Por Rogério Tadeu Romano*
I – O FATO
O ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, rebateu as declarações do presidente do Superior Tribunal Militar (STM), Joseli Parente Camelo, para quem a reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos é “completamente desnecessária” e seria equivalente a “olhar o país pelo retrovisor”, como revelou o portal do jornal O Globo, em 26.11.23.
“Os trabalhos da comissão não foram finalizados. Diversas famílias ainda aguardam respostas sobre o destino de seus entes desaparecidos”, respondeu o ministro dos Direitos Humanos. “Desnecessário é achar que podemos virar a página da história de um passado de dor, simplesmente varrendo a ‘sujeira’ para debaixo do tapete”, afirmou Almeida à equipe da coluna.
Disse ainda o ministro:
“Não estamos lidando com o passado, não queremos prestar contas ao passado: estamos prestando contas ao futuro do país. Estamos estabelecendo uma forma de garantir a justiça e a memória. A memória depende dos atos de reparação simbólica.”
A Comissão Nacional da Verdade, observa Almeida, apontou que houve 243 desaparecidos políticos, dos quais apenas 35 foram identificados.
II – A COMISSÃO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS
A Lei nº 9140, de 4 de dezembro de 1995, reconheceu como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.
Dessa forma o Estado brasileiro reconheceu a responsabilidade no desaparecimento forçado de 136 pessoas relacionadas no Anexo I da Lei.
A Lei previu ainda a criação de uma Comissão Especial, que foi instituída pelo Decreto de 18 de dezembro de 1995, com as seguintes atribuições:
I – Proceder ao reconhecimento de pessoas:
- a) desaparecidas, não relacionadas no Anexo I da Lei;
- b) que, por terem participado ou por terem sido acusadas de participação em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, tenham falecido, por causa não naturais, em dependências policiais ou assemelhadas.
II – localização de corpos de pessoas desaparecidas no caso de existência de indícios quanto ao local em que possam estar depositados.
O Estado brasileiro reconhecia seus crimes em um período sombrio durante o qual o regime de exceção instaurado em 1964 combatia a oposição sequestrando, torturando, exilando, cassando e caçando militantes e seus familiares. Tais crimes incluem violações dos direitos humanos, estabelecidos por leis nacionais e tratados ou declarações internacionais dos quais o Brasil é signatário (Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes em 1984, Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, por exemplo).
Mister que se lembre que esse órgão mencionado não é órgão do aparelho do governo, mas órgão de Estado que foi criado para apurar delitos cometidos durante a ditadura militar.
Na busca da verdade, a Comissão de Mortos e Desaparecidos busca investigar e avaliar o que houve naquele triste período antidemocrático da história do Brasil e determinar se houve ou não ofensa a direitos humanos, determinando, quando necessário, o seu quantum para efeito de liquidação dos prejuízos.
III – CASO RUBENS PAIVA
Nesse contexto é por demais importante lembrar o caso Rubens Paiva.
Veja-se o caso do desaparecimento do ex-deputado federal Rubens Beyrodt Paiva, dado como desaparecido em 20 de janeiro de 1971, teve sua casa invadida por pessoas armadas de metralhadoras que, sem apresentar qualquer mandado de prisão, numa ilegalidade flagrante, se diziam da Aeronáutica. Teve Rubens Paiva tempo de se arrumar e saiu de terno e gravata, como era comum o traje àquela época, guiando o próprio carro, cuja recuperação posterior seria a prova de que foi preso.
Discute-se a questão da prescrição com relação aos chamados crimes contra a humanidade.
Para a Corte Interamericana estamos diante de crimes imprescritíveis.
É o que ocorre com relação à Lei de Anistia, que, como bem alertou Dalmo Dalari, não se aplica aos crimes contra a humanidade, que não ficam sujeitos à prescrição.
Outra deve ser a estratégia a ser levada nas ações penais ajuizadas contra torturas naquele triste período da história nacional, levantando a premissa de que os crimes de ocultação envolvendo militantes, que desapareceram durante o chamado regime militar é crime permanente, que se protrai com o tempo.
No entanto, por unanimidade, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu manter suspensa a ação penal contra cinco militares acusados de envolvimento na morte do ex-deputado federal Rubens Paiva, em janeiro de 1971, durante a ditadura militar.
O julgamento foi iniciado em maio e encerrado, no dia 15 de setembro de 2020, com voto do ministro Felix Fischer – que, após pedir vista do processo, acompanhou o relator, ministro Joel Ilan Paciornik. O entendimento dos ministros do Superior Tribunal de Justiça foi de que a Lei da Anistia impede a punição dos militares em razão da prescrição do caso.
Na tentativa de trancar o processo, as defesas dos militares acionaram o Superior Tribunal de Justiça em 2015. O principal ponto de divergência entre os ministros, que impedia uma definição sobre o pedido, era sobre a o caráter permanente do crime de ocultação de cadáver, nunca encontrado. Por fim, a Quinta Turma entendeu que a ocultação, praticada há 49 anos, não pode ser dotada de algum viés temporário, conforme alegava a acusação.
Para a Quinta Turma do STJ, a ação de ocultar cadáver prevista no artigo 211 do Código Penal só é permanente quando se depreende que o agente responsável espera, em um momento ou outro, que o corpo, objeto jurídico do crime, venha a ser encontrado. Quando a ocultação praticada há 49 anos ainda não foi desvelada, não há viés temporário. Não pode, portanto, ser classificada como permanente.
O tema tangenciou a análise do recurso em Habeas Corpus pela 5ª Turma, em dezembro de 2018, e foi definido em julgamento dos embargos de declaração.
Segundo o relator, da interpretação da doutrina somente é possível afirmar que a ação de “ocultar cadáver” é permanente quando se depreende que o agente responsável espera, em um momento ou outro, que o corpo, objeto jurídico do crime, venha a ser encontrado.
“Dentro das circunstâncias fáticas delineadas, não é de se deduzir que a ocultação, excluindo a hipótese de destruição, como pretende a denúncia, praticada há 49 anos seja dotada de algum viés temporário. Não pode, portanto, a conduta ser classificada como permanente, mas instantânea de efeitos permanentes”, concluiu.
O ministro Felix Fischer chegou a propor Questão de Ordem para suspender o julgamento do recurso até decisão definitiva do STF na reclamação. A 5ª Turma, no entanto, entendeu que não haveria prejuízo na análise.
Data venia, a respeitável decisão nega vigência ao disposto no Código Penal, quanto ao crime permanente de ocultação de cadáver e nega eficácia à convenção internacional que proclama ter havido, na hipótese, um crime contra a humanidade.
IV – PALAVRAS FINAIS
No Brasil, o seu passado é incerto.
Muito do que ocorre hoje em um país polarizado, é reflexo de problemas não resolvidos do passado. Ao contrário da Argentina, a sociedade, por seus órgãos de estado, não teve condições de apurar e responsabilizar aqueles que praticaram crimes de lesa-humanidade.
Personagens diversos que participaram de crimes de tortura e morte morreram sem sofrer as consequências por seus atos.
Vivermos como reféns, no presente, de um passado sombrio que nos legou o ódio e a desunião, uma sociedade polarizada.
Disse bem o ministro Silvio Almeida:
“A verdade e a memória são pilares da democracia, assim como são os eixos de fundação da Comissão Especial e fundamentam o compromisso desta em enfrentar a violência do passado e garantir a não-repetição das violências no presente e no futuro.”
Afinal, “O passado nunca está morto. Nem sequer é passado”, já dizia William Faulkner.
*É procurador da república aposentado com atuação no RN.
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