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Conto ingrato de Natal

Por Olavo Hamilton*

Trinta anos depois, no dia do seu casamento, diante da mesma Catedral, haveria de lembrar daquela noite de Natal em que seu pai o levou ao centro da cidade para fazer caridade e pregar a Palavra.  Tinha apenas dez anos de idade, mas jamais esqueceria o olhar cheio de gratidão, das lágrimas de emoção e esperança de que caiam naquela face sofrida e desabrigada.  Dali em diante, sua alma serviria fervorosamente à obra e aos propósitos do Senhor.

Aquele gesto de caridade aplacou um sentimento de culpa que havia precocemente em seu âmago: questionava o porquê dele, privilegiado, ter tanto enquanto alguns, quase nada.  Seu pai, sensível às dores existenciais da humanidade, tratou de lhe sossegar o coração.  Citou Madre Teresa de Calcutá, lembrou que “há algo de bonito em ver os pobres aceitarem o seu destino”, assim como Jesus fizera – “o mundo ganha muito com o sofrimento deles”, assim como ganhou com o sofrimento de Cristo.  – Há um Jesus Cristo em cada pobre – completou a mãe.  Essas palavras foram de consolação e transformação – Existe razão e bondade na pobreza – pensou o menino.  Tratou de separar o de melhor na ceia de Natal preparada pela mãe e recordou daquele dia em que esqueceu a lancheira da escola e teve fome – Repeti o almoço duas vezes, eu lembro!  E reforçou generosamente a marmita.

O sino da Catedral acabara de tocar, 20h do dia 24 de dezembro de 2023.  O pobre moribundo já se recolhia ao banco para dormir, quando avistou aquele carro suntuoso que costumava trafegar no centro da cidade.  Mas dessa vez havia algo de humano no automóvel.  Desceu um casal e um menino, pareciam anjos vestidos de branco.  O cheiro da comida lhe chegou antes, no mesmo tempo em que seu cheiro chegou aos visitantes.  Recordou daquele dia em que fez a última refeição de verdade; tinha uma semana.  Até tentou, mas não conseguiu sorrir.  Há muito não conseguia sorrir.

O grupo o cumprimentou gentilmente, de uma forma acolhedora, mas o pobre diabo nem notou, nunca fora acolhido antes.  O homem lhe tomou a mão e perguntou se podiam rezar por ele, no que assentiu imediatamente, embora lhe incomodasse profundamente segurar a mão de alguém.  Sob os olhos cegos de Santa Luzia, que a tudo vê, sentiu grande vergonha, pois lhe interessava mais a marmita trazida pelo menino do que as orações que lhe dirigiam.  Então se concentrou e conseguiu compreender algumas palavras: “os últimos serão os primeiros”, “os humilhados serão exaltados”…  lançou um olhar profundo para o garoto e não conseguiu lembrar de quando era criança… havia sido criança algum dia?  Teve imensa inveja e revolta.  Tentou, mas não conseguiu conter as lágrimas.  Lágrimas de ódio!  Só desejava que o grupo, cuja felicidade, como um câncer, era arrebatadora e não contagiante, lhe deixasse a comida e fosse embora, o que não tardou a acontecer.  Mal deram as costas, abriu a marmita e avançou com as mãos sobre a ceia.  Sentiu um gosto diferente.  O gosto agridoce da fome saciada e da humilhação.

*É advogado e professor da UERN.

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