Um caso de uso de documento falso

Marçal cometeu crime ( Foto: Antonio Milena/ Fotos Públicas)

Por Rogério Tadeu Romano*

Observo o que foi dito no portal do jornal Tribuna do Norte, em 5.10.24:

“Candidato à Prefeitura de São Paulo, Pablo Marçal (PRTB) usou laudo médico falso para afirmar que Guilherme Boulos (PSOL) foi internado em decorrência de dependência química. O documento apresenta uma série de inconsistências, como erros de digitação, número de RG com um dígito a mais e assinatura de um médico que nunca trabalhou na clínica. Além disso, há registros de que Boulos estava em outro lugar no momento apontado como o de sua internação.

O suposto laudo médico publicado por Pablo Marçal (PRTB) que aponta internação de Guilherme Boulos (PSOL) por conta do uso de cocaína e corte de entrevista de Marçal a um podcast em que ele afirma que o atendimento médico teria sido por “dependência química”. O material foi publicado no YouTube, TikTok, Instagram e X.”

Trata-se de crime comum.

O fato está a merecer uma investigação em todos os seus aspectos de materialidade e autoria.

De toda sorte, cabe lembrar que em um Estado Democrático de Direito a campanha política deve ser feita em torno de ideias em prol da sociedade e não de crimes.

Cabe discutir sobre o crime de uso de documento falso.

Documento, como conceitua Júlio Fabbrini Mirabete (Manual de direito penal, volume III, 22ª edição, Atlas, pág. 212) é toda peça escrita que condense graficamente o pensamento de alguém, podendo provar um fato ou a realização de algum ato dotado de significação ou relevância jurídica. O escrito deve ser feito a mão ou por meio mecânico ou químico de reprodução de caracteres. Mas, inexiste a falsificação de documento se trata-se de simples reproduções fotográficas (xerocópias) não autenticadas que não se conceituam como documentos (RTJ 108/156). Mas, é essencial que o documento possa apresentar relevância no plano jurídico, gerando consequências no plano jurídico (RTJ 616/295). Nelson Hungria conceitua o documento como “ todo escrito especialmente destinado a servir ou eventualmente utilizável como meio de prova de fato juridicamente relevante”.

O documento, via de regra, é um papel escrito. Mas nem todo papel escrito é um documento, pois nem todo papel tem força probante.

De toda sorte, a veracidade probatória é a objetividade jurídica desses crimes em estudo.

São requisitos do documento:

  1. Forma escrita, redigidos em língua nacional, seja a mão ou a máquina;
  2. Determinação da autoria;
  3. Conteúdo (uma manifestação de vontade, uma exposição dos fatos);
  4. Relevância jurídica

Por sua vez há o uso do documento falso.

Art. 304 – Fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302:

Pena – a cominada à falsificação ou à alteração.

Como ensinou Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, 5ª edição, volume IX, pág. 297)) é com o uso que o documento falso vai exercer a função maléfica a que é destinado, devendo o usuário ser submetido à mesma pena que o falsificador.

Qualquer pessoa pode praticar esse crime, inclusive o falsificador.

Não há crime se o agente apenas o traz consigo (RT 470/350, 504/341, 510/439, 521/363, 536/310, 541/369, RJTJESP 30/436, 56/381, 61/341, dentre outros julgados).

O TJMG ( APELAÇÃO CRIMINAL Nº 1.0704.17.006060-9/001), assim sintetizou:

“- O simples porte de documento falso não caracteriza o crime previsto no art. 304 do CP, pois o núcleo do tipo penal é claramente a conduta de “fazer uso”, não tendo sido prevista no tipo penal a conduta de “portar”. Assim, se o apelado não apresentou ou fez efetivo uso do documento falso, que foi apreendido em sua posse após buscas policiais motivadas pela suposta prática de outro delito, sua conduta se mostra atípica, devendo ser confirmada a absolvição pelo crime de uso de documento falso.”

Nesse sentido, confira-se a jurisprudência:

EMENTA Extradição instrutória. República Federal da Alemanha. Pedido formulado com promessa de reciprocidade. Atendimento aos requisitos da Lei nº 6.815/80. Prescrição. Inocorrência, tanto sob a ótica da legislação alienígena quanto sob a ótica da legislação penal brasileira. Reexame de fatos subjacentes à investigação e impossibilidade de avaliação da consistência do mandado de prisão. Sistema de contenciosidade limitada. Precedentes. Crimes contra a ordem tributária e de uso de documento falso, os quais ensejam o acolhimento do pedido de extradição. Inexistência de comprovação de ocorrência de bis in idem. Crime de uso de documento falso não punível autonomamente, em virtude do princípio da consunção. Precedentes. A simples posse de documento falso não basta à caracterização do delito previsto no art. 304 do Código Penal, sendo necessária sua utilização visando atingir efeitos jurídicos. Detração do tempo de prisão cumprida no Brasil. Necessidade. Pedido deferido em parte. 1. O pedido formulado pela República Federal da Alemanha, com promessa de reciprocidade, atende aos pressupostos necessários ao seu deferimento, nos termos da Lei nº 6.815/80. 2. A falta de tratado bilateral de extradição entre o Brasil e o país requerente não impede a formulação e o eventual atendimento do pedido extradicional desde que o Estado requerente, como na espécie, prometa reciprocidade de tratamento ao Brasil, mediante expediente (nota verbal) formalmente transmitido por via diplomática. 3. Os fatos delituosos imputados ao extraditando correspondem, no Brasil, aos crimes tipificados como contra a ordem tributária (art. 1º, incisos I e II, da Lei nº 8.137/90) e de uso de documento falso ( CP, art. 304), satisfazendo, assim, ao requisito da dupla tipicidade, previsto no art. 77, inciso II, da Lei nº 6.815/80). 4. Ocorrência de bis in idem não demonstrada. 5. Não ocorrência da prescrição da pretensão punitiva, tanto pelos textos legais apresentados pelo Estado requerente quanto pela legislação penal brasileira (inciso III do art. 109 do CP). 6. No Brasil, o processo extradicional se pauta pelo princípio da contenciosidade limitada, sendo vedado a esta Suprema Corte indagar sobre o mérito da pretensão deduzida pelo Estado requerente ou sobre o contexto probatório em que a postulação extradicional se apoia. 7. Crime de uso de documento falso não punível autonomamente em virtude do princípio da consunção ( CP, art. 307, § único). 8. Simples posse de documento falso considerada atípica pela legislação pátria e que não enseja deferimento do pedido de extradição. 9. Com base na promessa de reciprocidade em que se apoia o presente pedido de extradição, a República Federal da Alemanha deverá assegurar a detração do tempo que o extraditando tenha permanecido preso no Brasil por força do pedido formulado. 10. Extradição deferida em parte.

( Ext 1183, Relator (a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 24/06/2010, DJe-164 DIVULG 02-09-2010 PUBLIC 03-09-2010 EMENT VOL-02413-01 PP-00195 LEXSTF v. 32, n. 381, 2010, p. 368-389)

O delito de uso de documento falso pressupõe a efetiva utilização do documento, sponte propria, ou quando reclamado pela autoridade competente, não sendo, portanto, razoável, imputar ao paciente conduta delituosa consistente tão só na circunstância de tê-lo em sua posse ( HABEAS CORPUS Nº 145.500 – RS).

Na lição de Julio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini (Manual de direito penal, 22ª edição, volume III, pág. 246) a conduta típica é fazer uso, ou seja, usar, utilizar o documento material ou ideologicamente falso, como se fosse autêntico ou verídico. Como ainda ensinou Nelson Hungria, “é o emprego ou tentativa de emprego de tal documento como atestado ou meio probatório. De toda sorte, é indispensável que seja empregado o documento falso em sua específica destinação probatória. Não basta “que saia ele da esfera individual íntima do agente, iniciando uma relação qualquer com outra pessoa ou com a autoridade, de modo que determine efeitos jurídicos. Na lição de Heleno Fragoso (Lições de direito penal, 3ª edição, volume III, pág. 372) “o simples reconhecimento de firma em documento ideologicamente falso, é mero ato preparatório de uso. Este deve ser reconhecido tendo-se em vista a destinação probatória do documento, consumindo-se quando o escrito se torna acessível à pessoa a que visa iludir, possibilitando o conhecimento do mesmo.”

É indispensável para a caracterização do delito o uso efetivo. Não basta a mera alusão do documento e não há crime também: se o documento foi encontrado em revista policial ou em decorrência de prisão do portador (RT 438/361, 488/333, 517/277, JTJ 168/312, 179/301; RF 213/368). Não há crime se o portador foi forçado pela autoridade a exibi-lo (RT 322/89, 445/350, 527/341, 541/369, 580/345, 630/301; RJTJESP 58/396, 61/398).

Objetos materiais do delito são os documentos falsos referidos nos artigos 297 a 302 e assim o uso de documento ideologicamente falso configura o ilícito quando o agente conheci-lhe o falso conteúdo (RTFR 56/180). Faltando o documento capaz de configurar o falso, impossível dar-se como tipificado o uso.

Tratando-se de infração que deixa vestígios, sendo necessária a prova da falsidade material, exige-se o exame do corpo de delito direto, o qual somente pode ser suprimido pelo indireto quando sua realização for absolutamente impossível (RJTJESP 45/322).

O tipo subjetivo é o dolo na vontade de usar o documento falso, sendo indispensável que o agente tenha autoria da falsidade. O erro, a boa-fé do usuário, exclui o dolo.

Há divergência quando há o uso de documento pelo próprio falsificador. A primeira corrente á a que, neste caso, responderá o agente pelo crime de falso, sendo a utilização de documento fato posterior não punível, exaurimento do primeiro delito (RT 285/176, dentre outros). Para outros há os que entendem que o uso é crime-fim, denunciando a maior audácia do agente, devendo absorver a anterior falsificação (RT 191/111, dentre outros).

No que concerne ao concurso entre a falsidade do documento e seu uso, assim se entendeu:

HABEAS CORPUS – FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO – FATO DELITUOSO, QUE, ISOLADAMENTE CONSIDERADO, NÃO OFENDE BENS, SERVIÇOS OU INTERESSES DA UNIÃO FEDERAL, DE SUAS AUTARQUIAS OU DE EMPRESA PÚBLICA FEDERAL – RECONHECIMENTO, NA ESPÉCIE, DA COMPETÊNCIA PENAL DA JUSTIÇA ESTADUAL PARA O PROCESSO E JULGAMENTO DO CRIME TIPIFICADO NO ART. 297 DO CP – USO POSTERIOR, PERANTE REPARTIÇÃO FEDERAL, PELO PRÓPRIO AUTOR DA FALSIFICAÇÃO, DO DOCUMENTO POR ELE MESMO FALSIFICADO – “POST FACTUM” NÃO PUNÍVEL – CONSEQÜENTE FALTA DE COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL, CONSIDERADO O CARÁTER IMPUNÍVEL DO USO POSTERIOR, PELO FALSIFICADOR, DO DOCUMENTO POR ELE PRÓPRIO FORJADO – ABSORÇÃO, EM TAL HIPÓTESE, DO CRIME DE USO DE DOCUMENTO FALSO ( CP, ART. 304) PELO DELITO DE FALSIFICAÇÃO DOCUMENTAL ( CP, ART. 297, NO CASO), DE COMPETÊNCIA, NA ESPÉCIE, DO PODER JUDICIÁRIO LOCAL – PEDIDO INDEFERIDO.

– O uso dos papéis falsificados, quando praticado pelo próprio autor da falsificação, configura “post factum” não punível, mero exaurimento do “crimen falsi”, respondendo o falsário, em tal hipótese, pelo delito de falsificação de documento público ( CP, art. 297) ou, conforme o caso, pelo crime de falsificação de documento particular ( CP, art. 298). Doutrina. Precedentes (STF).

– Reconhecimento, na espécie, da competência do Poder Judiciário local, eis que inocorrente, quanto ao delito de falsificação documental, qualquer das situações a que se refere o inciso IV do art. 109 da Constituição da Republica.

– Irrelevância de o documento falsificado haver sido ulteriormente utilizado, pelo próprio autor da falsificação, perante repartição pública federal, pois, tratando-se de “post factum” impunível, não há como afirmar-se caracterizada a competência penal da Justiça Federal, eis que inexistente, em tal hipótese, fato delituoso a reprimir.

(HC n.º 84.533-9, Relator o Ministro Celso de Mello, DJE de 30.6.2004, sem destaques no original).

*É procurador da República aposentado com atuação no RN.

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