Uma preocupante atuação abusiva da Polícia Militar

Homem que não estava na manifestação perdeu um olho (Foto: Web/autor não identificado)

Por Rogério Tadeu Romano*

I – O FATO

Anoto as palavras de Malu Gaspar, em artigo para o jornal O Globo, em 1º de junho de 2021, quando fez comentários com relação a reações das polícias militares em episódios ora acontecidos:

“A comparação entre a postura da Polícia Militar nos protestos do último sábado, contra Bolsonaro, e na manifestação do final de semana anterior, a favor do presidente, traz um alerta preocupante para as eleições de 2022: o de que o bolsonarismo enraizado nas polícias e a insubordinação contra governadores de oposição ao presidente possa  provocar ainda mais conflitos num ambiente político já polarizado e conflagrado.  

Na motociata a favor de Bolsonaro, no Rio de Janeiro, havia mais de mil policiais militares, mas a única pessoa agredida foi um jornalista – e pelos próprios manifestantes, hostis à presença da imprensa.

No ato em Recife, a escaramuça começou sem motivo aparente, e foi desencadeada pela própria PM – contra a orientação do chefe da polícia, o governador Paulo Câmara (PSB), que recomendava apenas acompanhar a manifestação e evitar excessos. “

Nas apurações preliminares, em Pernambuco, os PMs disseram ter disparado balas de borracha porque os manifestantes não se dispersaram no local combinado e seguiram caminhando por mais um trecho.  

Acrescento a isso o patético episódio em que um policial militar, em Goiás, prendeu “por flagrante delito”, segundo as informações, o professor e ativista Arquidones Bites por não retirar de seu carro um adesivo “Bolsonaro Genocida”. Os policiais consideraram que a mensagem era caluniosa contra o presidente Jair Bolsonaro e, por isso, se enquadraria na LSN. Um absurdo.  Não se pode enquadrar uma conduta inscrita na Lei de Segurança Nacional quando ela foi um exercício constitucional de direito de opinião.

Professor foi enquadrado por PM na LSN por adesivar carro (Foto: Reprodução)

II – O BOLSONARISMO NAS POLÍCIAS MILITARES

Realmente preocupa o bolsonarismo já enraizado nas polícias militares e sua atuação em favor do governo.

A pedido de ÉPOCA, o instituto de pesquisa Atlas fez um levantamento para medir o grau de apoio e rejeição a Bolsonaro na Polícia Civil, na Polícia Militar (PM) e na Polícia Federal (PF) em todo o país. A amostra contou com 521 entrevistas, das quais 302 com PMs, 116 com policiais civis e 103 com policiais federais. A coleta on-line se deu entre 26 de março e 4 de abril, o que inclui o dia em que Anderson Torres, delegado da PF, foi indicado para chefiar o Ministério da Justiça. A margem de erro é de 4%, para mais ou para menos, e o intervalo de confiança é de 95%, consoante reportagem do O Globo, em 9 de abril de 2021.

Uma pesquisa publicada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2020, mostrou que 35% dos oficiais e 41% dos praças de todo o Brasil interagem em redes sociais bolsonaristas. Em geral, se posicionam de forma favorável ao presidente.  

Nos dois primeiros anos de mandato, o presidente participou de 24 formaturas de militares e de policiais, segundo levantamento do jornal O GLOBO.

III – A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

Ficou patente em ambos esses tristes exemplos o chamado abuso de autoridade diante dos desmandos cometidos. Esses abusos devem ser amplamente reparados.

Já ensinava José de Aguiar Dias(Da Responsabilidade Civil, volume III, 5ª edição, pág. 236) que a doutrina do abuso de direito é aplicável ao Estado. Assim a doutrina do abuso de direito deve ter cabida em face do desvio ou excesso no chamado poder de polícia, que comporta, para a administração, a faculdade de estabelecer injunções, proibições, autorizações, recusas e exceções. Todas essas medidas e outras que se compreendem na tarefa de administrar – e cujo critério é o interesse público, porque, fora disso, como disse José de Aguiar Dias, a restrição à atividade legítima é insustentável, dando lugar ao abuso de poder.

Tanto no caso de Pernambuco como o de Goiás há nítida responsabilidade civil do Estado pelos atos cometido pelos atos cometidos pelos policiais militares.

Necessário trazer alguns entendimentos com relação a responsabilidade civil do Estado.

Pedro Lessa sintetiza os três sistemas de responsabilidade em direito público: teoria do risco integral, ou por causa do serviço público; teoria da culpa administrativa; teoria do acidente administrativo ou da irregularidade do funcionamento do serviço público.

Disse ele que, desde que um particular sofre um prejuízo em consequência do funcionamento(irregular ou regular, pouco importa) de um serviço público organizado no interesse de todos, a indenização é devida como corolário do princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais; segundo a teoria da culpa administrativa, só há direito à indenização, quando se prova imprudência, negligência ou culpa de qualquer espécie dos órgãos e propostos da União; a terceira teoria tenta a conciliação das anteriores: assim pressupõe o princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais, mas não vai a ponto de mandar que se indenizem todos os prejuízos resultantes do funcionamento, regular ou irregular, dos serviços públicos; sente-se nesta terceira teoria um vestígio do conceito de culpa, mas a culpa, aqui, é impessoal, objetiva do serviço público como expôs no conhecido Do Poder Judiciário, pág. 165.

Na teoria do risco integral, o prejuízo sofrido pelo particular é consequência do funcionamento, seja regular ou irregular, do serviço público.

O risco é o fundamento da responsabilidade civil do Estado, apenas exigindo nexo causal entre o dano e o ato, ainda que regular, do agente do poder público do Estado, como ensinou Martinho Garcez Neto, Prática da Responsabilidade Civil, pág. 167).

Mas visando atenuar a amplitude da responsabilidade objetiva constitucional, Hely Lopes Meirelles acena com uma discriminação do conceito de risco, mas que recebe a oposição de autores como Alcino Falcão(Responsabilidade patrimonial das pessoas jurídicas de direito público, RDP 11:45). Para Hely Lopes Meirelles(Direito Administrativo brasileiro, São Paulo, 1978) , a teoria do risco integral faz surgir a obrigação de indenizar os danos, do ato lesivo e injusto causado à vítima pela Administração, não se exigindo qualquer falta do serviço público, nem culpa dos seus agentes; basta a lesão, sem o concurso do lesado; baseia-se esta teoria no risco que a atividade pública gera para os administrados e na possibilidade de acarretar danos a certos membros da comunidade impondo-lhes um ônus não suportado pelos demais. Entendia Hely Lopes Meirelles que a teoria do risco administrativo não se confunde com a teoria do risco integral: “Nesta a Administração ficaria obrigada a indenizar todo e qualquer dano suportado por terceiros, ainda que resulte de culpa ou dolo da vítima”; no risco administrativo embora se dispense a prova da culpa da Administração, permite-se que o Poder Público demonstre a culpa da vítima para excluir ou atenuar a indenização.

Mostra, logo após, que a teoria do risco administrativo, embora dispense a prova da culpa da Administração, permite que o Poder Público demonstre a culpa da vítima, para excluir e atenuar a indenização, o que não aconteceria no caso de risco integral, modalidade extremada do risco administrativo, e segundo o qual a Administração fica obrigada a indenizar todo e qualquer dano suportado por terceiros, ainda que resultante de culpa ou dolo da vítima. Ora, como observam Mário Marzagão e Otávio de Bastos(Responsabilidade pública, 1956), essa teoria jamais foi acolhida em toda a sua intensidade.

A teoria do risco administrativo foi adotada pela doutrina, sendo reconhecida como a que mais se mostra adequada à compreensão da responsabilidade civil do Estado, acrescentando-se que, na legislação brasileira, a Administração Pública pode ser responsabilizada na forma do risco integral apenas quando praticar dano ambiental, na forma do artigo 14 da Lei 6.938/81, e artigo 225, § 3º, da Constituição Federal, ou dano nuclear, nos termos do artigo 21, XIII, alínea “ d”, da Constituição Federal.

Aliás, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal estava em consonância com a doutrina majoritária, entendendo que a teoria adotada por nosso ordenamento jurídico, como regra, foi a do risco administrativo, a qual, conforme já dito, admite que o Estado demonstre, em sua defesa, a presença de causa excludente da responsabilidade(AgR no AI 577.908/GO, AgR no Ai 636.814/DF).

Caio Tácito (RDA 55/262) entende cabível a responsabilidade objetiva nos casos de dano anormal, decorrente de atividade lícita do Poder Público, mas lesiva ao particular.

Em posição oposta estão Aguiar Dias (RDA 15/65), Mário Mazagão (Curso de direito administrativo, 6ª edição, RT, 1977, pág. 203) e ainda Hely Lopes Meirelles (Direito administrativo brasileiro, 32ª edição, São Paulo, pág. 2006), todos considerando que desde o texto de 1988, a responsabilidade objetiva é a regra.

Mas não se desconhece que há campo vasto para a responsabilidade subjetiva no caso de atos omissivos, determinando a responsabilidade pela teoria da culpa ou falta de serviço, seja porque o serviço não funcionou, quando deveria funcionar normalmente, seja porque funcionou mal ou funcionou tardiamente.

Há para os dois casos a aplicação da responsabilidade civil objetiva do Estado sem que se possa falar em prova de culpa por parte dos agentes para isso. Mediante ação de regresso a Administração poderá se ressarcir dos prejuízos perante os agentes. Houve funcionamento irregular do serviço, em abuso de poder.

IV – UM CRIME DE LESÃO CORPORAL GRAVÍSSIMA

No caso de Pernambuco houve um crime de lesão corporal gravíssima, uma vez que os dois homens atingidos nos olhos por balas de borracha atiradas pela Polícia Militar, durante o protesto contra o presidente Bolsonaro (sem partido) no Recife, perderam parte da visão. A operação truculenta dos policiais ocorreu na manhã de sábado, dia 29 de maio de 2021, no Centro do Recife. Segundo parentes, as duas vítimas foram ao Centro da cidade para trabalhar, e não participavam do ato, consoante o G1 PE.

O crime de lesão corporal tem sua objetividade jurídica em ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem (artigo 129 do Código Penal).

Fala-se num crime doloso, ainda que se possa falar em dolo eventual.

O dano à integridade física trazido pelo crime deve ser juridicamente apreciável. Como dano à integridade corporal entende-se a alteração anatômica ou funcional, interna ou externa que lese o corpo, como ferimentos, cortes, luxações, fraturas etc. O dano à saúde compreende a alteração seja fisiológica ou ainda a psíquica. Assim a dor física ou a crise nervosa, sem comprometimento físico ou mental, não configura lesão corporal, podendo caracterizar um crime de tortura, como bem disseram Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior, Fábio M. de Almeida Delmanto(Código penal comentado, São Paulo, Renovar, 6ª edição, pág. 272).

2° Se resulta:

– Incapacidade permanente para o trabalho;

II – enfermidade incurável;

III perda ou inutilização do membro, sentido ou função;

IV – deformidade permanente;

– aborto:

Pena – reclusão, de dois a oito anos.

As consequências de maior gravidade previstas no parágrafo primeiro, e ainda segundo e terceiro, do artigo 129, não são elementos constitutivos de um crime autônomo de lesões corporais graves, mas, sim, ações de maior punibilidade como ensinou Heleno Cláudio Fragoso( Lições de direito penal, 7º edição, parte especial, pág. 132) ao analisar o crime de lesões corporais.

Não é necessário que esses resultados mais graves sejam dolosos. Nos casos de perigo de vida e aborto, exige-se que o agente não tenha querido, nem mesmo eventualmente, o resultado mais grave, pois cometeria outro crime (tentativa de homicídio ou aborto).

O resultado mais grave é assim imputado ao agente em vista  de seu propósito de causar ofensa física à vítima e da evidente possibilidade de resultar uma lesão mais grave de qualquer violência pessoal, aplicando-se o princípio vulnera non dantur ad mensuram. Por certo a duração da enfermidade ou da incapacidade para o trabalho é o critério antigo para o reconhecimento da gravidade das lesões. Deve haver uma incapacidade física ou psíquica para as ocupações habituais, e não somente para o trabalho. Estamos diante de um conceito funcional. .Já o perigo de vida não se presume. Não basta que um ferimento por sua sede ou extensão, apresente, em regra, perigo de vida.

Mas não basta a simples afirmação dos peritos, pois é importante que os peritos indiquem se realmente há um perigo de vida com a lesão. É indispensável que os peritos indiquem os sintomas que os determinaram (RF 205/349).

A lesão será igualmente grave se resultar debilidade permanente do membro, sentido da função. Debilidade será redução na capacidade funcional e membros, os apêndices do corpo. debilidade permanente deve ser estável, perene, continuada, indefinida, pelo tempo afora (RTJ 72/25).

Ainda, as razões do crime indicam que há indicativo da agravante de que foi por motivo fútil, razão por que correta a condenação. Os acusados agiram de forma totalmente desproporcional, pois investiram contra a vítima, agredindo-a, em razão de um simples desentendimento, tornando a incidência da agravante do motivo fútil imperiosa.

No entanto, surgem dúvidas com relação ao chamado dolo eventual.

No dolo direto ou determinado, o agente prevê o resultado(consciência) e quer o resultado(vontade). No dolo eventual o agente prevê o resultado(consciência), não quer, mas assume o risco(vontade). O dolo eventual, espécie de dolo indireto ou indeterminado(dolo alternativo ou dolo eventual) distingue-se da culpa consciente, quando o agente não prevê o resultado(que era previsível) e não quer, não assume risco e pensa poder evitar.

De toda sorte, trata-se de um crime de ação penal pública incondicionada, cabendo ao titular da ação, o Ministério Público de Pernambuco as providências cabíveis.

*É procurador da República com atuação no RN aposentado.

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Reportagem especial

Canal Bruno Barreto