Por Rogério Tadeu Romano*
I – O FATO
Observo o que noticiou o Diário do Nordeste, em 24 de julho de 2022:
“Em conversa por telefone com uma de suas filhas, registrada no último dia 9 de junho, Milton Ribeiro falou que recebeu uma ligação do presidente Jair Bolsonaro (PL) dizendo temer ser alcançado pela investigação da Polícia Federal contra o ex-ministro da Educação. Informações foram publicadas na tarde desta sexta-feira (24) pelo G1.
“Hoje, o presidente me ligou. Ele está com um pressentimento, novamente, que eles [policiais] podem querer atingi-lo através de mim, sabe? É que eu tenho mandado versículos pra ele, né?”, disse Ribeiro na ligação.
Sua filha perguntou: “Ele quer que você pare de mandar mensagens?”. Milton respondeu: “Não! Não é isso. Ele acha que vão fazer uma busca e apreensão. Em casa, sabe… é… é muito triste. Bom, isso pode acontecer, né? Se houver indícios”, completou o ex-gestor.
Pouco após a menção ao presidente, conforme a transcrição do áudio, a filha alerta ao pai que está ligando para ele do telefone pessoal. “Tô te ligando no celular normal, viu, pai?”. Ribeiro, então, dá sinais de querer encerrar conversa. “Ah, é? Ah, então, depois a gente se fala, tá?”.
Contudo, antes de encerrar, de fato, o contato telefônico, ambos voltam a comentar sobre Bolsonaro. “Pressentimento… ele falava em pressentimento e tal…”, refletiu Ribeiro.”
Disse Vera Magalhães para o jornal O Globo, em 25 de junho do corrente ano:
“A apuração a respeito da interferência direta de Bolsonaro sobre a PF para blindar o ex-aliado e a si próprio coloca o presidente como o centro do escândalo, posição da qual ele vinha tentando se esquivar ora jogando Ribeiro nas chamas sozinho, ora mudando de assuntos para temas da pauta de costumes com os quais gosta de lacrar, como o aborto.”
Diante disso o juízo federal competente no Distrito Federal para investigar a atuação do ex-ministro e pastores por diversos crimes no Ministério da Educação, como tráfico de influência, advocacia administrativa, corrupção passiva, prevaricação, dentre outros, enviou os autos para o Supremo Tribunal Federal, pois o foco da investigação passou a ser o presidente da República.
O Supremo Tribunal Federal, por óbvio, enviará os autos à Procuradoria Geral da República, para saber das providências cabíveis que poderá tomar como titular da ação penal pública incondicionada.
Será caso de analisar se o presidente da República sabia de informações confidenciais e as repassou ao ministro da Educação.
Os crimes a serem apurados são obstrução de Justiça, favorecimento pessoal e violação de sigilo funcional. Só que, para que isso ocorra, cabe a Augusto Aras apresentar o pedido ao Supremo Tribunal Federal.
II –O CRIME DE OBSTRUÇÃO DE JUSTIÇA
Haveria crime de obstrução de justiça?
Analisemos o tipo penal disposto no artigo 2º, § 1º, da Lei 12.850, que se aproxima do delito de fraude processual.
Impedir é opor-se a, estorvar, não permitir, barrar, dificultar, obstar, sustar, tolher.
Embaraçar é dificultar, trazer desordem, confusão, perturbar.
A palavra investigação deve ser interpretada de forma extensiva, para abranger, não apenas, a investigação que é estritamente considerada (investigação pela polícia ou pelo Parquet), como ainda o próprio processo judicial, afastando-se a incidência do artigo 344 do Código Penal, que é a regra geral.
Assim o agente pode esconder, queimar documentos que possam comprovar a prática de crime de organização criminosa prevista na Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013.
A pena in abstrato prevista é de reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos e multa, sem prejuízo de outras correspondentes.
Trata-se de tipo penal misto alternativo, regido pelo princípio da alternatividade (a realização de um só verbo já configura o crime, pois caso as duas condutas sejam praticadas no mesmo contexto fático, estaremos diante de um mesmo crime). Pode ser sujeito qualquer pessoa, sendo o crime comum, doloso, formal.
Para o crime organizado, tão importante como planejar, financiar, é garantir a impunidade dos seus atos, que pode acontecer: matando-se testemunhas, ameaçando-as, destruindo provas documentais e periciais.
Trata-se de crime de perigo abstrato, presumido pela norma que se contenta com a prática do fato e pressupõe ser ele perigoso e sobre o qual cabe tentativa.
É crime que envolve perigo coletivo, comum, uma vez que ficam expostos ao risco os interesses jurídicos de um número indeterminado de pessoas.
É ainda crime contra a administração da justiça, independente daqueles que na societatis delinquentium vierem a ser praticados, desde que sejam punidos com penas máximas superiores a quatro anos ou revelem o caráter transnacional, havendo concurso material entre tal crime e os que vierem a ser praticados pela organização criminosa. Saliente-se que os bens protegidos no crime organizado não se limitam à paz ou a tranquilidade pública, senão a própria preservação material das instituições.
Mas, para isso, seria necessário provar que havia uma organização criminosa instalada dentro do ministério da educação com conhecimento e apoio do chefe do executivo federal.
III – O CRIME PREVISTO NO ARTIGO 153 DO CP
Teria havido o crime previsto no artigo 153 do CP?
Tem-se do artigo 153 do Código Penal:
Art. 153 – Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem:
Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa, de trezentos mil réis a dois contos de réis. (Vide Lei nº 7.209, de 1984)
Parágrafo único – Somente se procede mediante representação.
(Revogado)
- 1º Somente se procede mediante representação. (Parágrafo único renumerado pela Lei nº 9.983, de 2000)
- 1 o -A. Divulgar, sem justa causa, informações sigilosas ou reservadas, assim definidas em lei, contidas ou não nos sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
- 2 o Quando resultar prejuízo para a Administração Pública, a ação penal será incondicionada. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Especificamente interessa para o caso o parágrafo primeiro daquele artigo.
O objeto jurídico deste crime é a liberdade individual, especialmente a proteção dos segredos cuja divulgação possa causar dano à outrem.
O sujeito ativo do crime é o destinatário ou o descobridor do segredo.
Não se protege o segredo recebido oralmente, mas apenas o contido em documento ou correspondência confidencial. O núcleo do crime é divulgar, que significa o ato de propagar, difundir. Para muitos o crime exigiria que se conte o segredo a mais de uma pessoa. Para Celso Delmanto e outros (Código Penal Comentado, 6ª edição, pág. 332), basta que se narre a um só, porquanto o que se tem em vista é o comportamento divulgar e não o resultado divulgação. Todavia, o elemento normativo sem justa causa torna atípico o comportamento quando a causa é justa (defesa de um interesse legítimo). O que é segredo? É o fato que deve ficar restrito ao conhecimento de uma ou de poucas pessoas; sendo que a necessidade desse sigilo deve ser expressa ou implícita.
O núcleo do tipo penal envolve divulgar e dar conhecimento de algo a alguém ou tornar algo público. O objetivo deste tipo penal é resguardar as informações sigilosas ou reservadas contidas em sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública. A informação, como revelou Guilherme de Souza Nucci (Código Penal Comentado, 8ª edição, pág. 699), deve estar guardada em sistema que contenha base material, isto é, não se configura o ilícito se a informação sigilosa ou reservada for unicamente verbal.
O que é banco de dados? É a compilação organizada e inter-relacionada de informes guardados em um meio físico, com o objetivo de servir de fonte de consulta para finalidades variadas, evitando-se a perda de informações.
Repita-se que o objeto material e jurídico do ilícito é a informação sigilosa ou reservada.
O elemento subjetivo do crime é o dolo genérico.
Trata-se de crime formal, comissivo, instantâneo, unissubjetivo.
Em sendo a conduta em prejuízo da Administração Pública, a ação penal pública incondicionada.
Em face da pena mínima de 1 (um) ano será caso de apresentação de sursis processual pelo Parquet.
Trata-se, pois, de crime próprio na medida em que se demande sujeito ativo qualificado ou especial.
A lei, portanto, exige que a informação objeto de divulgação seja considerada sigilosa ou reservada.
Quem divulga informação sigilosa de inquérito policial que corre em sigilo, comete tal crime.
IV – O FAVORECIMENTO PESSOAL
Por fim, fala-se no favorecimento pessoal.
Prevê o artigo 348 do Código Penal conduta de ¨auxiliar a subtrair-se à ação de autoridade pública, o autor de crime a que é cominada pena de reclusão”.
Para a configuração do crime é necessário o auxílio material, pois a mera mentira para iludir investigações não configura o crime. Na lição de Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, volume IX, Rio de Janeiro, Forense, 1958, pág. 506 para a caracterização de tal delito, não é preciso, sequer, que, no momento, a autoridade esteja procurando o criminoso, pois: “Basta que, mais cedo ou mais tarde, o favorecido tenha de ser alçado pela autoridade como criminoso”.
Ainda para configurar-se o crime de favorecimento pessoal é indispensável que o auxílio seja prestado após o primeiro delito ter-se consumado, depois que alguém praticou o injusto, buscando-se esconder-se, fornecendo-se a ele o abrigo necessário.
O sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa com exceção do coautor do delito precedente. Aquele que praticou o crime ou concorreu de qualquer modo para a sua prática, responde pelo crime cometido, não pelo favorecimento. Na lição de Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal, volume II, Rio de Janeiro, Forense, 5ª edição, pág. 521) o coautor somente responderá pelo crime se visou exclusivamente beneficiar outros partícipes. De toda sorte, já se entendeu que não pode o crime ser praticado pelo coautor(RT 512/358).
O elemento subjetivo é o dolo genérico.
V – PALAVRAS FINAIS
Poder-se-á dizer que essas conversas do ex-ministro da educação, que foram postas à publicidade, não representam nenhuma evidência concreta contra o presidente da República e, por si, e não merecem uma investigação a ser supervisionada pelo Supremo Tribunal Federal. Isso poderá dizer a PGR ao analisar o caso, em prazo a ser dado pelo STF, solicitando o reenvio dos autos à primeira instância. Afinal, uma mera sensação de premonição do presidente diante de um amigo não representaria um crime.
Mas, de toda sorte, é mister lembrar que, em abril deste ano, a Procuradoria-Geral da República (PGR) avaliou que não há elementos que justifiquem a abertura de uma investigação contra o presidente Jair Bolsonaro pelas suspeitas de irregularidades no fornecimento de recursos pelo Ministério da Educação (MEC).
Naquela ocasião, ao mandar a Procuradoria se manifestar sobre a situação de Bolsonaro, Cármen Lúcia afirmou que, diante da gravidade dos fatos, é imprescindível a investigação de todos os envolvidos, não só do ministro.
Observemos qual será a palavra final da ministra Cármen Lúcia para o caso no momento presente diante de possíveis indícios de crimes que, porventura, teriam acontecido e que poderiam envolver o presidente da República.
*É procurador da República aposentado com atuação no RN.
*É jornalista, advogado e ex-deputado federal – nl@neylopes.com.br
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