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Crônica

Lençóis, papelões e cobertores puídos

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Foto: Web

Por Regina Bruno 

Dia desses, caminhando pelas Laranjeiras ouvi um grito: “- Estou com fome! Estou com fome”. Era o vendedor de livros usados, agarrado à grade de ferro do muro da Igreja  urrando a sua fome. Seu grito silenciou a buzina dos carros, as sirenes das ambulâncias, a algazarra dos alunos e alunas do Liceu e até mesmo a reza das devotas que às segundas-feiras acendem seus incensos e velas para o anjo da guarda. Se Marx por aqui aportasse certamente não necessitaria ler ‘Os mistérios de Paris’ de Eugene Sue para entender as desventuras de nossa cidade, pensei. Bastaria olhar à sua volta pra vida escancarada de seus habitantes – espelho do país – para descobrir os seus segredos.Ele veria calçadas-dormitório com gentes enfileiradas, rentes uma a outra para proteger-se da morte. Garrafas d’água demarcando espaços e assegurando o lugar de quem momentaneamente precisou sair. O direito a privacidade restrito ao lençol enrolado ao corpo ou à proteção precária de caixas de papelão desmontadas e transformadas em muretas. Avistaria as marquises-dormitório assombrando quem por ali passa mesmo aqueles/as que viram o rosto ou que balbuciam “-Isto não me concerne!” .

 Notaria algumas caras novas dividindo espaço das calçadas com os demais: são os boys e os auxiliares dos escritórios da redondeza que, por força das dificuldades e o fim dos hotéis populares encravados próximos a Central, dormem ao relento para ‘economizar’ o dinheiro da condução. “São os ensapatados. Gente sem crostas nos pés”, diz alguém. Antes de dormir, eles guardam seus preciosos sapatos, chichelados, cintos e apetrechos em mochilas transformadas em cofres de proteção e em travesseiros. A gravata serve para proteger os olhos dos holofotes da Presidente Vargas, cada vez mais potentes.

Enxergaria uma “cidade partida”, de partir o coração, tanta a indignação. Uma cidade loteada. Aquele pequeno grupo fica estrategicamente posicionado, ora na porta do banco ora na saída da lanchonete – lugares por onde passam dinheiro e comida. Tornado impossível seguir feliz com seu cheddar e sua coca-cola veneno, promoção Mc das quintas-feiras, ao deparar-se com aquele olhar pidão. Outros se posicionam próximo às farmácias seja buscando aplacar dores imediatas seja para negociar produtos, “- Psiu, moça, compre um pacote de fralda pra minha mãe. Mas só serve a Pampers Premium”. “-Por que? Ela só gosta da Pampers?.“-Ora, porque essa marca eu vendo fácil pra comprar comida”..

Descortinaria uma vida, ela também pontuada por atitudes-basta. Aquele homem parado próximo à entrada de um morro. “-Me dá um quilo de açúcar”. “-Não tenho, responde alguém apressado”. Mas imediatamente diminui o passo, guarda momentaneamente seus problemas e preocupações, entra na padaria próxima, compra o açúcar, retorna e o entrega ao homem ainda parado à entrada do morro “-Obrigado”, diz. “-Hoje eu decidi que não subo de mãos vazias. Só volto pra casa quando conseguir o café, o pão, o leite e o açúcar”. Escutaria um diálogo entrecortado pela insatisfação na qual o “pois devia!” é cada vez mais freqüente. Expressão, talvez, de reivindicações não percebidas nem reconhecidas como tal: “-Não tenho trocado”. “-Pois devia ter!”. Ou a indignação feito raiva pura: “-Me dá um dinheiro!”“-Desculpa, hoje não tenho nada”. “-Me dá, sua puta!!”.

Descobriria que jornaleira considera a situação uma tragédia e sugere: “essa gente deveria desaparecer e circular durante o dia”. E que o taxista da Uruguaiana os vêem como “uma arraia miúda de vagabundos” mas escuta porque sente na pele quando ele comenta sobre os 13 milhões de desempregados e nova classificação do IBGE, os “desalentados”, ou seja, pessoas que após anos de ouvir “- não há vaga” desistiram de procurar um emprego, um trabalho.

E emocionado, ouviria em meio a tantas dificuldades conversas e sussurros de gentes fazendo graça, falando amenidades e trocando afetos: “-Hoje tu está mais linda, mulher”. “-É os teus olhos, homem!”. “Mais parece a Maria da Paz!”. “E tu se acha o próprio Gianecchini!” “-Coitado do Arrascaela, machucou-se no jogo”.”-Tem pena não, ele ganha milhão!”. “A senhora não veio ontem!, por que?”. “-Fia, era feriado! Também tenho meus direitos!”. Ou comovido notaria que os cães são companhias constantes das gentes. Aconchegam-se no frio. Dormem entrelaçando suas patas às pernas. Cães e pessoas guardiãs uma da outra. Fomes e comidas compartilhadas.

Marx ficaria indignado ao constatar que nada mudou quando o assunto é humilhação. As elites. os “estabelecidos”, os poderosos, os endinheirados, como garantia da desigualdade, continuam impondo uma cruel e eficaz associação entre vestimentas, corpos e o caráter das pessoas, ao procurar transformar o maltrapilho em mal-encarado, o desgrenhado em violento e o desdentado em imprestável. Se revoltaria ao ver recém nascidos, bebês, crianças e gentes miúdas perambulando pelas ruas da cidade e do país e aprenderia um pouco mais sobre relações humanas  ao ver, para desespero da mãe, um guri distribuir aos passantes as moedas arduamente ganhas e ciosamente guardadas na caixa de doces.

Um mundo marcado por desigualdades e contradições. Uma imensa pobreza gerada pela modernização. O contrate entre a indigência e a riqueza. A banalização da ética.

E nós?

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Pessoa em situação de rua na perspectiva do Legislador

Políticas públicas destinadas às pessoas em situação de rua são frágeis (Foto: Gibran Mendes)

Por Audren Azolin*

Basta andar pelas vias das grandes cidades brasileiras para constatar o significativo aumento de pessoas em situação de rua, popularmente chamados de moradores de rua. Especialistas alegam que crises econômicas profundas que se prolongam no tempo é um fator que explica o aumento dessa população. E a tendência no Brasil é de aumentar ainda mais, uma vez que temos 12 milhões de desempregados e 54,8 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza — isto é, um quarto da população brasileira.

As políticas públicas destinadas às pessoas em situação de rua são frágeis. O Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE) não conta com pesquisas periódicas que classifiquem e contabilizem essa população. Os dados referentes, além de não serem levantados constantemente, carecem de padronização metodológica. Na verdade, há enormes problemas quanto ao diagnóstico. Assim, qualquer política pública nesse quesito opera às cegas.

Mesmos com falhas graves de diagnóstico relativos às pessoas em situação de rua, na Câmara dos Deputados foram apresentadas na 55ª Legislatura (2015-2018) 23 proposições legislativas que se referem à temática. É a partir dessa produção legislativa que identificamos os problemas que afligem a pessoa em situação de rua, na perspectiva do legislador. Em outras palavras, o que o Legislativo entende como grandes problemas para essa população.

A metodologia que utilizamos consistiu em analisar qualitativamente cada proposição legislativa referente a essa população, buscando identificar os problemas que a proposição visava resolver. Na ótica do legislador, considerando toda a 55ª Legislatura, o maior problema referente à pessoa em situação de rua foi o relacionado à assistência social (39,13%). O segundo maior problema foi saúde pública (21,74%). E em terceiro lugar ficou a segurança pública (17,39%).

Os problemas relacionados a gestão (4,35%), cultura (4,35%), educação (4,35%) e habitação (4,35%) ficaram na última colocação. O que chama atenção é que a expressão pessoa em situação de rua refere-se às pessoas que não têm moradia e mesmo assim ‘habitação’ não foi entendida enquanto um dos maiores problemas. Contudo, temos que considerar a possibilidade de que não ter onde morar seja efeito (e não causa) de outros fatores, como emprego e falta de empregabilidade, que não figuraram enquanto problemas nas proposições legislativas analisadas.

Outra análise que realizamos considerou as proposições legislativas por problema por ano da 55ª Legislatura. As proposições legislativas que figuraram enquanto discussão de assistência social concentraram-se nos anos de 2016 e 2017, cada ano com 33,33%, totalizando 66,66%. Enquanto problema de saúde pública, o ano de 2015 concentrou 80% das proposições. Por sua vez, o desafio enquanto segurança pública concentrou-se no ano de 2016, na ordem de 50%. Já habitação enquanto problema para pessoa em situação de rua figurou apenas em uma proposição legislativa no ano de 2015.

Todas as proposições legislativas protocoladas na 55ª Legislatura que trataram de questões afetam à pessoa em situação de rua foram arquivadas por decurso de prazo, conforme reza o artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Todas as proposições legislativas em tramitação são arquivadas quando finda a legislatura.

Daquelas proposições referentes à pessoa em situação de rua protocoladas na Legislatura anterior, 82,61% foram desarquivadas neste ano (2019) e estão ainda em tramitação (verificadas no dia 16 de novembro de 2019). Assim, das 23 proposições legislativas protocoladas na Legislatura anterior, 19 foram desarquivadas. Destas, 7 ainda estão aguardando parecer dos relatores, isto é, 36,84%.

Em suma, nenhuma das proposições legislativas protocoladas na 55ª Legislatura que se relacionam à pessoa em situação de rua foi transformada em norma jurídica (lei).

A política pública relativa ao tema não encontra dificuldades apenas quanto ao diagnóstico, mas também quanto à formulação. Vejamos o exemplo do Projeto de Lei 2663/2015 que propôs a permissão para que concessionárias de energia elétrica, água, telefone e TV por assinatura, criem um campo nas faturas de cobranças para que os usuários preenchessem o valor de doações voluntárias.

Os beneficiários das doações seriam asilos, creches, orfanatos, bem como entidades beneficentes de assistência social e de filantropia. É difícil aceitar que o relator desse Projeto de Lei na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público tenha dado parecer contrário. No entanto, o parecer apresentou um argumento bastante eloquente: a impossibilidade de fiscalizar se realmente as doações chegariam ao seu destino.

Analisando a tramitação do Projeto de Lei 2663/2015 podemos perceber duas questões importantes. A primeira é que nem sempre uma lei bem-intencionada será eficaz. Neste sentido, o argumento no parecer para rejeitar o Projeto de Lei é bastante convincente. A segunda questão foi a falta de emendas ao Projeto de Lei para melhorar a redação inicial, visando sanar a deficiência apresentada no parecer. O Projeto de Lei 2663/2015 não recebeu nenhuma emenda e se encontra, até o momento, arquivado por decurso de prazo.

Abaixo a tabela sumarizando o ranking de problemas na perspectiva do Legislador.

Assim, para o legislador, tendo como exemplo o Projeto de Lei 2663/2015, proposições legislativas são inviabilizadas enquanto políticas públicas por motivos de implementação, fiscalização e avaliação. E para ele essas inviabilidades alcançam também a pessoa em situação de rua, agravada pela falta de diagnósticos precisos e metodologias padronizadas.

Inviabilidades de outras naturezas assolam as políticas públicas relativas à pessoa em situação de rua, em particular, e às demais políticas públicas: inviabilidade jurídica, política, técnica, orçamentária e de gestão.

*É professora do curso de Bacharelado em Ciência Política do Centro Universitário Internacional Uninter.