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Verossimilhança literária

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Já disse – e agora repito – que o australiano Morris West (1916-1999) é um dos meus ficcionistas preferidos. E não só pela sua “trilogia católica”, composta por “O Advogado do Diabo” (“The Devil’s Advocate”, 1959), “As Sandálias do Pescador” (“The Shoes of the Fisherman”, 1963) e “Os Fantoches de Deus” (“The Clowns of God”, 1981). Quase tudo de West é bom, a exemplo de “A eminência” (“Eminence”, 1998), seu último livro publicado em vida e já objeto de comentários meus. West foi – ou é, já que sua obra permanece viva – um bestseller que escrevia com profundidade e bem. Alta literatura e entretenimento do melhor tipo.

Para além disso (falo da sua boa literatura), West é tido como um escritor de dons antecipatórios (para os medianamente crentes) ou mesmo premonitórios (para os mais místicos) quanto às coisas da Cúria romana. Em “As sandálias do pescador”, ele imaginou a eleição de um Papa do leste europeu quinze anos antes da entronização de Karol Wojtyła (1920-2005) como João Paulo II. Em “Os Fantoches de Deus”, ele nos deu um Papa que renuncia ao trono de São Pedro para viver em reclusão, mais de trinta anos antes da abdicação de Bento XVI, Joseph Aloisius Ratzinger (1927-2022). Em “A eminência”, tem-se a figura de um cardeal argentino, um homem violentado “pelos militares em seu país que – mesmo convivendo com revelações, dúvidas e questionamentos – é um dos principais candidatos ao trono de Pedro”. E isso tudo obriga a “Igreja Católica a refletir sobre seu passado e redefinir o seu futuro”. Isso nos lembra algo de hoje.

Bom, se são dons antecipatórios ou místicos (sei lá) ou apenas o bom uso de probabilidades e coincidências, o fato é que a literatura de West me encanta de um modo especial. Talvez porque haja outras coincidências, até pessoais, envolvidas nisso.

Peguemos o caso de “Os Fantoches de Deus”, livro que, numa edição de bolso da Record, começando o ano passado, só terminei de reler em pleno veraneio deste ano (atualmente, por vários motivos, me é difícil ler um livro de uma tirada só). Temos um Papa que renuncia ao trono de São Pedro, como já dito. Mas há muito mais: “O Papa Gregório XVII abdica ao trono de Pedro pressionado por um ultimato dos cardeais, sob pena de ser declarado insano. Motivo: ele afirma ter recebido uma revelação pessoal do fim do mundo e do segundo advento de Cristo. Qual seria a reação de centenas de milhões de crentes e mesmo dos outros milhões que, embora não aceitassem a infalibilidade papal, têm razões para achar que a hora final poderia soar, acionada pelos dedos das superpotências atômicas? Com um mundo em crise, (…), a guerra atômica cada vez mais uma perspectiva sombria, o terror em toda parte, a desconfiança e a insegurança nas ruas. Restaria ainda alguma esperança, alguma possibilidade de sobrevivência da humanidade? E quem seria o instrumento da salvação do homem?”.

O “Armagedom”, uma guerra terrível com o fim dos tempos, a tal “Parúsia”, com a volta redentora de Cristo para presidir o Juízo Final, conforme sugeridos no livro, tudo isso foi por mim relido durante um tempo em que a Guerra da Ucrânia escalava em terrores e, sobretudo, em medo de um conflito nuclear sem vencedores entre o Oeste e o Leste. Como nos tempos da finada(?) Guerra Fria. Essa “coincidência” de releitura de “Os Fantoches de Deus” durante a escalada da Guerra na Europa deu à coisa, àquilo que era contado por West, uma verossimilhança viciante. E assustadora.

E tem o final do livro. Que, evidentemente, eu não vou contar. Para mim, foi inesperado. Não o antecipei, sequer suspeitei, em momento algum. Foi um final de leitura místico (e olhem que estou em algum ponto entre os medianamente crentes e os céticos). Fiquei emocionado. E não havia “lua ou conhaque”. Era um dia de semana, meio da tarde, as areias de Pirangi quase desertas. Só eu e o amigo Sol. Talvez tenha sido isso. O final veio “sem muita conversa, sem muito explicar. Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar”.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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O nível do policial

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Vou tratar hoje de dois assuntos controversos nas letras. A questão do gênero ou da tipologia da literatura, que é bastante controversa. Grandes obras normalmente não se conformam às regras do gênero; e muitos críticos literários sequer reconhecem a existência desse conceito (de gênero da literatura). Eu já acho que essa classificação é possível. Reconheço que uma das minhas literaturas preferidas, a literatura policial ou detetivesca, como literatura de massa, é um gênero bem definido. E aqui eu chego à segunda controvérsia, na qual me deterei amiúde: a literatura de massa, popular, como a dos romances policiais, pode ser uma “alta” literatura?

Houve um tempo em que a divisão entre “alta” e “baixa” literatura era visível ou ao menos reconhecida/propagada pelos entendidos do assunto. Como registra Miklós Szabolcsi (em “Literatura universal do século XX: principais correntes”, Editora Universidade de Brasília, 1990), é “possível traçar uma linha divisória entre as duas espécies de literatura, com base em diversos pontos de vista, sejam os da sociologia da literatura ou da estética, sejam os referentes às diferenças de função. O comum mesmo é citar, a título de fundamentação, as narrativas reiterativas, de produção fácil e compostas por módulos já prontos, que têm o poder de emocionar e horrorizar com facilidade e são caracterizadas pela trivialidade do texto. Pode acrescentar-se, no entanto, a possibilidade de recepção rápida, a compreensão sem dificuldades e, finalmente, determinados procedimentos ligados à difusão e à produção. Mas são critérios incertos e discutíveis. (…) O fato é que as pegadas das obras arroladas nesse gênero podem ser acompanhadas a partir do século XVIII. A evidente divisão da literatura ‘alta’ e ‘baixa’ ou ‘trivial’ consolida-se no final do século XIX, simultaneamente com o fato que é sua causa: a ‘alta’ literatura vai se tornando excludente, em face das dificuldades que oferece para a compreensão”.

Todavia, sobretudo a partir do começo do século XX, os territórios da “alta” e da “baixa” literatura se expandiram causando uma mistura entre os seus conjuntos. Como explica Szabolcsi, “de um lado, porque a vanguarda destrói os limites estabelecidos entre a arte ‘elevada’ (de elite) e a ‘inferior’ (popular), de outro, porque, em função de causas técnicas e comerciais, cresce o número de obras culturais modernas que, empregando as conquistas da literatura ‘superior’ e assimilando-lhe a cosmovisão e as técnicas, passam a prometer leitura rápida e leve, diversão e esquecimento. O best seller, o êxito de livraria, não é simplesmente uma leitura soporífera e dissuasiva. Frequentemente, representa correntes formativas e excitantes, que conquistam grande parcela de leitores-consumidores”. Já tratei até desse tema e citei Graham Greene, Morris West e John Le Carré, escrevendo aventuras, thrillers, policiais ou romances de espionagem, como perfeitos casos de best-sellers que realmente escreviam bem.

O que dizer da qualidade dos precursores do romance policial? De Edgar Allan Poe, por exemplo, “com sua reconstrução intelectual dos crimes”? Na verdade, depois de outros precursores do século XIX, como Émile Gaboriau e Maurice Leblanc, a leitura do policial assiste “ao surgimento de clássicos como Conan Doyle e Edgar Wallace e, a partir dos anos 30, com Agatha Christie e Georges Simenon. Tornam-se parte integrante da literatura, em face das exigências de um amplo círculo de leitores, que deseja a sobrevivência do romantismo dos bandidos e mostra-se ávido da investigação e das emoções da adivinhação dos enigmas. Tanto é verdade que, a seguir, instalam-se profundamente na estrutura literária, a ponto de obras ‘elevadas’ passarem a fazer uso dos recursos e das máscaras do romance policial. Primeiro, com G.K. Chesterton; depois, com Grahan Greene, Friedrich Dürrenmatt, Max Frisch e o nouveau roman francês, a ponto de diluir, aqui também, as fronteiras entre os dois estilos”. E podemos citar outras referências do século XX, como Dashiel Hammett e Raymand Chandler, suprassumos do policial noir, ou Erle Stanley Gardner, que nos dá o tipo jurídico do advogado-detetive, com o seu Perry Mason. E por aí vai.

Na verdade, para mim, não existe uma barreira intransponível à literatura de massas, em especial à literatura policial/detetivesca, ao país da “alta” literatura. Desconfio de Tzvetan Todorov quando afirma (em “Poética da Prosa”, Martins Fontes, 2003): “quem quiser ‘embelezar’ o romance policial, faz ‘literatura’ e não romance policial”. Acredito que faz os dois. E dou como exemplo definitivo Umberto Eco. Alguém vai me dizer que “O nome da rosa” (1980) não é altíssima literatura detetivesca?

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.