Um delito contra a paz pública

Foto: AMANDA PEROBELLI/REUTERS

Por Rogério Tadeu Romano*

Em meio ao sentimento de consternação com a tragédia que aflige a população do Rio Grande do Sul, surgiu um rancor inexplicável. Um sentimento de ódio buscando espalhar “fake news” para jogar a população vitimada contra as autoridades federais, estaduais e municipais que se irmanaram e vêm envidando todos os esforços para minorar o sofrimento da população afligida.

Trata-se de uma conduta que fere a paz pública e necessita ser objeto de tipificação penal.

O projeto de Lei n º 9.554, de 2018 tipifica no artigo 287-A do CP o crime de divulgação de informação falsa – fakenews, correndo perante a Câmara dos Deputados.

Ali se diz¨

Art. 1º O Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte art. 287-A: Art. 287-A – Divulgar informação ou notícia que sabe ser falsa e que possa modificar ou desvirtuar a verdade com relação à saúde, segurança pública, economia ou processo eleitoral ou que afetem interesse público relevante. Pena – detenção, de um a três anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave. § 1º Se o agente pratica a conduta prevista no caput valendo-se da internet, redes sociais ou outro meio que facilite a disseminação da informação ou notícia falsa: Pena – reclusão, de dois a quatro anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave. § 2º A pena aumenta-se de um a dois terços se o agente divulga a informação ou notícia falsa visando obtenção de vantagem para si ou para outrem.

Por sua vez, o PL 3.813/2021 altera o Código Penal ( Decreto-Lei 2.848, de 1940) para incluir entre os crimes contra a paz pública “criar ou divulgar notícia que sabe ser falsa para distorcer, alterar ou corromper gravemente a verdade sobre tema relacionado à saúde, à segurança, à economia ou a outro interesse público relevante”.

A pena prevista para esse crime é de detenção de seis meses a dois anos e multa, se o fato não constituir crime mais grave. O texto prevê ainda que a pena seja aumentada de um a dois terços, se o agente criar ou divulgar a notícia falsa visando a obtenção de vantagem para si ou para outra pessoa, como acentuou a Agência Senado.

Não faltam, pois, iniciativas para o tema.

Trata-se de crime contra a paz pública, de natureza formal, exigindo o dolo como elemento do tipo. É crime de perigo, exigindo-se um dano potencial à sociedade.

Transcrevo importante lição de Julio Fabbrini Mirabete e de Rento N. Fabbrini (Manual de direito penal, volume III, 22ª edição, página 163) quando disseram que ´’a vida em sociedade só é possível quando haja convivência harmônica entre as pessoas e é afastado o sentimento de insegurança ocasionado por atos antissociais. É necessário, portanto, que o ordenamento jurídico preveja uma disciplina das atividades individuais, com restrições dirigidas especialmente a certos fatos que atinjam diretamente a paz e a tranquilidade públicas. Não basta a tutela legal oferecida com a incriminação de certas condutas que atingem materialmente o cidadão ou a própria sociedade; é indispensável que se evitem fatos causadores de alarme, intranquilidade, insegurança social.”

A propaganda contra a saúde, a segurança pública e a disseminação de notícias falsas podem adentrar nas lindes do ilícito aqui tratado.

As redes sociais quando utilizada por pessoas mal intencionadas é um campo aberto e livre para divulgar mentiras, caluniar e disseminar mentiras.

Esse ilícito demonstra perversão de ver a notícia falsa expandida nas redes sociais em uma conduta nociva à sociedade.

Como acentuou Demétrio Magnoli, em artigo publicado na Folha, em 15 de fevereiro de 2020, no início, mais de uma década atrás, tudo se resumia a blogueiros de aluguel recrutados por partidos políticos para o trabalho sujo na rede. A imprensa, ainda soberana, decidiu ignorar o ruído periférico. Hoje, o panorama inverteu-se: a verdade factual sucumbe, soterrada pela difusão globalizada de fake news.

Prosseguiu Demétrio Magnoli ao dizer que os jornais converteram-se em anões na terra dos gigantes da internet. Nos EUA, entre 2007 e 2016, a renda publicitária obtida pelos jornais tombou de US$ 45,4 bilhões para US$ 18,3 bilhões. Em 2016, o Google abocanhava cerca de quatro vezes mais em publicidade que toda a imprensa impressa americana —e isso sem produzir uma única linha de conteúdo jornalístico original.

O novo sistema, baseado na elevada rentabilidade da fraude, descortinou o caminho para a abolição da verdade factual na esfera do debate público.

A fabricação de fake news tornou-se parte crucial das estratégias de Estados, governos, organizações terroristas e supremacistas. A China, que prioriza o público interno, e a Rússia, que se dirige principalmente à opinião pública europeia e americana, são atores centrais nesse palco.

As megacorporações de tecnologia, donas das plataformas, estão no âmago da questão. Algoritmos viciados, sistemas de segurança falhos, vazamento de dados de usuários, o lucro estratosférico e a falta de investimentos em conter fake news.

É o poder da mentira.

Lança-se a mentira e boa parte das pessoas sabe que são falsas, mas leem e acreditam nelas e a replicam.

Está feito o câncer que se prolifera tal como um tecido canceroso atingido todo o organismo social.

Como se lê do artigo fake news: uma verdade inquietante, Luis Augusto de Azevedo:

“A liberdade de expressão, uma conquista da balzaquiana democracia brasileira, se tornou a trincheira de quem acredita que pode falar ou escrever o que quiser sem ter consequências. Pessoas ou grupos se utilizam do artigo 5º da Constituição como escudo para difundir fake news.

O tema se fortifica ainda mais quando a propagação de informações deturpadas e a utilização de contas inautênticas chegam à cúpula do poder.

A praga da desinformação é brutal e causa prejuízos incalculáveis. Não há, porém, vacina para esse mal: A tentativa de legislar.”

Em janeiro de 2018 entrou em vigor na Alemanha uma nova legislação obrigando redes sociais com mais de 2 milhões de membros a removerem em até 24 horas conteúdos apontados por usuários como impróprios, como discursos de ódio e notícias falsas. A empresa que não atender à exigência pode ser multada em até 50 milhões de euros.

No presente, urge a regulamentação da matéria.

Até aqui tem-se a Lei das Contravenções Penais:

Art. 41. Provocar alarma, anunciando desastre ou perigo inexistente, ou praticar qualquer ato capaz de produzir pânico ou tumulto:

Pena – prisão simples, de quinze dias a seis meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.

Trata-se de contravenção que diz respeito à paz pública.

Os que produzem as Fake News procuram se agasalhar na temática fundamental das garantias trazidas pela Constituição de 1988.

A liberdade de opinião resume a própria liberdade de pensamento em suas várias formas de expressão. Daí que a doutrina a chama de liberdade primária e ponto de partida de outras, sendo a liberdade do indivíduo adotar a atitude intelectual de sua escolha, quer um pensamento íntimo, quer seja a tomada de uma posição pública; liberdade de pensar e dizer o que se creia verdadeiro, como dizia José Afonso da Silva (Direito Constitucional positivo, 5ª edição, pág. 215).

De outro modo, a liberdade de manifestação de pensamento constitui um dos aspectos externos da liberdade de opinião. A Constituição Federal, no artigo 5º, IV, diz que é livre a manifestação de pensamento, vedado o anonimato, e o art. 220 dispõe que a manifestação do pensamento, sob qualquer forma, processo ou veiculação, não sofrerá qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição, vedada qualquer forma de censura de natureza política, ideológica e artística.

A liberdade de manifestação de pensamento que se dá entre interlocutores presentes ou ausentes, tem seu ônus, tal como o de o manifestante identificar-se, assumir, de forma clara, a autoria do produto do pensamento manifestado, para, em sendo o caso, responder por eventuais danos a terceiros.

Não se pode obter refúgio nas garantias individuais impostas pela Constituição-cidadã de 1988 para cometer crimes.

O potencial devastador e criminoso dessa rede que produz notícias falsas é impressionante.

É crucial para nosso modelo democrático uma moderna legislação que proteja a sociedade desses dolorosos perigos.

Como explicou Gustavo Binenbojm (O dilema das Fake news, in O Globo, em 29 de julho do corrente ano) “fake news são mensagens falsas, criadas por meios fraudulentos, com o objetivo de causar danos a pessoas ou instituições. À falta de tradução mais adequada, prefiro chamá-las de notícias fraudulentas, já que a falsidade é apenas um de seus elementos. O uso de perfis e contas falsas, mecanismos de inteligência artificial e robôs que impulsionam maciçamente mentiras deletérias deu escala e relevância ao fenômeno, capaz de comprometer a lisura das escolhas individuais e coletivas.”

Há um poderoso lobby que tem por desiderato impedir que no Brasil haja uma regulamentação da matéria.

Segundo a Agência Senado, estão em análise diversas propostas para alterar a legislação em vigor ou para criar leis com o objetivo de tornar crime a criação e a distribuição de notícias falsas na internet e nas redes sociais, e definir punições.

Um desses projetos pretende impedir a publicação de anúncios em sites que divulgam desinformação e discurso de ódio (PL 2.922/2020). Outra proposta determina que autoridades públicas que divulgarem fake news poderão ter que responder por crime de responsabilidade (PL 632/2020).

Segundo especialistas o Projeto de Lei 2.630/2020, apresentado pelo Senador Alessandro Vieira, que Institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, é a mais bem construída proposta para o enfrentamento da temática, até o presente momento. Já aprovado no Senado e em trâmite na Câmara dos Deputados, o projeto prevê a proibição da criação de contas falsas, de contas robotizadas (comandadas por robôs), devendo as plataformas digitais desenvolverem mecanismos que limitem o número de contas geridas pelo mesmo usuário. Além disso, a proposta legislativa impões também que estes provedores de serviços online, tais como redes sociais e aplicativos de mensagens, limitem o número de envios de um mesmo conteúdo a usuários e grupos.

Até quando conviveremos com essa inércia sendo reféns da mentira que afronta a paz pública?

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

 

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