Um caso a ser investigado pela Polícia Federal

Bolsonaro tentou acessar joias rompendo os limites da lei (Foto: reprodução)

Por Rogério Tadeu Romano*

I – O FATO

Informou o site de notícias do Jornal do Brasil, em 9.3.2023:

“O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) confirmou à rede de TV CNN nesta quarta-feira (8) que um pacote de presentes encaminhado pelo governo da Arábia Saudita em 2021 foi incorporado ao acervo privado dele, mas negou ilegalidades.

O pacote, que inclui relógio, caneta, abotoaduras, anel e um tipo de rosário, todos da marca suíça de diamantes Chopard, estava na bagagem de um dos integrantes da comitiva que tinha visitado o país árabe naquele ano e não foi interceptado pela Receita Federal na chegada ao Brasil, diferentemente de outro pacote de joias avaliado em R$ 16,5 milhões.

À rede de TV, sem dar mais detalhes, Bolsonaro afirmou: “Não teve nenhuma ilegalidade. Segui a lei, como sempre fiz”.”

II – A BUSCA E APREENSÃO DE BEM

Data vênia de entendimento contrário, é caso de intimação pelo Tribunal de Contas da União ou ainda pela Justiça Federal competente para devolução desses bens.

Tem-se no processo penal a busca e apreensão com nítido caráter cautelar.

Cleonice A. Valentim Bastos Pitombo(Da busca e apreensão no processo penal, São Paulo, RT, 1998, pág. 96.) conceitua busca como sendo o ato de procedimento persecutivo penal, restritivo ao direito individual(inviolabilidade do domicílio, vida privada, domicílio e da integridade física ou moral), consistente em procura, que pode ostentar-se na revista ou no varejamento, consoante a hipótese da pessoa(vítima de crime, suspeito, indiciado, acusado, condenado, testemunha e perito), semoventes, coisas(objetos, papéis e documentos), bem como de vestígios(rastros, sinais e pistas) da infração.

Por sua vez, apreensão é medida assecuratória que toma algo de alguém ou de algum lugar, com a finalidade de produzir prova ou preservar direitos.

Para Hélio Tornaghi(Compêndio de processo penal, tomo III, pág. 1006) a finalidade da busca é sempre a apreensão.

III – OS PRESENTES OFERTADOS AO PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Esses bens são públicos.

Pelo entendimento do TCU, só podem ser levados pelo presidente no final do mandato “itens de natureza personalíssima” (como medalhas e honrarias concedidas em solenidades no Brasil e no exterior) ou produtos de consumo direto, como roupas, alimentos ou perfumes. Itens presenteados por governos estrangeiros devem ser incorporados ao patrimônio da União.

Presentes para o presidente e o seu acervo privado são regulamentados pela Lei nº 8.394/1991 e o decreto nº 4.344/2002. Pela lei, todo presente de governo estrangeiro deve, a rigor, ser incorporado ao patrimônio público, com poucas exceções, como determinados documentos e itens de consumo, como alimentos e bebidas.

IV – O DESCAMINHO E O PERDIMENTO DE BENS

Por absurdo, se eram bens privados sua entrada no Brasil deveria, necessariamente, ser objeto de informação por escrito à Receita Federal através de documento próprio com o devido pagamento de imposto de importação, além de multa. Se isso não foi feito, cabe a aplicação de perda de perdimento em favor da União Federal. Teria havido o crime de descaminho.

O descaminho consiste em fraude no pagamento de tributo devido à entrada, saída ou consumo de mercadoria não proibida no país

Os bens em tela podem ser objeto do perdimento que é uma consequência comumente aplicada à violação da legislação aduaneira envolvendo uma importação irregular.

A pena de perdimento de bens é uma das mais gravosas sanções administrativas aduaneiras previstas no ordenamento jurídico pátrio.

Renato Adolpho Tonelli Júnior (A Pena de Perdimento Aplicada à Moeda e os Poderes e Limites da Autoridade Fiscal no Controle de Ingresso e Saída de Numerário em Especial no/ do Território Nacional, in RDT atual, 37-2017) nos disse que”o Regulamento Aduaneiro, ato infralegal por natureza, com fundamento, respectivamente, no Decreto-lei n. 37/1966 – art. 96; no Decreto-lei n. 1.455/1976 – arts. 23, § 1º; na Lei n. 9.069/1995 – art. 65, § 3º; e na Lei n. 10.833/2003 – art. 76, prescreveu em seu art. 675, que são aplicáveis as penalidades de (i) perdimento de veículo; (ii) perdimento de mercadoria; (iii) perdimento de moeda; (iv) multa; e (v) sanção administrativa diversa.”

Disse ainda Renato Adolpho Tonelli Júnior (obra citada)”que com o art. 6º da Instrução Normativa RFB n. 1.059/2010 19, o particular viajante procedente do exterior pode ingressar em território nacional com valores em espécie em quantia superior ao fixado em lei, desde que proceda à respectiva declaração perante as autoridades fiscais.”

…..

“Nesse ponto, a Instrução Normativa RFB n. 1.385/2013 possibilita ao particular que proceda à declaração dos valores em espécie através da Declaração Eletrônica de Bens de Viajante (e-DBV) 20.

Por força do art. 11 da aludida Instrução Normativa, caso o particular não proceda à declaração de valores, haverá a perda da quantia, em espécie, excedente ao quantum fixado no art. 65 da Lei n. 9.069/1995.”

Uma vez aplicado o perdimento, há a possibilidade de instauração do contencioso administrativo por parte do particular, em consagração ao princípio do devido processo legal (art. 5º, LV, da CF/1988), oportunidade em que este poderá comprovar e demonstrar as razões do não cabimento do perdimento, bem como qualquer outra matéria de defesa, conforme rito previsto nos arts. 777 a 780 do Regulamento Aduaneiro.”

V – PECULATO

A posse, por parte do ex-presidente da República desses bens indica a possibilidade de conduta envolvendo o crime de peculato, independente de investigação por outro delito contra a Administração. Necessário que a Polícia Federal investigue o fato em todas as suas circunstâncias de materialidade e autoria.

São condutas típicas para efeito do crime de peculato: apropriação ou desvio, podendo o tipo configurar-se mediante o dolo específico, principalmente com relação ao peculato-desvio.

Apropriar-se significa assenhorear-se da coisa móvel, passando dela a dispor como se fosse sua.

Desviar é dar à coisa destinação diversa daquela em razão de que foi-lhe entregue ou confiada ao agente.

Ademais tal conduta deve ser enquadrada, outrossim, como ato de improbidade.

A propósito já entendeu o STJ:

Essa apropriação ou assenhoramento revela-se pela conduta daquele que, tendo os deveres de guarda, manutenção e administração do acervo público (quando muito, mera detenção), transfere a posse ou o domínio de bens, rendas, verbas ou valores públicos, convolando-a em domínio próprio e incorporando-a ao seu patrimônio. Tal ato de incorporação realiza-se por qualquer forma, seja direta ou indireta. Existem várias fórmulas e meios para o alcance desse objetivo, como alude Marcelo Figueiredo, com o emprego de terceiros (testas-de-ferro, parentes etc.). A casuística revela a multiplicidade de formas utilizadas para a apropriação, total ou parcial, dos elementos integrantes do patrimônio público através de vários expedientes, como os vícios da vontade e os defeitos do ato jurídico. A incorporação de bens, verbas, rendas ou valores públicos ao patrimônio do agente público deve ter causa ilícita ou imoral, revelando que a apropriação é indevida, que o agente usou das prerrogativas de sua função contrariamente à lei, implícita ou explicitamente, para se assenhorar daquilo que não poderia pertencer-lhe. […]’ “(HC 32352PR, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 01/06/2004, DJe 16/08/2004).

Trata-se então de um enriquecimento ilícito, exigindo-se o dolo como elemento subjetivo.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

Comments

comments

Reportagem especial

Canal Bruno Barreto