso vaticinar que a ficção científica é o mais filosófico/profundo dos gêneros literários (e cinematográficos), na esteira do que defende Daniel Shaw, em seu “Film and Philosofy: taking movies seriously” (Wallflower Press, 2008), cujo título parece umaderivação do clássico “Taking Rights Seriously”, de Ronald Dworkin. De fato, cuidadosamente observando, a ficção científica trata de questões eminentemente filosóficas, como as diferenças entre o ser humano e as máquinas, a própria identificação do indivíduo em si, as implicações do presente no futuro da humanidade, o conceito de tempo, os perigos da sacralização da tecnologia e de certos mecanismos de controle social, a possibilidade e os impactos de um contato com seres alienígenas, entre muitos outros. Isso – que reafirmo aqui – não é mentirinha. É fato.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

Categorias
Crônica

O nível do policial

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Vou tratar hoje de dois assuntos controversos nas letras. A questão do gênero ou da tipologia da literatura, que é bastante controversa. Grandes obras normalmente não se conformam às regras do gênero; e muitos críticos literários sequer reconhecem a existência desse conceito (de gênero da literatura). Eu já acho que essa classificação é possível. Reconheço que uma das minhas literaturas preferidas, a literatura policial ou detetivesca, como literatura de massa, é um gênero bem definido. E aqui eu chego à segunda controvérsia, na qual me deterei amiúde: a literatura de massa, popular, como a dos romances policiais, pode ser uma “alta” literatura?

Houve um tempo em que a divisão entre “alta” e “baixa” literatura era visível ou ao menos reconhecida/propagada pelos entendidos do assunto. Como registra Miklós Szabolcsi (em “Literatura universal do século XX: principais correntes”, Editora Universidade de Brasília, 1990), é “possível traçar uma linha divisória entre as duas espécies de literatura, com base em diversos pontos de vista, sejam os da sociologia da literatura ou da estética, sejam os referentes às diferenças de função. O comum mesmo é citar, a título de fundamentação, as narrativas reiterativas, de produção fácil e compostas por módulos já prontos, que têm o poder de emocionar e horrorizar com facilidade e são caracterizadas pela trivialidade do texto. Pode acrescentar-se, no entanto, a possibilidade de recepção rápida, a compreensão sem dificuldades e, finalmente, determinados procedimentos ligados à difusão e à produção. Mas são critérios incertos e discutíveis. (…) O fato é que as pegadas das obras arroladas nesse gênero podem ser acompanhadas a partir do século XVIII. A evidente divisão da literatura ‘alta’ e ‘baixa’ ou ‘trivial’ consolida-se no final do século XIX, simultaneamente com o fato que é sua causa: a ‘alta’ literatura vai se tornando excludente, em face das dificuldades que oferece para a compreensão”.

Todavia, sobretudo a partir do começo do século XX, os territórios da “alta” e da “baixa” literatura se expandiram causando uma mistura entre os seus conjuntos. Como explica Szabolcsi, “de um lado, porque a vanguarda destrói os limites estabelecidos entre a arte ‘elevada’ (de elite) e a ‘inferior’ (popular), de outro, porque, em função de causas técnicas e comerciais, cresce o número de obras culturais modernas que, empregando as conquistas da literatura ‘superior’ e assimilando-lhe a cosmovisão e as técnicas, passam a prometer leitura rápida e leve, diversão e esquecimento. O best seller, o êxito de livraria, não é simplesmente uma leitura soporífera e dissuasiva. Frequentemente, representa correntes formativas e excitantes, que conquistam grande parcela de leitores-consumidores”. Já tratei até desse tema e citei Graham Greene, Morris West e John Le Carré, escrevendo aventuras, thrillers, policiais ou romances de espionagem, como perfeitos casos de best-sellers que realmente escreviam bem.

O que dizer da qualidade dos precursores do romance policial? De Edgar Allan Poe, por exemplo, “com sua reconstrução intelectual dos crimes”? Na verdade, depois de outros precursores do século XIX, como Émile Gaboriau e Maurice Leblanc, a leitura do policial assiste “ao surgimento de clássicos como Conan Doyle e Edgar Wallace e, a partir dos anos 30, com Agatha Christie e Georges Simenon. Tornam-se parte integrante da literatura, em face das exigências de um amplo círculo de leitores, que deseja a sobrevivência do romantismo dos bandidos e mostra-se ávido da investigação e das emoções da adivinhação dos enigmas. Tanto é verdade que, a seguir, instalam-se profundamente na estrutura literária, a ponto de obras ‘elevadas’ passarem a fazer uso dos recursos e das máscaras do romance policial. Primeiro, com G.K. Chesterton; depois, com Grahan Greene, Friedrich Dürrenmatt, Max Frisch e o nouveau roman francês, a ponto de diluir, aqui também, as fronteiras entre os dois estilos”. E podemos citar outras referências do século XX, como Dashiel Hammett e Raymand Chandler, suprassumos do policial noir, ou Erle Stanley Gardner, que nos dá o tipo jurídico do advogado-detetive, com o seu Perry Mason. E por aí vai.

Na verdade, para mim, não existe uma barreira intransponível à literatura de massas, em especial à literatura policial/detetivesca, ao país da “alta” literatura. Desconfio de Tzvetan Todorov quando afirma (em “Poética da Prosa”, Martins Fontes, 2003): “quem quiser ‘embelezar’ o romance policial, faz ‘literatura’ e não romance policial”. Acredito que faz os dois. E dou como exemplo definitivo Umberto Eco. Alguém vai me dizer que “O nome da rosa” (1980) não é altíssima literatura detetivesca?

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.