Vidas negras importam. A luta contra o racismo nos EUA em plena pandemia

Por Robério Paulino*

A morte de George Floyd, um homem negro asfixiado até a morte por um policial branco em Minneapolis, desencadeou uma onda de protestos contra o racismo nos EUA e em todo o mundo em plena pandemia da COVID-19.  O fato revelou mais uma vez o racismo estrutural contra negros, indígenas e latinos na sociedade norte-americana, especialmente contra os primeiros. Mesmo correndo o risco de contaminação e arriscando suas vidas, milhares de manifestantes, especialmente jovens, resolveram não deixar passar em vão aquele fato bárbaro e foram às ruas protestar em dezenas de cidades de todo o país.

As polícias e a Guarda Nacional prenderam milhares de manifestantes, os governos decretaram toque de recolher. Mas não adiantou; os manifestantes desafiaram os decretos e não saíram das ruas por quase duas semanas. Ocorreram também diversas manifestações na Europa e até no Japão. Os portuários da Costa Oeste do país resolveram parar em solidariedade aos manifestantes.

O assassinato e as manifestações mostram que o racismo continua forte e latente nos EUA e em muitos países e que a luta contra ele será um dos pontos mais importantes da agenda do século XXI. Revelaram também, mais uma vez, a extrema brutalidade dos corpos policiais, como braços armados dos Estados capitalistas. A força das manifestações forçou alguns governos estaduais e municipais daquele país a anunciar mudanças nas estruturas e no treinamento das polícias, até mesmo sua dissolução, como resposta às demandas dos milhares de manifestantes que foram às ruas.

A reação dos manifestantes surpreendeu a muitos, gerou perplexidade, até porque ocorreram em plena pandemia. Mas elas são fundamentais para nos fazer lembrar como, apesar de toda tecnologia, dos grandes avanços científicos, do acesso sem precedentes à informação que integra todo o mundo, da mundialização da economia, com integração cada vez maior dos países e povos, a humanidade ainda não se livrou de práticas tão antigas e degradantes, como o racismo, em pleno século XXI. O fato é que, seja nos EUA, na Europa ou Brasil, a discriminação racial continua como uma profunda marca das sociedades.

O debate se ampliou e as manifestações fizeram com que os EUA e o mundo entrassem numa discussão sobre a origem do racismo na Idade Moderna, questionando o próprio processo de colonização dos europeus sobre o mundo e as profundas marcas que ele deixou. Em Bristol, na Inglaterra, a estátua de um comerciante de escravos foi derrubada e jogada em um rio da cidade pelos manifestantes.

Nos EUA, a estátua de Cristóvão Colombo, um patrimônio simbólico do país – navegador que iniciou as expedições às Américas há mais de cinco séculos e a colonização que matou milhões de indígenas – também se tornou um alvo dos manifestantes e precisa ser protegida pela polícia. No Brasil, a estátua de Borba Gato, um bandeirante – na verdade um caçador de escravos fugidios e matador de índios -, na Zona Sul de São Paulo, entrou no radar dos movimentos e precisa ser vigiada no momento.

No Brasil, para alguns, pretensamente, o racismo seria mais arrefecido, pela maior miscigenação ocorrida por aqui e talvez pelo suposto caráter mais “cordial” da elite escravocrata brasileira, como cunhou Sérgio Buarque de Holanda (1995). Para outros autores, essa pretensa cordialidade revelava apenas a debilidade da aristocracia rural brasileira no mundo. A discriminação racial também segue até hoje como uma das marcas mais profundas da sociedade, sendo apenas mais disfarçada.  O Brasil foi de longe a colônia que mais recebeu escravos nas Américas, quase 8 vezes mais que toda a América Britânica e os EUA juntos, como pode ser visto na tabela abaixo, extraída de Luis Felipe de Alencastro (2000).

Outros milhões morreram na travessia do Atlântico. Quando ficavam doentes, os escravos eram cruelmente jogados ainda vivos em pleno mar, para não contaminar a “carga”, sem qualquer chance de sobrevivência, como mostrou Steven Spielberg numa cena do filme Amistad. Lembremos também que no Brasil as polícias matam muitas vezes mais que nos EUA ou na Europa.

O fato é que, apesar de todos os avanços conseguidos desde o fim da escravidão nas Américas, o racismo segue sendo um dos traços estruturais em muitas sociedades e no Brasil. A violência policial não é o único fator que atinge os negros. Eles seguem com os empregos de menores salários e piores condições de trabalho, como se pode ver na composição da categoria dos garis. Moram mais nas periferias carentes das cidades, com infraestrutura de serviços deficientes, como as comunidades ou favelas.

Apesar de terem avançado em sua presença nas universidades nas últimas décadas, com as políticas de ação afirmativa, os negros ainda são absoluta minoria nos cursos mais disputados nas universidades, como Medicina e Engenharia.

É preciso relembrar que a escravidão não é uma questão apenas de raça. Foi um artifício usado pelo capitalismo nos primeiros séculos da Era Moderna. Não decorreu de maldade de um povo de uma cor sobre outro, mas de interesses econômicos poderosos, ainda que seja evidente que os brancos se beneficiaram dela. O capital também não se importou em explorar milhões de trabalhadores brancos europeus em suas fábricas, com salários miseráveis e condições de trabalho degradantes, ainda que os trabalhadores fabris fossem considerados “livres”, diferentemente dos escravos.

Antes de recorrerem à escravidão negra africana, os colonizadores europeus na América também tentaram escravizar os indígenas em suas fazendas. Mas como esses estavam em seu próprio território, resistiam a serem escravizados e se evadiam com mais facilidade, o capital recorreu à escravidão negra, já que os negros foram arrancados de suas terras na África e jogados num ambiente estranho, portanto hostil, tendo por isso tinham mais dificuldade em fugir. Assim mesmo, há exemplos heroicos de evasão, resistência e luta, como o Quilombo dos Palmares, do qual visitei o sítio há alguns anos. Em 2019, visitei também o Museu da Escravidão, em Liverpool, no qual se mostra todo sofrimento, mas também a epopeia que foi a luta dos negros contra a escravidão e por igualdade nesses últimos séculos.

Por um lado, o assassinato de George Floyd nos choca, deprime, revolta e nos faz pensar sobre quanto de brutalidade, desigualdade e violência ainda existem nas sociedades divididas em classes sociais, como o capitalismo. Por outro, a reação contra tal barbaridade, não só nos EUA, mas em todo o mundo, nos traz ânimo e nos faz acreditar nas reservas morais que ainda tem a humanidade.  O fato de termos visto um grande contingente de jovens brancos lutando ombro a ombro com jovens negros contra o racismo, enfrentando as polícias, é um dado que nos alenta, nos empolga e enche o coração de esperança. A humanidade tem futuro, apesar de tudo.

A diferença da cor da pele é apenas um detalhe biológico, uma adaptação à latitude dos locais onde viveram os diferentes povos inicialmente, ou seja, uma adaptação à maior ou menor incidência do Sol. Mas todos os ancestrais do sapiens saímos do leste da África há 70 mil anos para colonizar o planeta.

O Brasil é o país com o maior contingente negro das Américas. Isto reafirma mais que nunca a necessidade de políticas afirmativas de promoção da igualdade também por aqui, como as cotas nas universidades e no ingresso ao serviço público. O caso George Floyd e as manifestações que dele decorreram deve nos levar a refletir sobre quanto ainda é necessário avançar no combate ao racismo, a todo tipo de discriminação, desigualdade e violência em nosso país. O mundo está mudando e também precisamos avançar.

É professor da UFRN, no Departamento de Políticas Públicas, Natal.

REFERÊNCIAS

ALENCASTRO, Luiz Felipe de, O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII, São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. (26ª edição) São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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