Por Rogério Tadeu Romano*
I – O FATO
Fato que deve causar preocupação aos estudiosos do direito envolve a investigação que determinou o afastamento do presidente do IBAMA de suas funções e a quebra de sigilo bancário e fiscal de diversos agentes públicos, dentre os quais o atual ministro do Meio Ambiente.
Ali o ministro Alexandre Moraes não determinou a oitiva prévia da Procuradoria Geral da República, uma vez que há prerrogativa de foro no Supremo Tribunal Federal para tal situação.
Segundo o site da PGR, o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, propôs ao Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 21 de maio de 2021, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), com pedido de liminar, para que toda a legislação processual penal referente à fase de investigação seja interpretada em sintonia com o princípio acusatório previsto na Constituição. O objetivo é que o juiz sempre ouça o Ministério Público, titular da ação penal, antes de decretar medidas cautelares e proferir decisões que restrinjam direitos fundamentais dos cidadãos.
A ADPF questiona omissões do Código de Processo Penal, da lei que trata de interceptações telefônicas, da lei que institui normas procedimentais para os processos perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o STF e do Regimento Interno do Supremo. O PGR pede para a Corte assentar que é imprescindível a manifestação do Ministério Público antes de o juiz decidir sobre pedidos de prisão provisória, interceptação telefônica ou captação ambiental, quebra dos sigilos fiscal, bancário, telefônico e de dados, busca e apreensão, entre outras medidas, quando não tiverem sido requeridas pelo MP.
A ação apresentada pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, propõe que o juiz sempre ouça o Ministério Público, titular da ação penal, antes de decretar medidas cautelares e “proferir decisões que restrinjam direitos fundamentais dos cidadãos”.
II – UM REMÉDIO CONSTITUCIONAL INADEQUADO
Preliminarmente, diria que a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, que tem linhas próprias na Constituição de 1988, mais parece uma ação instituída no âmbito da Emenda Constitucional nº 1/69, a Emenda Constitucional nº 7/77, no que se chamou de “pacote de abril”, que, ao lado da representação de inconstitucionalidade, dizia respeito à representação para fins de interpretação da lei ou ato normativo federal ou estadual, outorgando ao Procurador-Geral da República a legitimidade para provocar o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal(artigo 119, I, e). e segundo a exposição de motivos apresentada pelo Congresso Nacional, esse instrumento deveria evitar a proliferação de demandas, com a fixação imediata da correta exegese da lei.
Para o ministro Gilmar Mendes(Controle de inconstitucionalidade, 1990, pág. 295) o mesmo ocorria quando a Corte Constitucional, aplicando a interpretação conforme à Constituição, declara constitucional uma lei com a interpretação que a compatibiliza com a Carta Constitucional, pois, nessa hipótese, há uma modalidade de inconstitucionalidade parcial(a inconstitucionalidade parcial sem redução do texto – o que implica dizer que o Tribunal Constitucional elimina – e atua, portanto, como legislador negativo – as interpretações por ela admitidas; mas inconciliáveis com a Constituição). Porém, interpretação fixada, como única admissível, pelo Tribunal Constitucional, não pode contrariar o sentido da norma, inclusive decorrente de sua gênese legislativa inequívoca, porque não pode a Corte atuar como legislador positivo, ou seja, o que cria nova norma.
Digo, então, com o devido respeito, que se trata de inadequação da via eleita, devendo o STF, in limine, extinguir a ação noticiada.
Não cabe a ADPF interpretar lei, esse não é seu desiderato. Essa tarefa cabia ao STF, no regime constitucional anterior, sob o pálio da Emenda Constitucional 7/77, revogada pela Constituição de 1988.
III- ADPF
Cabe lembrar que a arguição de preceito fundamental é remédio constitucional subsidiário que só deve ser ajuizado à falta de remédio inserido no direito processual comum. É instrumento próprio do processo constitucional na defesa de preceitos fundamentais.
Pode-se entender que a arguição de descumprimento de preceito fundamental brasileira, tal como posta no texto constitucional, tem raízes na Verfassungsbeschwerd, do direito alemão, que funciona como meio de queixa jurisdicional perante o Bundesverfassungericht, almejando a tutela de direitos fundamentais e de certas situações subjetivas lesadas por um ato da autoridade pública.
A discussão que trago à colação diz respeito ao que o artigo 1º da Lei 9.882/89 chama de ato do poder público.
Disse o ministro Alexandre de Moraes que deve-se ver os fundamentos e objetivos fundamentais da República de forma a consagrar maior efetividade às previsões constitucionais.
Na linha de Klaus Schlaich, Alexandre de Moraes observa que devem ser admitidas arguições de descumprimento de preceitos fundamentais contra atos abusivos do Executivo, Legislativo e Judiciário, desde que esgotadas as vias judiciais ordinárias, em face de seu caráter subsidiário.
Conforme entendimento iterativo do STF, meio eficaz de sanar a lesão é aquele apto a solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata, devendo o Tribunal sempre examinar eventual cabimento das demais ações de controle concentrado no contexto da ordem constitucional global.
O ministro Gilmar Ferreira Mendes (Jurisdição constitucional) anotou que: “A primeira vista, poderia parecer que somente na hipótese de absoluta inexistência de qualquer outro meio eficaz para afastar a eventual lesão poder-se-ia manifestar, de forma útil, a arguição de descumprimento de preceito fundamental. É fácil ver que uma leitura excessivamente literal dessa disposição, que tenta introduzir entre nós o princípio da subsidiariedade vigente no direito alemão e no direito espanhol para, respectivamente, o recurso constitucional e o recurso de amparo, acabaria para retirar desse instituto qualquer significado prático.
Observou o ministro Alexandre de Moraes: “Note-se que, em face do art. 4º, caput, e § 1º da Lei nº 9.882/99 que autoriza a não admissão de arguição de preceito fundamental quando não for o caso ou quando houver outro meio eficaz de sanar a lesividade, foi concedida certa discricionariedade ao STF, na escolha das arguições que deverão ser processadas e julgadas, podendo, em face seu caráter subsidiário, deixar de conhece-la quando concluir pela inexistência de relevante interesse público, sob pena de tornar-se uma nova instância recursal para todos os julgados dos tribunais superiores.
Anotou ainda o ministro Gilmar Mendes (obra citada) que “dessa forma, entende-se que o STF poderá exercer um juízo de admissibilidade discricionário para a utilização desse importantíssimo instrumento de efetividade dos princípios e direitos fundamentais, levando em conta o interesse público e a ausência de outros mecanismos jurisdicionais efetivos.”
Para tanto, afirmou o ministro Gilmar Mendes que a ADPF “é típico instrumento do modelo concentrado de controle de constitucionalidade (Arguição de descumprimento de preceito fundamental: comentários à Lei 9.882, de 3.12.1999. 2. ed. São Paulo: Saraiva,2011. p. 170).
A legislação, no que tange à modalidade direta de ADPF, foi enfática ao prever, em seu art. 1º, que caberá ADPF em face de ato do Poder Público. Note-se, aqui, a extensão desse termo, que não se circunscreve apenas aos atos normativos do Poder Público. Portanto, e como primeira conclusão, a ADPF poderá servir para impugnar atos não normativos, como os atos administrativos e os atos concretos, desde que emanados do Poder Público. Trata-se, já aqui, de atos não impugnáveis por via da ação direta de inconstitucionalidade Como se sabe, a arguição de descumprimento de preceito fundamental somente poderá ser utilizada, se se demonstrar que, por parte do interessado, houve o prévio exaurimento de outros mecanismos processuais, previstos em nosso ordenamento positivo, capazes de fazer cessar a situação de suposta lesividade ou de alegada potencialidade danosa resultante dos atos estatais questionados. Essa a conclusão de André Ramos (Repensando a ADPF no complexo modelo brasileiro de controle da constitucionalidade. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (Org.). Leituras complementares de direito constitucional: controle de constitucionalidade. Salvador: JusPodivm, 2007. p. 57-72)
Com o devido respeito, o Procurador-Geral da República deveria ajuizar tal remédio contra um ato concreto, qual seja as medidas tomadas no âmbito a operação policial acima noticiada, e não para obter uma interpretação conforme ao texto constitucional segundo entende.
IV – A QUESTÃO DA INTIMAÇÃO PRÉVIA: O SISTEMA ACUSATÓRIO
Assim essa ausência de intimação prévia, afrontaria o sistema acusatório diante do regramento constitucional pátrio.
Sabe-se que a Constituição ‘aboliu o sistema inquisitorial segundo o qual o Judiciário acumulava a função de julgar e acusar’.
Atualmente o juiz não mais interfere na produção de prova, nem tem a função própria nas fases investigatória e acusatória.
Cabe ao Ministério Público investigar ou acompanhar as investigações com o objetivo de formar a chamada opinio delicti, ou seja, o convencimento sobre as provas e sobre a autoria que lhe permitam concluir se há justa causa para oferecer denúncia ao juiz.
Destaque-se que esse modelo proporciona equilíbrio de forças entre acusação e defesa.
Esta é a essência da garantia do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal feita na Constituição. A jurisdição penal está indissociavelmente vinculada ao princípio do juiz isento, que não julga com parcialidade.
O sistema acusatório, inaugurado em 1988, reserva à Justiça o grave poder de julgar. A coleta de provas cabe tanto a acusação como a defesa, não se cogitando falar em condução da prova pelo magistrado.
Dir-se-á que o ministro relator daquele caso determinou a oitiva posterior do Parquet. Ora, isso não suprimiria uma eventual nulidade posterior que, certamente, será abordada em juízo pelos investigados.
A parcialidade do magistrado fica sob dúvida.
Foge o sistema acusatório, adotado pela Constituição-Cidadã de 1988, do sistema inquisitório, caracterizado pela inexistência de contraditório e de ampla defesa, com a concentração das funções de acusar, defender e julgar na figura única do juiz, e pelo procedimento escrito e sigiloso com o início da persecução, produção da prova e prolação da decisão pelo juiz.
Mas, em verdade, esse sistema acusatório vem sendo desprestigiado, e isso tem a ver com a sistemática de “supervisão judicial”, sem a qual nenhuma investigação vai ali para frente, conforme decisão tomada em QO no INQ. 2411/MT, em 10/10/2007, quando, em interpretação aos arts. 230-A a 232 do RI, deu-se um verdadeiro tiro de morte no sistema acusatório no país,
Nos inquéritos policiais em geral, não cabe a juiz ou a Tribunal investigar, de ofício, o titular de prerrogativa de foro.
Cito precedentes: INQ no 149/DF, Rel. Min. Rafael Mayer, Pleno, DJ 27.10.1983; AgR 1.793/DF”; INQ no 1.793/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, Pleno, maioria, DJ 14.6.2002; ED 1.104/DF“; PET – AgR (AgR) – ED no 1.104/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, Pleno, DJ 23.5.2003; PET no 1.954/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, Pleno, maioria, DJ 1º.8.2003; PET (AgR) no 2.805/DF, Rel. Min. Nelson Jobim, Pleno, maioria, DJ 27.2.2004; PET no 3.248/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, decisão monocrática, DJ 23.11.2004; INQ no 2.285/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, decisão monocrática, DJ 13.3.2006 e PET (AgR) no 2.998/MG, 2ª Turma, unânime, DJ 6.11.2006.
Naquele Inq. 2411/MT entendeu-se que não haveria razão plausível para que as atividades diretamente relacionadas à supervisão judicial (abertura de procedimento investigatório) sejam retiradas do controle judicial do STF.
É bem verdade que o artigo 242 do CPP permite uma medida de busca e apreensão de ofício pelo juiz ou tribunal, cuja inconstitucionalidade é evidente (artigos 3º-A e 282, § 2º do CPP).
O procurador-geral da República, portanto, com o devido respeito, fica refém da atuação de supervisão ministerial exercida por membro do STF.
No entanto, destaco que o STF ao julgar na ADi nº 5104/DF, um dispositivo de um ato baixado pelo TSE (Resolução nº 23. 396), que, em seu art. 8º, determinava que nenhum investigação, salvo flagrante, poderia ser iniciada sem a prévia determinação da justiça eleitoral, entendeu por sua inconstitucionalidade. Naquela decisão, o ministro Roberto Barroso disse que a Constituição de 1988 fez uma opção inequívoca pelo sistema penal acusatório. Disso decorre uma separação rígida entre, de um lado, as tarefas de investigar e acusar e, de outro, a função propriamente jurisdicional. Além de preservar a imparcialidade do Judiciário, essa separação promove a paridade de armas entre acusação e defesa, em harmonia com os princípios da isonomia e do devido processo legal.
Porém, no julgamento sobre a constitucionalidade dos atos contra o Poder Judiciário, o Plenário, por maioria, julgou improcedente pedido formulado em arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), em que se discutia a constitucionalidade da instauração de inquérito pelo Supremo Tribunal Federal (STF), realizada com o intuito de apurar a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e atos que podem configurar crimes contra a honra e atingir a honorabilidade e a segurança do STF, de seus membros e familiares. Por conseguinte, a Corte declarou a constitucionalidade da Portaria GP 69/2019, que instaurou o referido inquérito, e a constitucionalidade do art. 43 (1) do Regimento Interno do STF (RISTF), que lhe serviu de fundamento legal (Informativo 981).
Nesse contexto, o colegiado afirmou que o art. 43 do RISTF pode dar ensejo à abertura de inquérito, contudo, não é e nem pode ser uma espécie de salvo conduto genérico, tornando-se necessário delimitar seu significado. Isso porque a referida regra regimental trata de hipótese de investigação, e deve ser lida sob o prisma do devido processo legal; da dignidade da pessoa humana; da prevalência dos direitos humanos; da submissão à lei; e da impossibilidade de existir juiz ou tribunal de exceção. Além disso, deve ser observado o princípio da separação de Poderes, uma vez que, via de regra, aquele que julga não deve investigar ou acusar. Ao fazê-lo, como permite a norma regimental, esse exercício excepcional submete-se a um elevado grau de justificação e a condições de possibilidade sem as quais não se sustenta.
Lembro que, na época, o ministro Marco Aurélio entendeu que a portaria foi editada com base no art. 43 do RISTF. Ocorre que a Constituição Federal de 1988, ao consagrar sistema acusatório, não recepcionou o referido artigo do RISTF. Pontuou que, em Direito, o meio justifica o fim, jamais o fim justifica o meio utilizado.
Na verdade, com o devido respeito, foi nessa última decisão que envolveu, em sua concretude, os chamados atos contra o STF, que o STF entendeu não caber a obrigatoriedade da intimação prévia do Parquet. Isso criou jurisprudência.
*É procurador da República com atuação no RN aposentado.
Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.