Uma proposta para senador vitalício no Brasil

Bolsonaro articula a criação do cargo de senador vitalício para ex-presidentes (Foto: Clauber Cleber Caetano/PR)

Por Rogério Tadeu Romano

 

I – O FATO

Disse Alexandre de Rezende Nicolaidis (Pec do senador vitalício é inconstitucional, in Consultor Jurídico, em 3 de novembro de 2021) que “nos últimos dias, alguns setores de mídia veicularam a informação de que membros do Parlamento estariam articulando a votação de uma proposta de emenda à constituição (PEC) que visaria a conceder aos ex-presidentes da República assento permanente no Senado Federal, com finalidade honorífica.”

II – O HISTÓRICO DAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

Na Constituição de 1824, tinha-se um Poder Legislativo que era exercido pela assembleia geral, composta de duas câmaras: a dos deputados, efetiva e temporária, e a dos senadores, integrada de membros vitalícios nomeados pelo Imperador, que detinha o Poder Moderador, em uma monarquia parlamentar, e dentre os componentes de uma lista tríplice eleita como os deputados (art. 43). A eleição era censitária. Além disso tínhamos ali um Estado Unitário. Os requisitos de brasileiro nato e católico não eram exigidos para os senadores, ao contrário dos deputados (idade mínima de 25 anos, ser leitor, ter renda mínima de Cr$400). O pleiteante ao Senado deveria ter idade mínima de 40 anos e renda de Cr$800.00 (artigo 45). Pimenta Bueno (Direito Público Brasileiro e Analyse da Constituição do Império, 1857), um dos primeiros comentaristas no Direito Constitucional do Brasil, justificava pela natureza diversa das duas Câmaras, uma popular (dos deputados), outra territorial(senadores).

A Constituição de 1891 instituiu a Federação no Brasil e a República, após a deposição do Imperador D. Pedro II, em novembro de 1889.

Com a República, tivemos, ab initio, a Constituição de 1891, que, assim dispunha:

“Art 30 – O Senado compõe-se de cidadãos elegíveis nos termos do art. 26 e maiores de 35 anos, em número de três Senadores por Estado e três pelo Distrito Federal, eleitos pelo mesmo modo por que o forem os Deputados.

Art 31 – O mandato do Senador durará nove anos, renovando-se o Senado pelo terço trienalmente.

Parágrafo único – O Senador eleito em substituição de outro exercerá o mandato pelo tempo que restava ao substituído.

Art 32 – O Vice-Presidente da República será Presidente do Senado, onde só terá voto de qualidade, e será substituído, nas ausências e impedimentos, pelo Vice-Presidente da mesma Câmara.

Art 33 – Compete, privativamente ao Senado julgar o Presidente da República e os demais funcionários federais designados pela Constituição, nos termos e pela forma que ela prescreve.

  • 1º – O Senado, quando deliberar como Tribunal de Justiça, será presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal.
  • 2º – Não proferirá sentença condenatória senão por dois terços dos membros presentes.

 3º – Não poderá impor outras penas mais que a perda do cargo e a incapacidade de exercer qualquer outro sem prejuízo da ação da Justiça ordinária contra o condenado.

Ainda a Constituição de 1891 limitava o mandato de senador a nove anos com renovação trienal de 1,3(artigo 31).

Com a Constituição de 1934, o Senado foi transformado em órgão de colaboração da Câmara dos Deputados (artigos 22 e 88 e seguintes).

Getúlio Vargas, um ditador, conviveu com a Constituição de 1934, progressista para a época, por pouco tempo.

A Carta de 1937 subverteu a tradição política do Brasil em matéria de representação embora tenha mantido os mesmos requisitos, em linhas gerais que a Constituição de 1934, restaurou o voto indireto e o sistema majoritário (artigo 46 a 48). Os deputados eram eleitos pelos vereadores das Câmaras Municipais e mais 10 cidadãos escolhidos pelo povo (artigo 47), num máximo de 10 por Estado-membro (artigo 48).

Com a Constituição de 1937, de natureza autoritária, o Senado era composto de conselheiros federais, eleitos pela Assembleia Legislativa de cada Estado e 10 nomeados pelo presidente da República, com mandatos de 6 anos(artigo 50). A escolha ou nomeação só podiam recair em que já houvesse exercido por espaço nunca menor de quatro anos, “cargo de governo” na União ou nos Estados(artigo 51), ou, se se tivesse distinguido em algum dos ramos da produção ou da cultura nacional(artigo 52). Segundo Paulino Jacques (Curso de direito constitucional, 9ª edição, pág. 236) essa corporação tinha algo de senado bonapartista, instituído pela Constituição do ano VIII, o qual ficava à mercê do Imperador, solicito às suas determinações e prestes aos seus desejos, embora devesse fiscalizar seus atos por dever de oficio. A Constituição de 1937 deixou nas mãos do presidente o exercício da atividade legislativa. Além a histórica “queima das bandeiras” representou um silêncio nas autonomia dos Estados administrados por interventores como já se tinha desde a chamada Revolução de 1930, pois como disse Rafael Navarro Costa (A Revolução de 1930 e a mudança política no Estado do Rio de Janeiro), “com a posse de Getúlio Vargas, foi oficializado o sistema de interventoria federal nos estados.”

Com a redemocratização, o Brasil teve a Constituição de 1946.

A renovação senatorial trienal e de 1/3 de 1891, que passara a quadrienal e pela metade em 1934 (artigo 89, § 1º), permaneceu quadrienal e por um por dois terços alternativamente (artigo 60, § 3º). A proporcionalidade de representação na Câmara é a mesma estabelecida na Constituição de 1934(artigo 58); e, no Senado, restaurou-se a tradição de 1891(artigo 60, § 1º).

Senado do Império tinha cargos vitalícios

Dizia-se no artigo 60 da Constituição de 1946:

Art 60 – O Senado Federal, compõe-se de representantes dos Estados e do Distrito Federal, eleitos segundo o princípio majoritário.

  • 1º – Cada Estado, e bem assim o Distrito Federal, elegerá três Senadores,
  • 2º – o mandato de Senador será de oito anos.
  • 3º – A representação de cada Estado e a do Distrito. Federal renovar-se-ão de quatro em quatro anos, alternadamente, por um e por dois terços.
  • 4º – Substituirá o Senador, ou suceder-lhe-á nos termos do art. 52, o suplente com ele eleito.

A Constituição de 1967 manteve essas normas e estipulou para o Senado Federal:

Art 43 – O Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados, eleitos pelo voto direto e secreto, segundo o princípio majoritário.

  • 1º – Cada Estado elegerá três Senadores, com mandato de oito anos, renovando-se a representação, de quatro em quatro anos, alternadamente, por um e por dois terços.
  • 2º – Cada Senador será eleito com seu suplente.

Art 44 – Compete privativamente ao Senado Federal:

I – julgar o Presidente da República nos crimes de responsabilidade e os Ministros de Estado, havendo conexão;

II – processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal e o Procurador-Geral da República, nos crimes de responsabilidade.

Parágrafo único – Nos casos previstos neste artigo, funcionará Como Presidente do Senado o do Supremo Tribunal Federal; somente por dois terços de votos poderá ser proferida a sentença condenatória, e a pena limitar-se-á à perda do cargo com inabilitação, por cinco anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo de ação da Justiça ordinária.

Art 45 – Compete ainda privativamente, ao Senado:

I – aprovar, previamente, por voto secreto, a escolha de magistrados, quando exigido pela Constituição; do Procurador-Geral da República, dos Ministros do Tribunal de Contas, do Prefeito do Distrito Federal, dos Governadores dos Territórios, dos Chefes de Missão Diplomática de caráter permanente quando determinado em lei, e de outros servidores;

II – autorizar empréstimos, operações ou acordos externos, de qualquer natureza, aos Estados, Distrito Federal e Municípios;

Ill – legislar sobre o Distrito Federal, na forma do art. 17, § 1º, e, com o auxílio do respectivo Tribunal de Contas, nele exercer as atribuições, mencionadas no art. 71;

IV – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei ou decreto, declarados inconstitucionais. por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;

V – expedir resoluções.

Com o governo militar tivemos a Emenda Constitucional n. 1, de 1969, outorgada, que estabeleceu a representação na Câmara, em função do número de eleitores, com o mínimo de três deputados por estado membro. Com relação a esse órgão aquela emenda tratou nos artigos 41 e 42. Estabelecia, pois, o artigo 41, caput:

Art. 41. O Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados, eleitos pelo voto secreto e direto, dentre os cidadãos maiores de trinta e cinco anos, no exercício de seus direitos políticos, segundo o princípio majoritário.:

Entretanto, em 1977, vieram os chamados “senadores biônicos”, uma forma pejorativa criada pela oposição ao regime militar para denominar os senadores escolhidos a partir das mudanças estabelecidas por Ernesto Geisel através do Pacote de Abril.

Esses senadores ficaram conhecidos como “senadores biônicos”, por figurarem como “agentes do governo”, garantindo a hegemonia dos militares através do quórum majoritário. Mas eles tinham mandato. Observe-se o artigo 41, § 2º, da Constituição com a redação dada pela Emenda 8, de 1977, promulgada pelo presidente da República.

Art. 41. O Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados, eleitos dentre cidadãos maiores de trinta e cinco anos e no exercício dos direitos políticos.

  • 1º Cada Estado elegerá três senadores com mandato de oito anos, renovando-se a representação, de quatro em quatro, alternadamente por um e por dois terços.
  • 2º Na renovação do terço e, para o preenchimento de uma das vagas, na renovação por dois terços, a eleição far-se-á pelo voto direto e secreto, segundo o princípio majoritário. O preenchimento da outra vaga na renovação por dois terços, far-se-á mediante eleição, pelo sufrágio do colégio eleitoral constituído, nos termos do § 2º do artigo 13, para a eleição do Governador de Estado, conforme disposto em lei.
  • 3º Cada senador será eleito com dois suplentes.

Fala-se, pois, mesmo se tratando de senador biônico, na palavra “renovação”, que não ocorre diante do instituto do senador vitalício.

III – A CONSTITUIÇÃO DE 1988

A Constituição de 1988 instituiu o Estado Democrático de Direito no Brasil.

Tenha-se, como disse José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo, 5ª edição, pág. 441) que “a dogmática federalista firmou a tese de necessidade do Senado no Estado Federal como câmara representativa dos Estados federados. Fundado nisso é que a Constituição de 1988, tal como as anteriores republicanas, declara que o Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados e do Distrito Federal, elegendo, cada um, três senadores (com dois suplentes cada), pelo princípio majoritário, para um mandato de oito anos, renovando-se a representação de quatro em quatro anos, alternativamente, por um e dois terços(artigo 46).”

Prosseguiu José Afonso da Silva aduzindo que “o surgimento da representação dos Estados pelo Senado se fundamentava na ideia, inicialmente implantada nos EUA, de que se formava de delegados próprios de cada Estado, pelos quais estes participavam das decisões federais. Há muito que isso não existe nos EUA e jamais existiu no Brasil, porque os Senadores são eleitos diretamente pelo povo, tal como os deputados, por via de partidos políticos. Ora, a representação é partidária. Os senadores integram a representação dos partidos tanto quanto os deputados, e dá-se o caso não raro de os senadores de um Estado, eleitos pelo povo, serem de partido adversário do governador, portanto defendem, no Senado, programa diverso deste, e como conciliar a tese da representação do Estado com situações como esta?”

Como ainda disse Alexandre de Rezende Nicolaides(obra citada):

“O Senado Federal simboliza a representação dos Estados-membros na esfera federal. Trata-se da representação política dos Estados-federados nas discussões de competência federal, possibilitando a manifestação dos interesses regionais nos assuntos de âmbito nacional, solidificando dessa maneira um dos pressupostos da nossa forma federativa de Estado.

Autorizar a manutenção de agentes mandatários estranhos a essa natureza representativa, alterando o quórum de composição e votação, desequilibra a discussão política na casa parlamentar, sem fundamentação idônea que estivesse alinhada com os preceitos que dão razão à manutenção do sistema bicameral legislativo na esfera da União (como sabemos, nas dimensões regionais e locais, o Poder Legislativo se consagra sobre o sistema unicameral).”

Tem-se a Constituição de 1988:

Art. 46. O Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados e do Distrito Federal, eleitos segundo o princípio majoritário.

  • 1º Cada Estado e o Distrito Federal elegerão três Senadores, com mandato de oito anos.
  • 2º A representação de cada Estado e do Distrito Federal será renovada de quatro em quatro anos, alternadamente, por um e dois terços.
  • 3º Cada Senador será eleito com dois suplentes.

Art. 47. Salvo disposição constitucional em contrário, as deliberações de cada Casa e de suas Comissões serão tomadas por maioria dos votos, presente a maioria absoluta de seus membros

A Constituição de 1988, respeitando o princípio republicano, do mandato para exercício de função por agente político, eleito pelo voto popular, determinou um mandato de 8 anos, na linha de todas as Constituições anteriores durante a República. Tem-se como cláusula pétrea o voto direto, secreto, universal e periódico. Essa é a forma de acesso de cargo no Poder Legislativo.

 Respeite-se o princípio republicano.

O princípio republicano não deve ser encarado do ponto de vista puramente formal, como algo que vale por sua oposição à forma monárquica. Ruy Barbosa já dizia que o que discrimina a forma republicana não é apenas a coexistência dos três poderes, indispensáveis em todos os governos constitucionais, mas, sim, a condição de que, sobre existirem os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, os dois primeiros derivem, realmente, de eleições populares.

Com responsabilidade: em nossa República, os exercentes de funções executivas respondem pelas decisões políticas que tomarem.

IV – A CLÁUSULA PÉTREA

Estamos diante de uma cláusula pétrea que impede uma “aventura constitucional” de, através de emenda constitucional, por Poder Constituinte Derivado, afrontarmos o princípio do sufrágio popular.

É impróprio em uma República o exercício de cargo público, na estrutura do Poder Legislativo e do Poder Executivo, que seja perpétuo, vitalício.

No Brasil, as cláusulas pétreas são encontradas no artigo 60, § 4º, da Constituição Federal.

Ali se diz:

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

  • 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I – a forma federativa de Estado;

II – o voto direto, secreto, universal e periódico;

III – a separação dos Poderes;

IV – os direitos e garantias individuais.

Ora, qualquer proposta de emenda tendente a excluir os limites materiais do poder reformador se afigura inconstitucional, porquanto as cláusulas pétreas são imprescindíveis e insuperáveis.

Há, pois, limites materiais à revisão constitucional que devem ser respeitados.

O poder de revisão constitucional é um poder constituinte, porque diz respeito a normas constitucionais. Mas é poder constituinte derivado, não originário, porque não consiste em fazer nova Constituição, introduzindo princípios fundamentais em vez de outros princípios fundamentais.

A revisão constitucional sofre o efeito dos chamados limites materiais.

Os limites materiais não podem ser violados ou removidos, sob pena de se deixar de fazer revisão para se passar a fazer Constituição nova. Uma coisa é remover os princípios que definem a Constituição em sentido material e que se traduzem em limites de revisão, outra coisa é remover ou alterar as disposições específicas do articulado constitucional que explicitam num contexto histórico determinados alguns limites.

Fala-se que não há limites absolutos. Absoluto deve ser o respeito de todos os limites, de todas as regras, tanto materiais como formais, enquanto estiverem em vigor.

Os limites materiais de revisão não se confundem com os limites materiais do poder constituinte originário; estes vinculam o órgão constituinte na formação da Constituição; aqueles apenas o órgão de revisão constitucional; estes são constitucionais ou, se preferirem constitutivos do ordenamento.

Esses limites de revisão são, ao mesmo tempo, explícitos e implícitos.

As regras de processo de revisão são suscetíveis de modificação como quaisquer outras normas.

Fala-se que não há limites absolutos. Absoluto deve ser o respeito de todos os limites, de todas as regras, tanto materiais como formais, enquanto estiverem em vigor.

Para Jorge Miranda (Teoria do Estado e da Constituição, 2003, pág. 421), os limites materiais da revisão não se confundem com os limites materiais do poder-constituinte (originário); estes vinculam o órgão constituinte na formação da Constituição, aqueles apenas o órgão da revisão constitucional; estes são constituintes ou, se ainda constitutivos do ordenamento; aqueles constituídos.

Esses limites de revisão são, ao mesmo tempo, explícitos e implícitos.

Para Jorge Miranda (Teoria do Estado e da Constituição, 2003, pág. 421), os limites materiais da revisão não se confundem com os limites materiais do poder-constituinte (originário); estes vinculam o órgão constituinte na formação da Constituição, aqueles apenas o órgão da revisão constitucional; estes são constituintes ou, se ainda constitutivos do ordenamento; aqueles constituídos.

As regras de processo de revisão são suscetíveis de modificação como qualquer outras normas.

Pinochet foi senador vitalício após encerrar ciclo ditatorial no Chile (Foto: reprodução)

Há limites imprescindíveis e insuperáveis instituídos pelas cláusulas pétreas pelo constituinte originário.

Imprescindíveis porque simplificar as normas que estatuem limites, outrora depositados pela própria manifestação constitucional originária, é usurpar o caráter fundacional do poder criador da Constituição.

Insuperáveis, pois alterar as condições estabelecidas por um poder inicial, autônomo e incondicionado, a fim de reformar limites explícitos à atividade derivada, é promover uma fraude à Constituição.

Essa fraude à Constituição consiste numa agressão à superioridade de atividade constituinte de primeiro grau, colocando em risco a ordem jurídica estabelecida.

As cláusulas pétreas são as que possuem uma super eficácia, ou seja, uma eficácia total, como é o caso dos incisos I a IV já traçados. Daí não poderem usurpar os limites expressos e implícitos do poder constituinte secundário.

Logram eficácia total, pois contém uma força paralisante de toda a legislação, que vier a contrariá-las, de modo direto ou indireto. Daí serem insuscetíveis de reforma. Ultrapassá-las significa ferir a Constituição.

São ainda ab-rogantes, desempenhando efeito positivo e negativo.

Tem efeito positivo, pois não podem ser alteradas através do processo de revisão ou emenda, sendo intangíveis, e logrando incidência imediata.

Possuem ainda efeito negativo pela sua força paralisante absoluta e imediata, vedando qualquer lei que pretenda contrariá-las. Permanecem imodificáveis, exceto nas hipóteses de revolução, quando ocorre uma ruptura da ordem jurídica para se instaurar uma outra.

A natureza do preceito enfocado é declarativa. Ele declara, não cria limites materiais; estes decorrem da coerência dos princípios constitucionais, sua função é de garantia, que respeita os princípios e não a preceitos. Obrigatória, enquanto vigora, mas reversível. O que os afeta é atingirem-se os princípios nucleares da Constituição.

Por fim, se dirá que a inconstitucionalidade material da revisão é fenômeno homólogo ao da ilegalidade da lei.

É certo que há quem negue a própria possibilidade de inconstitucionalidade material da revisão; pois, ficando as normas por ela criadas no mesmo plano hierárquico das normas constitucionais, seria contraditório indagar da conformidade com a Constituição de atos destinados a modifica-la. Para Jorge Miranda (obra citada, pág. 427) tudo está em compreender a função da revisão constitucional e a subordinação da competência para levar a cabo à Constituição. Ora, se ela implica em preservar os princípios vitais da Constituição, como lei fundamental, será certo que tem de ser sempre ajuizada em face desses princípios e não em face desta ou daquela norma que intente modificar ou substituir, como disse Hauriau, ao arguir o que se chama de legitimidade constitucional que estaria acima da própria supralegalidade.

Será inconstitucional a revisão que:

  1. a) Estabeleça normas contrárias a princípios constitucionais que devam reputar-se limites materiais de revisão, embora implícitos, como será o caso de uma lei de revisão que estabeleça discriminação em razão da raça, infringindo o princípio da igualdade;
  2. b) Estabeleça normas contrárias a princípios constitucionais elevados a limites materiais expressos (como é o exemplo de uma lei de revisão que estabeleça censura à imprensa, afetando assim o conteúdo essencial de um direito fundamental de liberdade);
  3. c) Estabeleça normas contrárias a princípios constitucionais elevados a limites materiais expressos, com concomitante eliminação ou alteração da respectiva referência ou cláusula;
  4. d) Estipule como limites materiais expressos princípios contrários a princípios fundamentais da Constituição.

Por outro lado, havendo além da preterição dos limites materiais, preterição de limites formais há ainda afronta à Constituição:

  1. a) A preterição de limites materiais de primeiro grau ou de limites do poder constituinte (originário) por forma inconstitucional equivale a uma revolução, algo dantesco dentro do sistema constitucional, como seria o caso da restauração da Monarquia por maioria simples do Congresso Nacional;
  2. b) A preterição de limites materiais de segundo grau por forma inconstitucional equivale a uma ruptura em sentido estrito (eliminação da fiscalização da constitucionalidade por omissão por maioria simples).

No Brasil, já tivermos exemplos tristes de fraudes à Constituição, com preterição de limites materiais de primeiro grau, como nos chamados Atos Institucionais a partir de 1964.

O órgão de revisão não faz senão formalizar ou emprestar credibilidade, numa conjuntura de exceção, a uma operação política em curso ou mesmo já consumada por partes daqueles que venham, de forma ilegítima, deter o poder.

A não reação à inconstitucionalidade material de revisão constitucional ou a não reação em tempo útil irá conduzir à perda da efetividade da norma ou do princípio constitucionalmente infringido.

Na Constituição Imperial de 1824 tínhamos os “senadores vitalícios”, amigos ou aliados do Imperador. Pela Emenda Constitucional n. 8, de 1977, os “senadores biônicos”, amigos ou aliados do ditador para poder garantir uma representatividade ideal no Senado Federal.

A proposta de emenda constitucional que se quer articular afronta o inciso II do artigo 60, parágrafo quarto, da Constituição, que elenca as chamadas cláusulas pétreas.

Como disse Uadi Lammêgo Bulos (Constituição Federal Anotada, 6ª edição, pág. 855) “não há norma semelhante na Constituição pretérita. Sua preocupação foi impedir reformas constitucionais em assuntos relacionados, direta e indiretamente, com a participação popular”, como ainda salientou Christian Stark (El concepto de ley em la Constitucion alemana, Madri, 1979). E vem a pergunta: Esse senador vitalício representaria qual unidade da federação? Nenhuma. Afronta-se com isso uma tradição constitucional republicana de representação dos senadores com relação a esses estados membros. Como ficariam os ex-presidentes Collor de Melo e Dilma Roussef, que foram impedidos de governar?

Se isso, não bastasse, somente através de uma nova Assembleia Constituinte, no exercício do poder constitucional originário, poderia modificar nossa forma federativa(artigo 60, § 4º, inciso I) e ainda a já citada cláusula do artigo 60,§ 4º, inciso II.

Na discussão estabelecida em 2015, por meio da Emenda Aglutinativa nº 56/2015, apresentada pelo deputado Leonardo Picciani, buscava-se acrescentar os §§4º e 5º ao artigo 46 da Constituição Federal que continham a seguinte redação: “§4º. O Presidente da República, desde que eleito pelo voto direto, tornar-se-á Senador vitalício assim que concluir seu mandato; §5º. O Senador vitalício não terá direito a voto e terá atribuições definidas em lei complementar”.

Em tentativa mais antiga, na PEC 445/2001, de autoria do deputado José Carlos Martinez, acrescia-se ao artigo 46 da CF/88 o §4º, com a seguinte redação: “Os ex-Presidentes da República que tiverem concluído seus mandatos e estiverem com seus direitos políticos preservados ocuparão cargo de Senador vitalício, gozando de todas as prerrogativas, com exceção do direito de voto”.

Por esses fatos aqui ainda narrados o projeto ainda peca por inconstitucionalidade, pois afronta o princípio, como disse Alexandre de Rezende Nicolaidis (obra citada): “:”Migrar” um outrora ocupante máximo do Poder Executivo para o Poder Legislativo causa estranheza”.

V – A REVOGAÇÃO DA SÚMULA 394 DO STF

Trata-se de fórmula para “driblar” a questão da prerrogativa de foro para presidentes que encerram o seu mandato quanto a ilícitos penais que lhe sejam imputados.

A experiência não é nova no Brasil.

Trago à colação o fato de que o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional a concessão de foro especial para ex-autoridades. O julgamento aconteceu em Ação Direta de Inconstitucionalidade  2.797-2 – DF, que questionava a Lei 10.628, de 2002. A norma questionada acrescentou os parágrafos 1º e 2º ao artigo 84 do Código de Processo Penal e estabeleceu foro especial para ex-detentores de cargo público, por ato de improbidade administrativa. Essa lei, de 24 de dezembro de 2002, é do fim do governo Fernando Henrique Cardoso.

Trata-se assim de mais uma tentativa para “ressuscitar” a revogada Súmula 394, mantendo a prerrogativa de foro para os que têm mandato presidencial já concluído.

Diz a Súmula 394 do Supremo Tribunal Federal:

“Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício.”

  1. Essa orientação jurisprudencial da Corte resultou de interpretação dos artigos 59, I, 62, 88, 92, 100, 101, I, “a”, “b” e “c”, 104, II, 108, 119, VII, 124, IX e XII, da Constituição Federal de 1946, e, ainda, das Leis nºs 1.079/50 e 3.258/59.

Mas entendo razoáveis as razões traçadas pelo STJ, no Inquérito 687-SP:

“33. Nem se deve presumir que o ex-titular de cargo ou mandato, despojado da prerrogativa de foro, fique sempre exposto à falta de isenção dos Juízes e Tribunais a que tiver de se submeter.

E, de certa forma, sua defesa até será mais ampla, com as quatro instâncias que a Constituição Federal lhe reserva, seja no processo e julgamento da denúncia, seja em eventual execução de sentença condenatória.

E sempre restará a esta Corte o controle difuso de constitucionalidade das decisões de graus inferiores. E ao Superior Tribunal de Justiça o controle de legalidade. Além do que já se faz nas instâncias ordinárias, em ambos os campos.

  1. Por todas essas razões, proponho o cancelamento da Súmula 394.”

VI – A EXPERIÊNCIA CONSTITUCIONAL ITALIANA E O CASO CHILENO

 É certo, porém, que, em países como a Itália, há os chamados senadores vitalícios.

Na Itália, o mandato de senador vitalício é aquele ao qual os ex- Presidentes da República acedem por direito (ao Senado da República), a menos que o renunciem (art. 59, parágrafo 1 da Constituição Italiana) e até cinco cidadãos nomeados pelo Presidente da República por terem “honrado a Pátria pelos seus eminentes méritos nos domínios social, científico, artístico e literário” (art. 59, n.º 2, const.).

Na doutrina, levantou-se a questão de saber se o limite de cinco senadores vitalícios estabelecido pelo artigo 59, parágrafo 2 da Constituição italiana deve ser entendido como um limite máximo de nomeações disponíveis para cada Presidente da República ou como um limite máximo de senadores vitalícios presentes simultaneamente no Senado .

O referendo constitucional de 2020 resolveu esse estado de coisas, impondo um máximo de cinco senadores vitalícios com assento simultâneo, excluindo os ex-presidentes da República.

Tal situação foi possibilitada pela Constituição democrática da Itália, naquele país, no pós-guerra.

Isso não passa por aversão na sociedade italiana.

Beppe Grillo, fundador do partido Movimento Estrelas (M5S), que faz parte da base aliada do governo italiano, já disse:

“Senadores vitalícios nunca morrem ou morrem tarde’”, argumentou. “Que coragem vocês têm”.

É certo que a Itália não é uma república federativa. Amolda-se a um Estado Unitário com divisão por regiões, algo que não ocorre em nosso estado federal, assim como nos Estados Unidos, na Alemanha, por exemplo.

 O Chile, de Pinochet, cogitou desses senadores. Augusto José Ramón Pinochet Ugarte foi um general do exército chileno e ditador do seu país de 1973 a 1990, servindo posteriormente como senador vitalício, cargo que foi criado exclusivamente para ele, por ter sido um ex-governante. O próprio Chile anos depois decidiu acabar com tal experiência de tornar todos os presidentes senadores pelo resto da vida.

No Paraguai os ex-presidentes estão protegidos pela prerrogativa de foro.

*É procurador da República aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.

 

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Reportagem especial

Canal Bruno Barreto