Por Rogério Tadeu Romano*
Fala-se que o advogado Cristiano Zanin, indicado pelo atual presidente da República para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal por ter sido seu advogado em causa de notoriedade nacional, não poderia ocupar esse cargo na magistratura.
Estaria sendo ferida, para alguns, o princípio republicano.
Ouso discordar.
Trago a palavra de um dos maiores constitucionalistas vivos, o ministro aposentado Celso de Mello, em manifestação publicada pelo site Consultor Jurídico, em 2.6.23.
Ali se disse:
“Vale relembrar, neste ponto, que Felix Frankfurter e Robert H. Jackson, grandes Juízes da Suprema Corte americana, eram amigos e haviam sido conselheiros pessoais do Presidente Franklin D. Roosevelt, quando de sua indicação ao Tribunal! O mesmo ocorreu com outros Juízes da Suprema Corte americana, nomeados por Presidentes de quem eram amigos pessoais ou aliados políticos: Roger B. Taney (indicado pelo Presidente Andrew Jackson), Stephen Field (Presidente Abraham Lincoln), Harlan Fiske Stone (Presidente Calvin Coolidge) e Sherman Minton (Presidente Harry S. Truman).
Fred M. Vinson, por sua vez, tornou-se Presidente da Suprema Corte dos EUA por nomeação do Presidente Harry S. Truman, de quem havia sido conselheiro e confidente.
Cabe também relembrar que vários Ministros do STF foram indicados / nomeados por Presidentes da República, em razão de preencherem os requisitos constitucionais para efeito de legítima investidura nesse cargo judiciário, mas de quem haviam anteriormente sido aliados políticos ou auxiliares, na condição de Ministros de Estado, de assessores diretos ou de Consultor-Geral da República, como, por exemplo, entre vários, o Ministro Hermes Lima (Presidente João Goulart, de quem foi, entre outros cargos ministeriais, Ministro das Relações Exteriores e Chefe do Gabinete Civil, além de haver sido Primeiro-Ministro durante o regime parlamentar de Governo ), Ministro Célio Borja (Assessor Especial do Presidente Sarney), Barão de Lucena (amigo pessoal e conselheiro político do Presidente Marechal Deodoro da Fonseca), Ministro Epitácio Pessoa (Presidente Campos Salles, de quem havia sido Ministro da Justiça), Plínio Casado (aliado político do Presidente Getúlio Vargas, que dele fizera, em momento precedente, interventor federal no Estado do Rio de Janeiro), Ministro Clovis Ramalhete (Presidente João Figueiredo, de quem foi Consultor-Geral da República) e Ministro Rodrigo Octavio (Presidente Washington Luís, de quem foi Consultor-Geral da República)”.
O caso de Clóvis Ramalhete é emblemático.
Foi consultor-geral da República na presidência de João Figueiredo, de 16 de março de 1979 a 7 de abril de 1981, no governo de João Figueiredo. O mesmo presidente o nomearia ministro do Supremo Tribunal Federal, cargo que ocupou de 8 de abril de 1981 até 25 de fevereiro de 1982.
O ministro Gilmar Mendes exerceu diversos cargos na administração pública federal, tais como consultor jurídico da Secretaria Geral da Presidência da República, assessor do Ministério da Justiça, subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil e advogado-geral da União, antes de sua nomeação ao STF.
Epitácio Pessoa, uma das pessoas mais poderosas da história da República, foi ministro da Justiça no Governo Campos Sales, quando convidou Clóvis Beviláqua, seu colega como professor da Faculdade de Direito do Recife, para elaborar o projeto de Código Civil, que veio a ser sancionado em 1916, e exerceu simultaneamente o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal e procurador-geral da República de 1902 a 1905.
Plínio Casado, após a Revolução de 1930 foi nomeado interventor federal no Rio de Janeiro, cargo em que permaneceu entre 28 de outubro de 1930 e 29 de maio de 1931, quando foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal, por decreto de 1 de junho de 1931, na vaga aberta com a aposentadoria de Geminiano da Franca; tomou posse do seu cargo em 4 de junho. Se aposentou neste cargo em 1 de outubro de 1938.
O ministro Dias Toffoli foi advogado do Partido dos Trabalhadores (PT) nas campanhas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 1998, 2002 e 2006. Foi chefe de gabinete da Secretaria de Implementação das Subprefeituras do Município de São Paulo em 2001, durante a gestão da prefeita Marta Suplicy. De março de 2001 a dezembro de 2002, atuou na advocacia privada como sócio do Escritório Toffoli & Telesca Advogado (Wikipédia).
Victor Nunes Leal foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, por decreto de 26 de novembro de 1960, do Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, na vaga decorrente da aposentadoria do Ministro Francisco de Paula Rocha Lagôa, tendo tomado posse em 7 do mês seguinte.
Victor Nunes Leal passou por diversos cargos públicos durante o governo do seu particular amigo, Presidente Juscelino Kubitschek. A admiração de JK era tanta pelo Ministro Victor Nunes Leal que, ao construir Brasília, Juscelino deu o nome ao Palácio da Alvorada em homenagem ao seu amigo nascido no distrito de Alvorada, em Carangola, Minas Gerais.
Ainda se tem a opinião de outros ministros ainda em outra reportagem do site Consultor Jurídico:
O ministro Gilmar Mendes postou em seu Twitter uma mensagem elogiando o indicado. “É alvissareira a notícia de que o nome do brilhante advogado @Cristianozaninm foi encaminhado à apreciação do Senado Federal. O Dr. Zanin sempre demonstrou elevado tirocínio jurídico em sua trajetória profissional.”
Outros ministros comentaram a indicação antes de entrar no Plenário da corte para a sessão, no dia 26.5.23. O ministro Luís Roberto Barroso disse que Zanin atuou com “elevada qualidade profissional” em casos que tramitaram no Supremo e demonstra ser um “advogado sério e competente”. “Da minha parte, será muito bem-vindo.”
O ministro André Mendonça desejou “sucesso” a Zanin. “Ótima, muito boa”, disse o ministro Nunes Marques sobre a indicação. O ministro Luiz Fux qualificou a escolha de Lula da mesma forma. “Ótima” escolha, afirmou.
A indicação de Zanin para o STF não afronta ao princípio republicano.
Roque Antônio Carrazza (Curso de Direito Constitucional Tributário. 24ª Ed. Sâo Paulo-SP, Editora Malheiros. p. 81 e seguintes) assim define o princípio republicano:
“República é o tipo de governo, fundado na igualdade formal das pessoas, em que detentores do poder político exercem-no em caráter eletivo, representativo (de regra), transitório e com responsabilidade.”
Ele é fundado na igualdade formal das pessoas: numa verdadeira República não pode haver distinções entre nobres e plebeus, entre grandes e pequenos, entre poderosos e humildes. É que, juridicamente, nela não existem classes dominantes, nem classes dominadas. Assim, os títulos nobiliárquicos desaparecem e, com eles, os tribunais de exceção. Todos são cidadãos; não súditos.
De fato, a noção de República não se coaduna com os privilégios de nascimento e os foros de nobreza, nem, muito menos, aceita a diversidade de leis aplicáveis a casos substancialmente iguais, as jurisdições especiais, as isenções de tributos comuns, que beneficiem grupos sociais ou indivíduos, sem aquela “correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida (…) e a desigualdade de tratamento em função dela conferida”, de que nos fala Celso Antônio Bandeira de Mello.
Pelo princípio republicano, os detentores de poder exercem sempre secundum constitutionem e em nome do povo.
Estabelece a Constituição Federal que a nomeação dos ministros do Supremo Tribunal Federal é tarefa do presidente da República, depois de aprovada a escolha por maioria absoluta do Senado Federal (art. 101, parágrafo único, CF/88). Eles serão escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada.
Para tanto, o exercício desse controle demandado constitucionalmente é feito por uma Comissão Permanente, prevista no art. 72, inciso III do Regimento Interno do Senado, mais especificamente nominada de “Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania” – CCJ, sendo sua competência de julgamento acerca da escolha dos Ministros do STF descrita no art. 101, II, i, ab initio, daquele diploma legal. É uma comissão composta de 27 titulares (art. 77, III, RISF – Regimento Interno do Sendo Federal) e são designados pelos líderes dos partidos políticos e pelo Presidente da Comissão, “tanto quanto possível, a participação proporcional representações partidárias ou dos blocos parlamentares com atuação no Senado Federal” (art. 78, RISF).
Trata-se de um ato administrativo complexo.
Lembro a experiência vivida no Brasil com as nomeações do então presidente da República, Floriano Peixoto, para ministro do Supremo Tribunal Federal.
Floriano Peixoto, que em seu governo agiu como ditador, não tinha pelo Judiciário o entendimento de vê-lo um Poder independente.
O episódio da recusa de indicações de ministros pelo Senado Federal foi, talvez, o mais significativo.
Em 128 anos, só cinco indicados pelo presidente para ocupar vaga de ministro do STF foram barrados pelos parlamentares, de acordo com o Senado. E todas as rejeições ocorreram em 1894, no governo do marechal Floriano Peixoto.
O caso mais emblemático é o de Cândido Barata Ribeiro, médico-cirurgião e professor de Medicina no Rio. Ele tinha grande influência na política de época, atuou no movimento pelo fim da escravidão e da monarquia, chegou a atuar como ministro do STF (naquela época, o escolhido podia começar os trabalhos antes dos senadores votarem a indicação) e foi reprovado depois de dez meses de trabalho. O motivo foi que ele não tinha formação jurídica.
Depois do caso de Barata Ribeiro, Floriano indicou outros onze nomes para o STF. Quatro foram rejeitados: o general do Exército Ewerton Quadros e o então diretor-geral dos Correios Demóstenes Lobo, ambos também por não terem formação jurídica. Também foram recusados o general Galvão de Queiróz e o subprocurador da República Antônio Seve Navarro – os dois eram formados em Direito, mas não foram considerados “expoentes do mundo jurídico”, de acordo com o Senado.
Em decreto de 23 de outubro de 1893, foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, preenchendo a vaga ocorrida com o falecimento do Barão de Sobral; tomou posse em 25 de novembro seguinte.
Submetida a nomeação ao Senado da República, este, em sessão secreta de 24 de setembro de 1894, negou a aprovação, com base em Parecer da Comissão de Justiça e Legislação, que considerou desatendido o requisito de “notável saber jurídico” (DCN de 25 de setembro de 1894, p. 1156). Em consequência, Barata Ribeiro deixou o exercício do cargo de Ministro em 24 do referido mês de setembro.
Essa foi a rejeição mais famosa, mas outras ocorreram também.
Floriano Peixoto havia feito a nomeação aproveitando-se de uma brecha na lei. A Constituição de 1891 exigia dos ministros do STF “notável saber” — sem especificar o tipo de saber.
O Arquivo do Senado, em Brasília, guarda o histórico parecer emitido pelos senadores no Palácio Conde dos Arcos, a sede da Casa, em setembro de 1894. Diz o documento:
“Mentiria a instituição [STF] a seus fins se entendesse que o sentido daquela expressão ‘notável saber’, referindo-se a outros ramos de conhecimentos humanos, independesse dos que dizem respeito à ciência jurídica, pois que isso daria cabimento ao absurdo de compor-se um tribunal judiciário de astrônomos, químicos, arquitetos”.
Em outro ponto do parecer, os senadores foram ainda mais duros e escreveram que, na qualidade de prefeito do Distrito Federal, ele havia demonstrado “não só ignorância do direito, mas até uma grande falta de senso jurídico”. De fato, Barata Ribeiro várias vezes agiu com truculência e governou passando por cima do Conselho Municipal (a atual Câmara Municipal).
No total, até o momento, ocorreram 5 rejeições de nomes indicados para o STF, contemplando os seguintes nomes: (1) Barata Ribeiro; (2) Innocêncio Galvão de Queiroz; (3) Ewerton Quadros; (4) Antônio Sève Navarro; e (5) Demosthenes da Silveira Lobo.
Para Barata Ribeiro, o “não” dos senadores não foi novidade. Em 1893, ele havia passado por um constrangimento parecido. Após meses governando a capital, nomeado por Floriano, o médico foi defenestrado porque os senadores não lhe deram a aprovação. Naquele tempo, também o prefeito do Rio precisava do crivo do Senado.
A recusa dos senadores não foi exclusivamente técnica. Houve razões políticas. Nem o Senado nem o STF viam Floriano com simpatia. O segundo presidente, que governou de 1891 a 1894, protagonizou episódios de desrespeito às leis e de violência — daí a alcunha Marechal de Ferro.
Depois de Barata Ribeiro, Floriano indicou onze nomes para o STF. O Senado rejeitou quatro. Dois deles também não tinham formação em direito: Ewerton Quadros, general que havia sido decisivo para o fim da Revolução Federalista, e Demóstenes Lobo, diretor-geral dos Correios.
Os outros recusados eram graduados em direito, mas não chegavam a ser expoentes do mundo jurídico: o general Galvão de Queiroz e o subprocurador da República Antônio Seve Navarro. De qualquer forma, nunca se souberam os motivos exatos que levaram o Senado a não aceitar as indicações. As sessões eram secretas, e as atas se perderam. A divulgação do parecer sobre Barata Ribeiro foi exceção.
Sem ter detalhes sobre as sessões do Senado, o jornal O Paiz precisou se desculpar com os leitores: “Não entram cronistas nem repórteres no recinto, os empregados mais familiares da Casa são banidos do local e as próprias paredes pouco ouvem”.
Diz a servidora do STF Maria Ângela Oliveira, autora de um estudo sobre as cinco nomeações recusadas em 1894:
— Apesar dos problemas, não se pode dizer que o método de escolha dos ministros era ruim. Antes, o imperador escolhia livremente os conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça [antecessor do STF]. Depois, a indicação do Executivo para o Judiciário passou a depender do aval do Legislativo. Isso tornou a escolha dos ministros democrática e fortaleceu a independência dos três Poderes.
Constatada a lacuna da Constituição de 1891, todas as Constituições posteriores deixaram claro que os ministros do STF precisariam ter notável saber “jurídico”. O processo no Senado foi aperfeiçoado. As sessões se tornaram públicas, e o indicado passou a ser sabatinado pelos senadores.
Barata Ribeiro era uma personalidade poderosa. A perda dos cargos de prefeito e ministro não lhe abalou o prestígio político. Poucas semanas depois de ser retirado do STF, ele fundaria o Partido Republicano Constitucional. Cinco anos mais tarde, ironicamente, seria eleito senador e passaria a ser colega de muitos dos políticos que lhe haviam negado a prefeitura e o Supremo Tribunal Federal.
A título de exemplo, alguns juristas declinaram dessa indicação do presidente da República: Afonso Pena (na presidência de Prudente de Morais), Francisco Mendes Pimentel (convidado por Wenceslau Braz e Getúlio Vargas), Clóvis Beviláqua (convidado por Hermes da Fonseca e Washington Luís), Milton Campos (convidado por Castello Branco e Emílio Garrastazu Médici); Hely Lopes Meirelles (convidado por Ernesto Geisel) e Sobral Pinto (convidado por Juscelino Kubistchek). Todos grandes juristas.
Já nos EUA, o Senado rejeitou mais de uma dezena de nomeações para a Suprema Corte, sendo que várias vezes o chefe de Estado decidiu retirar a indicação do candidato por ele escolhido, quando percebeu que não teria a aprovação senatorial.
Ronald Reagan indicou Douglas Ginsburg, que foi rejeitado depois que se soube que fumara maconha quando adulto. O outro ocorreu em 2005, quando George W. Bush indicou uma assessora, Harriet Miers. Considerada despreparada até pelos senadores governistas, só não sofreu uma rejeição humilhante porque desistiu da indicação antes do início da votação.
*É procurador da república aposentado com atuação no RN.
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