Por Rogério Tadeu Romano*
I – O FATO
Dora Kramer, em correta análise, na Folha, em 03.10.23, nos disse:
“Uma ameaça de subversão da ordem institucional ronda o ambiente do Congresso. Recebeu o nome de PEC do equilíbrio, mas o correto seria chamá-la de emenda inconstitucional do desequilíbrio entre os Poderes.
Propõe, em suma, que o Legislativo possa derrubar decisões do Supremo Tribunal Federal. O que não for posição unânime dos ministros poderia simplesmente ser anulado pelos parlamentares.”
O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello criticou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que dá poderes ao Congresso para derrubar decisões da Corte. Para o ex-magistrado, o projeto tem um “espírito autocrático” e é inconstitucional porque fere a separação entre os Três Poderes, segundo noticiou o portal do jornal O Globo.
Ademais, divulgou o site do Estadão interessante reportagem, em 14 de junho de 2022, que abaixo trago à colação:
“A cúpula do Centrão pôs no papel uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que permite aos deputados e aos senadores anularem decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), prerrogativa que o Legislativo não tem hoje. O texto ao qual o Estadão teve acesso dá ao Congresso o poder de revogar julgamentos da mais alta Corte do País sempre que a decisão judicial não for unânime e houver uma alegada extrapolação dos “limites constitucionais.
A intenção do grupo é reverter julgamentos que tenham derrubado leis aprovadas no Congresso ou contrariado bancadas. Os parlamentares poderiam também revisar decisões tomadas pelo Supremo em temas que não são consenso no Legislativo, como, por exemplo, a definição sobre o marco temporal para demarcação de terras indígenas e a criminalização da homofobia. Ambos os casos são citados pelos políticos defensores da PEC como parte do que consideram um “ativismo judicial” da Suprema Corte.”
II – A CORREÇÃO DE DECISÕES JUDICIAIS PELOS OUTROS PODERES
A PEC é certamente inconstitucional.
Para o caso, debruço-me com relação a chamada “correção” de decisões judiciais pelo que acabou sendo pelo Poder Executivo, nas mãos de um ditador.
Isso ocorreu sob a Constituição de 1937, que criou a possibilidade de se suspender mediante ato legislativo, decisão judicial que declarasse inconstitucionalidade de ato normativo. Isso deveria ocorrer através de uma resolução do Parlamento, aprovada por uma maioria qualificada de 2/3 dos votos (artigo 96).
Volto-me às lições do ministro Gilmar Mendes (Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, 2ª edição, páginas 316 e seguintes) quando trouxe lições que abaixo reproduzo.
Segundo Francisco Luiz da Silva (Diretrizes constitucionais do novo Estado Brasileiro, RF v. 72, n. 415/417, pág. 229, janeiro/março de 1938), tal necessidade se justificava com o caráter pretensamente antidemocrático da jurisdição, o que acabava por permitir a utilização do controle das normas como instrumento aristocrático de preservação do poder ou como expressão de um Poder Moderador.
Ora, como é sabido, a chamada faculdade confiada pela Constituição ditatorial de 1937, ao Parlamento, acabou sendo dada ao “ditador”, mediante a edição de decretos-leis ( Constituição de 1937, artigo 180). Confirmada a sua inconstitucionalidade passaria o Supremo Tribunal Federal a reconhecer ipso iure a sua validade, como disse o ministro Gilmar Mendes (obra citada, pág. 320).
Isso estava previsto na chamada Constituição da Polônia, de 23 de abril de 1935.
Sobre isso, ensinou Karl Loewenstein sobre o direito americano (Verfassungsrecht und Verfassungspraxis der Vereinigten Staten, 1959, pág. 429), quando disse, à luz do que ensinou o ministro Gilmar Mendes:
“Um outro mecanismo de limitação do poder da Corte Suprema assenta-se na possibilidade de nulificação dos efeitos da decisão mediante lei de alcance corretivo. Trata-se apenas de casos em que o Congresso manifesta divergência com interpretação conferida à norma pela Corte Suprema. Esse mecanismo não se aplica às hipóteses de declaração de inconstitucionalidade de índole formal ou material. Nesses casos, apenas uma reforma constitucional mostra-se apta a solver o conflito…”
Contudo, como disse Karl Loewenstein, não se cuidou propriamente de “rejeição”da decisão da Corte Suprema (o que representaria a supressão da independência do Poder Judiciário), mas de posterior reforma constitucional resguardando-se íntegra a decisão da Corte Suprema.
Aliás, tem-se como exemplo que, em 1989, relativamente ao caso Texas vs. Jonhson, onde se apreciava o episódio de queima da bandeira nacional, deu-se a tentativa de nulificação da decisão da Corte Suprema pela edição de lei pelo Congresso. Posteriormente, como nos lembrou o ministro Gilmar Mendes, o próprio diploma congressual veio a ser impugnado pela Suprema Corte.
Como bem ensinou o ministro Gilmar Mendes (Controle Concentrado de Constitucionalidade, 2001, pág. 27) “é bem verdade que o novo instituto não colheu manifestações unânimes de repulsa”. Autores como Cândido Motta Filho (A evolução do controle da constitucionalidade das leis no Brasil, RT 73: 246-9, e ainda Francisco Campos (Diretrizes Constitucionais, RF, pág 246 e seguintes) e Alfredo Buzaid (Da ação Direta de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro, 1958, pág. 32) saudaram a inovação.
Lembrou ainda o ministro Gilmar Mendes (obra citada, pág. 28) que “todavia, quando em 1939 o Presidente Getúlio Vargas editou o Decreto-Lei nº 1.564, confirmando textos de lei declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, a reação nos meios judiciários foi intensa.”
No entanto, como ainda informou o ministro Gilmar Mendes, considerou Lúcio Bittencourt (O Controle Jurisdicional, páginas 139 e 140) que a críticas ao ato presidencial não tinham procedência. Lembro que, à época, vivia o Brasil uma ditadura.
Concedeu, porém, Lúcio Bittencourt (obra citada, páginas 139 e 140) que a celeuma suscitada nas oportunidades em que os atos judiciais foram desautorizados, entre nós, “como está a demonstrar como se encontra arraigado em nosso pensamento jurídico o princípio que confere à declaração judicial caráter incontrastável, em relação ao caso concreto”.
Lembro, por fim, que aquela Constituição ditatorial de 1937 proibia, expressamente, ao Judiciário conhecer das questões exclusivamente políticas (artigo 94). O CPC de 1939, nessa linha de pensar, excluiu da apreciação judicial, na via mandamental (mandado de segurança), os atos do Presidente da República, dos ministros de Estado, dos governadores e dos interventores dos Estados (artigo 319).
III – UMA PEC QUE COLOCA EM RISCO O SISTEMA DE FREIOS E CONTRAPESOS
Estaria em risco a teoria do Checks and Balances.
A figura dos “Checks and Balances”, comumente denominada de sistema de freios e contrapesos, torna-se imprescindível para garantir essa independência e limitação dos Poderes. Como pode ser lido:
Eis então a constituição fundamental do governo de que falamos. Sendo o carpo legislativo composto de duas partes, uma prende a outra com sua mútua faculdade de impedir. Ambas estarão presas ao poder executivo, que estará ele mesmo preso ao legislativo. Estes três poderes deveriam formar um repouso ou uma inação. Mas, como, pelo movimento necessário das coisas, eles são obrigados a avançar, serão obrigados a avançar concertadamente. O Espírito das leis. Tradução Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2005).
A Teoria da Separação dos Poderes de Montesquieu foi inspirada em Locke que, também, influenciou significativamente os pensadores norte-americanos na elaboração da Declaração de sua independência, em 1776.
Somente no século XVIII, Montesquieu, autor da obra O Espírito das Leis (1748), que alcançou 22 edições, em 18 meses, sistematizou o princípio com profunda intuição. Coube-lhe a glória de erigir uma doutrina sólida sobre a divisão de poderes.
A primeira Constituição escrita que adotou integralmente a doutrina de Montesquieu foi a da Virgínia, em 1776, seguida por outras, como as de Massachussetts, Maryland, New Hampshire e pela Constituição americana os constitucionalistas norte-americanos, de modo categórico, que a concentração de três poderes num só órgão de governo, representa a verdadeira definição de tirania.:
“Quando na mesma pessoa ou corporação, o poder legislativo se confunde com o executivo, não há mais liberdade. Os três poderes devem ser independentes entre si, para que se fiscalizem mutuamente, coíbam os próprios excessos e impeçam a usurpação dos direitos naturais inerentes aos governados. O Parlamento faz as leis, cumpre-as o executivo e julga as infrações delas o tribunal. Em última análise, os três poderes são os serventuários da norma jurídica emanada da soberania nacional”.
Assim o princípio de Montesquieu, ratificado e adaptado por Hamilton, Madison e Jay, foi a essência da doutrina exposta no Federalist, de contenção do poder pelo poder, que os norte-americanos chamaram sistema de freios e contrapesos.
Sendo assim o Parlamento ao negar a execução de medidas provisórias e decretos da presidência da Republica, quando considerem nocivos aos interesses do país, ou o Judiciário quando aponta inconstitucionalidades nas leis, está se executando o sistema de freios e contrapesos.
Fala-se, no entanto, que o poder é um só e que se triparte em órgãos distintos o seu exercício.
Para Kant, o Estado é uno e trino ao mesmo tempo.
Montesquieu acreditava que para afastar governos absolutistas e evitar a produção de normas tirânicas, seria fundamental estabelecer a autonomia e os limites de cada poder. Com isto, cria-se a ideia de que só o poder controla o poder, por isso, o Sistema de freios e contrapesos, onde cada poder é autônomo e deve exercer determinada função, porém, este poder deve ser controlado pelos outros poderes. Verifica-se, ainda, que mediante esse Sistema, um Poder do Estado está apto a conter os abusos do outro de forma que se equilibrem. O contrapeso está no fato que todos os poderes possuem funções distintas, são harmônicos e independentes.
Um dos objetivos de Montesquieu era evitar que os governos absolutistas retornassem ao poder. Para isso, em sua obra “O Espírito das leis”, descreve sobre a necessidade de se estabelecer a autonomia e os limites entre os poderes. No seu pensamento, cada Poder teria uma função específica como prioridade, ainda que pudesse exercer, também, funções dos outros poderes dentro de sua própria administração.
O Sistema de Freios e Contrapesos consiste no controle do poder pelo próprio poder, sendo que cada Poder teria autonomia para exercer sua função, mas seria controlado pelos outros poderes. Isso serviria para evitar que houvesse abusos no exercício do poder por qualquer dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Desta forma, embora cada poder seja independente e autônomo, deve trabalhar em harmonia com os demais Poderes.
A Teoria da Separação dos Poderes surgiu na época da formação do Estado Liberal.
O princípio dos poderes harmônicos e independentes acabou por dar origem ao conhecido Sistema de “freios e contrapesos”, pelo qual os atos gerais, praticados exclusivamente pelo Poder Legislativo, consistentes na emissão de regras gerais e abstratas, limita o Poder Executivo, que só pode agir mediantes atos especiais, decorrentes da norma geral. Para impedir o abuso de qualquer dos poderes de seus limites e competências, dá-se a ação do controle da constitucionalidade das leis, da decisão dos conflitos intersubjetivos e da função garantidora dos direitos fundamentais e do Estado Democrático de Direito, pelo Poder Judiciário.
Esse princípio da separação é o melhor instrumento contra a formação de ditaduras.
Estamos diante de cláusula pétrea.
As cláusulas pétreas inseridas na Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988 são áreas temáticas do texto constitucional que não podem ser emendadas e se encontram dispostas em seu artigo 60, § 4º. São elas:
A forma federativa de Estado;
O voto direto, secreto, universal e periódico;
A separação dos Poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário;
Os direitos e garantias individuais
Estamos diante de limitações materiais de reforma da Constituição.
As cláusulas pétreas são universais. de há muito vêm consolidadas em outras Constituições como a albanesa (1925, artigo 141), a francesa de 1946 (artigo 95), italiana de 1947 (artigo 139), grega de 1951 (artigo 108) e portuguesa de 1976 (artigo 290).
Como disse Uadi Lammêgo Bulos ( Constituição Federal Anotada, 6ª edição, pág. 849) as cláusulas pétreas são imprescindíveis e insuperáveis.
Sendo assim não há hipótese de edição de emenda constitucional na matéria.
*É procurador da república aposentado com atuação no RN.
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