Uma necessária investigação

irmãos Miranda são peças chave no escândalo da Covaxin (Foto: Jefferson Rudy/Ag. Senado)

Por Rogério Tadeu Romano   

I – O FATO   

A Folha de São Paulo, em sua edição de 28 de junho de 2021, noticiou que “ao comentar com apoiadores nesta segunda-feira (28) a denúncia de irregularidades na compra da vacina Covaxin, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) disse que não tem como saber o que acontece nos ministérios de seu governo.”   

Em entrevista à Folha publicada horas antes, o deputado Luis Miranda (DEM-DF) afirmou que o esquema de corrupção do Ministério da Saúde pode ser “muito maior” do que o caso Covaxin, investigado pela CPI da Covid do Senado e pela Procuradoria.   

Miranda disse que seu irmão, Luis Ricardo Miranda, chefe do departamento de importação do ministério, vê indícios de operação “100% fraudulenta” para a compra de testes de Covid.   

“Se existir algo realmente ilegal, não é só nessa vacina [Covaxin], é na pasta toda. O presidente [Jair] Bolsonaro demonstra claramente que não tem controle sobre essa pasta”, disse o deputado neste domingo (27).   

Ele [o deputado Luis Miranda] que apresentou [informações sobre a compra da vacina], eu nem sabia como é que estavam as tratativas da Covaxin porque são 22 ministérios. Só o ministério do Rogério Marinho [Desenvolvimento Regional] tem mais de 20 mil obras. [O Ministério da Infraestrutura], do Tarcísio [de Freitas] não sei, deve ter algumas dezenas, centenas de obras.”   

Não convence a explicação dada.    

Foi apresentada por senadores noticia-crime ao STF pedindo fosse investigada a prática de prevaricação por parte do presidente da República.   

II – O ARTIGO 76 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL   

O presidente da República tem obrigação de saber de tudo o que acontece em sua administração, principalmente sobre fatos graves, que envolvam delitos criminais, principalmente se algo lhe é avisado ou noticiado.    

Isso porque os ministros não governam. Quem governa é o presidente da República auxiliado pelos ministros de Estado. O presidente da República exerce o poder executivo, em um sistema presidencialista.    

Dita o artigo 76 da Constituição Federal:    

Art. 76. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado.   

A competência do presidente da República distingue, desde logo, a natureza do regime de governo. Se o presidente, realmente, governa, sendo apenas auxiliado pelos ministros de Estado, o governo é presidencial; se, ao contrário, o presidente, somente, preside, e quem governa são os ministros, por delegação do Parlamento, o governo é parlamentar.    

Dentro do presidencialismo, as atribuições do presidente são as seguintes: a) representar o país no interior e no exterior; b) enviar e receber embaixadores; c) negociar tratados e convenções; d) exercer o supremo comando das Forças Armadas; e) a iniciativa das leis; f) o poder regulamentar; g) veto relativo; h) nomear livremente, ou não, os ministros de Estado (nos Estados Unidos com aprovação do Congresso).    

Constituição consagrou um Executivo monocrático, cumprindo ao presidente da República, auxiliado pelos ministros do Estado, exercer as funções de chefe de Estado e das de chefe de Governo, sem qualquer ingerência do Congresso Nacional, para ser investido no cargo e nele permanecer.    

O presidente da República deverá chefiar a administração interna dos órgãos que lhes são vinculados, bem como as Forças Armadas.    

As funções de chefe de Estado estão estipuladas no artigo 84, VII, VIII, XIX.    

As funções de chefe de governo do presidente da República estão listadas no artigo 84IIIIIIIVVVIIIX e XXVII da Constituição.    

Tem-se que o ministro de Estado, de acordo com o comando constitucional, é mero auxiliar do presidente da República, competindo-lhe as atribuições estabelecidas no artigo 87parágrafo único, inciso I, inciso II, inciso III e inciso IV da Constituição Federal.   

III – A REFERENDA MINISTERIAL   

Quanto a referenda ministerial disposta no inciso I, do artigo 87, julgado do STF, da lavra do ministro Celso de Mello, no MS 22.706-1, medida liminar, DJ 1, de 5 de fevereiro de 1997, pág. 1223:    

A referenda ministerial, que não se reveste de consequências de ordem processual, projeta-se, quanto aos seus efeitos, numa dimensão estritamente institucional, qualificando-se, sob tal perspectiva, como causa geradora de corresponsabilidade político-administrativa dos ministros de Estado (…). Cumpre ter presente, por isso mesmo, no que concerne à função da referenda ministerial, que esta não se qualifica com requisito indispensável de validade dos decretos presidenciais.   

 [MS 22.706 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 23-1-1997, dec. monocrática, DJ de 5-2-1997.]   

Na opinião de Pontes de Miranda nos Comentários à Constituição de 1967, tomo III, , editora Revista dos Tribunais, às folhas 366, o qual trazemos no original, conforme se segue: A subscrição ou referendação dos atos do Presidente da República por todos, alguns ou, pelo menos, um dos seus Ministros, é exigência constitucional. O ato não subscrito é ato incompleto: não entra no mundo jurídico. Não se trata de prática costumeira, nem de recomendação: mas de ius cogens. Há exceções oriundas da natureza das coisas, a renúncia e o pedido de licença, que são personalíssimos. Convém que frisemos: o ato não subscrito não é nulo por ser infringente da Constituição: é ato do Presidente da República que se não juridiciza, isto é, não entra no mundo jurídico.   

Por outro lado, trago a opinião do ministro Alexandre de Moraes, “in” Direito Constitucional, 17ª edição, São Paulo: Atlas. 2005, onde, às folhas 432, entende que a falta do referendo do Ministro de Estado aos atos e decretos presidenciais gera nulidade desses.    

O referendo do Ministro de Estado ao ato presidencial gera por parte deste, responsabilidade solidária com aquele.   

O que é certo é que os ministros não governam em um sistema presidencialista. Eles auxiliam o presidente a governar.    

Conclusão é que é censurável o presidente da República delegar a um ministro o governo do país.    

III – A CORRUPÇÃO   

Volto-me ao fato narrado pelos irmãos Miranda ao Ministério Público e a CPI da covid-19 envolvendo possíveis corrupções envolvendo compra de vacinas.    

O presidente deve agir e conhecendo do fato tomar as providências cabíveis.   

Não adianta dizer que nada foi pago? Ora, trata o artigo 317 do Código Penal do crime de corrupção passiva.  

O núcleo do tipo é solicitar, receber ou aceitar vantagem indevida, mesmo fora da função ou antes de assumi-la, desde que em virtude da função.  

O ato funcional, de natureza comissiva ou omissiva, sobre o qual versa a venalidade pode ser lícito ou ilícito.  

É crime formal. Com isso quero dizer que é dispensável saber se  houve ou não pagamento.  

A conduta ilícita envolve qualquer tipo de recompensa, seja pecuniária ou não. Poderá consistir além na prática de favores.   

O crime é de natureza formal. Será consumado com a simples solicitação de vantagem indevida, com o recebimento desta, ou com a aceitação da promessa de tal vantagem., sem que se exija outro resultado. Dada a natureza das ações incriminadas, como explicou Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal, volume II, Parte Especial, 5ª edição, pág. 419 e 420), a tentativa dificilmente poderá configurar-se, mas não é inadmissível. Na forma de solicitação, independe o crime de seu acolhimento (a ação aqui parte do próprio corrompido), sendo bastante que o pedido chegue a conhecimento do interessado. Nos casos de recebimento e de promessa, há um atendimento e um acordo entre o agente e o corruptor (que será, por sua vez, agente da corrupção ativa).  

IV – A PREVARICAÇÃO   

Teria o presidente cometido prevaricação?    

Prevaricar é a infidelidade ao dever de oficio. É o descumprimento de obrigações atinentes à função exercida.  

Na forma do artigo 319 do Código Penal, de 3 (três) maneiras o agente poderá realizar o delito. Duas delas de natureza omissiva (retardando ou omitindo o oficio). Outra, de feição comissiva, praticando ato contrário a disposição expressa de lei.  

O elemento subjetivo é o dolo genérico ou especifico. O primeiro consiste na vontade livremente endereçada à realização de qualquer das condutas referenciadas na norma. O dolo específico consiste na finalidade de o funcionário satisfazer interesse ou sentimento pessoal.  

Se há interesse pecuniário o crime é de corrupção passiva.  

Na forma comissiva pode ocorrer tentativa.  

O crime é de menor potencial ofensivo.  

V – A CONDESCENDÊNCIA CRIMINOSA   

Por outro lado, se houve ou não alguma condescendência criminosa por parte do presidente da República em deixar, por indulgência, de responsabilizar subordinado que teria cometido infração, no exercício do cargo, ou, quando lhe falte competência, não levar o fato a conhecimento de autoridade competente (artigo 320 do CP) isso é matéria que poderá ser objeto de apuração durante as investigações. Esse crime, segundo Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, IX, 360), se consuma se “o superior deixar de diligenciar imediatamente no sentido da responsabilidade do infrator, salvo motivo de força maior ou plenamente justificado”. Exige-se o dolo genérico. A pena é levíssima: detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, que poderá ser objeto de transação penal.  

VI – O GRAVE PROBLEMA DA CONIVÊNCIA, A PARTICIPAÇÃO POR OMISSÃO E O DOMÍNIO DO FATO   

Se há ilícitos de corrupção cometidos em um ministério e ele sabe e não age está em conivência.    

Na conivência, a inércia do sujeito não representa objetiva cooperação para o delito nem ele deseja cooperar ainda que, de forma íntima, espere que o delito seja executado. Na cumplicidade omissiva, a inércia deve significar alguma cooperação, em congruência com o dolo que deve ser eventual.   

Mas haveria em ambas as hipóteses a inexistência de um dever jurídico de impedir o resultado. Seria crível que presidente da República veja um gestor que dirija um ministério a exercer atos criminosos à frente da instituição, alegando que não pode tomar conta de mais de vinte ministério? Haveria uma cumplicidade por omissão, no mínimo? Haveria uma colaboração em congruência com o dolo que pode ser eventual? Ora, se o chefe do poder executivo federal tem um dever jurídico de impedir um resultado criminoso numa empreitada de que tem conhecimento, devendo impedir o resultado que venha lesar a administração? Penso que sim. Ele tem o dever ético e mais ainda legal de agir, no mínimo tomando as devidas providências para evitar o dano à Administração.    

Essa cumplicidade não é coautoria, a menos que tenha o domínio do fato.    

É a dolosa colaboração de ordem material objetivando o cometimento de um crime doloso. É o famoso caso do vigia, que fica de tocaia, observando a execução do crime pelos coautores, que matam ou roubam ou furtam.   

É a dolosa colaboração de ordem espiritual objetivando o cometimento de um crime doloso.   

Por determinação se compreende a conduta que faz surgir no autor direto a resolução que o conduz à execução. Por instigação, propriamente dita, temos a conduta que faz reforçar e desenvolver no autor direto a resolução ainda que não concretizada, mas preexistente.   

Vem a noção do domínio do fato que é, pois, constituída por uma objetiva disponibilidade da decisão sobre a consumação ou desistência do delito, que deve ser conhecida pelo agente, isto é, dolosa. Nessa forma de pensar o autor será aquele que, na concreta realização do fato típico, consciente o domina mediante o poder de determinar o seu modo e, inclusive, quando possível, de interrompê-lo. Na lição de Nilo Batista(Concurso de Agentes) “autor é quem tem o poder de decisão sobre a realização do fato. E não só o que executa a ação principal, o que realiza a conduta típica, como também aquele que se utiliza de uma pessoa que não age com dolo ou culpa(autoria mediata). O agente tem o controle subjetivo do fato e atua no exercício desse controle.”   

Segundo Paulo Quezado, os requisitos objetivos básicos que norteiam a possibilidade de aplicação da Teoria do Domínio do Fato seriam: presença de estrutura de poder com organização hierárquica; fungibilidade dos executores; prova da emissão de ordem de execução delitiva do dominador para os dominados; e prova da ciência e do controle sobre a ação dos executores.   

Ele tem por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância.  

VII – O CRIME COMISSIVO POR OMISSÃO E O PAPEL DA PGR   

Haveria um crime comissivo por omissão? A análise do elemento subjetivo, nos crimes comissivos por omissão, não é feita entre a omissão e o resultado, mas apenas no que concerne à própria omissão, ou seja,” compõe-se o dolo tão-somente do elemento intelectual de consciência da omissão e da capacidade de atuar para impedir o evento “(PRADO, Luiz Régis. Algumas Notas sobre a Omissão Punível apud Revista dos Tribunais, vol. 872, jun./2008. São Paulo: RT, 2008, p. 433). Serão necessários, contudo, a presença de alguns pressupostos, conforme elenca Cezar Bitencourt: a) poder agir; b) evitabilidade do resultado e c) dever de impedir o resultado.   

VIII – A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO   

Será caso de representação à Procuradoria Geral da República para investigar o fato em todas as circunstâncias de materialidade e autoria. Como titular da ação penal decidirá se é caso de crime de prevaricação, condescendência criminosa, cumplicidade por omissão ou ainda coautoria , se há delito comissivo por omissão.  Poderá, por fim, pedir o arquivamento das investigações por falta de provas, à luz do artigo 28 do CPP, manifestação devidamente fundamentada.   

Vem, no entanto a informação de que o vice-procurador-geral da República já apresentou manifestação ao STF.   

Segundo o site do jornal O Globo, em 29 de junho de 2021 “a Procuradoria-Geral da República (PGR) pediu à ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber que paralise um pedido de abertura de inquérito e denúncia contra o presidente Jair Bolsonaro feito por senadores da CPI da Covid, sob acusação do crime de prevaricação, até que os trabalhos da comissão sejam concluídos.  

A manifestação, assinada pelo vice-procurador-geral da República Humberto Jacques de Medeiros, aponta que não devem haver investigações concorrentes e que a apuração feita pelos senadores tramita “com excelência”. A PGR também diz que não seria possível apresentar imediatamente uma denúncia contra Bolsonaro antes mesmo da abertura de inquérito, como solicitaram os senadores.”  

Data vênia, a argumentação apresentada abrange os conceitos de conveniência e oportunidade. Ora, em sede de atuação do Parquet vigora o princípio da obrigatoriedade. Não há que falar em discricionariedade.   

Na linha de Hely Lopes Meirelles(Direito Administrativo Brasileiro, 19ª edição, pág.150), a discricionariedade do ato administrativo só existe quando a lei outorga ao administrado o poder de praticá-los “com liberdade de escolha de seu conteúdo, de seu destinatário, de sua conveniência, de sua oportunidade e do modo de sua realização. Tal não ocorre com o poder de investigação do Parquet, onde, embora tenha o membro do Ministério Público ampla liberdade funcional, sua atuação é estreitamente regrada, já que, identificando uma hipótese em que a lei lhe imponha a atuação, não pode abster-se de agir.   

Como disse Hugo Nigro Mazzilli(O Inquérito Civil, 1999, pág. 223) para o Ministério Público, existe antes o dever que o direito de agir; dai se afirmar a obrigatoriedade e a consequente indisponibilidade de sua atuação.   

Não se admite que o Ministério Público, identificando uma hipótese em que a lei lhe imponha o dever de agir, mesmo assim se recuse a fazê-lo: neste sentido a sua ação é um dever.   

A questão de abrir ou não um procedimento, seja no decorrer ou após a CPI, é situação meramente burocrática.   

O Ministério Público Federal deve abrir, diante de notícia – crime, uma investigação. Se novos fatos chegarem a posteriori, poderá requisitar peças da apuração da Comissão Parlamentar de Inquérito. Esta sim, poderia dar notícia ao final dos trabalhos. Mas, alguns senadores resolveram, de pronto, encaminhar a noticia ao Parquet, que, sim, tem obrigação de pronto, dado ao princípio da obrigatoriedade, de agir. Para o Parquet não há discricionariedade na atuação; há obrigatoriedade dela, na medida em que se constitui um dever.   

O Ministério Público não deve atuar por conveniências da vida política, sem querer ser um catalizador de crises. Deve agir assim que entenda que a ordem jurídica foi penalmente ferida.   

A manifestação, assinada pelo vice-procurador-geral da República Humberto Jacques de Medeiros, aponta que não devem haver investigações concorrentes e que a apuração feita pelos senadores tramita” com excelência “. A PGR também diz que não seria possível apresentar imediatamente uma denúncia contra Bolsonaro antes mesmo da abertura de inquérito, como solicitaram os senadores.”  

Não foi esse o entendimento da PGR na época do escândalo do mensalão, em 2006: a Procuradoria investigou o esquema de corrupção ao mesmo tempo que uma CPI avaliava o caso, e a denúncia que ofereceu na época foi até mais dura do que as conclusões da comissão parlamentar. Ou seja, naquela oportunidade a PGR, cuja independência é assegurada pela Constituição, não renunciou às suas atribuições.  

Tão errática postulação do Parquet teve um correto fim.  

Segundo se noticia, a ministra Rosa Weber rejeitou pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR) para aguardar a conclusão da CPI da Covid antes de decidir sobre possível investigação contra o presidente Jair Bolsonaro por prevaricação. Em sua decisão, Rosa fez duras críticas ao posicionamento da PGR, disse que o órgão “desincumbiu-se de seu papel constitucional”, e determinou a devolução do processo para que a equipe do procurador-geral Augusto Aras se manifeste sobre a abertura ou não de investigação. 

“O exercício do poder público, repito, é condicionado. E no desenho das atribuições do Ministério Público, não se vislumbra o papel de espectador das ações dos Poderes da República”, escreveu. 

Isso diz tudo. 

*É procurador da República com atuação no RN aposentado.

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Reportagem especial

Canal Bruno Barreto