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Crônica

Da Rússia, com terror

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

O título desta crônica é uma corruptela do título em inglês de um romance do britânico Ian Fleming (1908-1964), “From Russia, with Love” (1957), protagonizado pelo mui famoso agente secreto 007, o Bond, James Bond. Todavia, a inspiração para este riscado vem da história de um outro escritor e de um outro espião ficcional – Yulian Semyonov (1931-1993) e Stierlitz, respectivamente –, russos/soviéticos, dos quais, confesso, nunca tinha ouvido falar, até ler um texto no The Sunday Times Culture (de 9 de julho de 2023), de Mikhail Zygar, intitulado “The Soviet James Bond Who Shaped Putin” (algo como “O James Bond soviético que inspirou/formou Putin”).

A história de Semyonov e de seu espião Stierlitz é realmente curiosíssima.

Se durante a Guerra Fria, nós do Ocidente tínhamos os britânicos Ian Fleming, Graham Greene (1904-1991) e John le Carré (1931-2020), pelas bandas da então União Soviética eles tinham o tal Yulian Semyonov, cujos livros ali vendiam horrores (e desculpem o trocadilho). O seu Max Otto von Stierlitz, com esse nome alemão pomposo, era, não coincidentemente, um espião soviético infiltrado nas hostes nazistas. O seu livro/thriller de maior sucesso foi “Seventeen Moments of Spring” (“Семнадцать мгновений весны”, no original russo), de 1969. Em 1973, esse título virou série de TV de maior sucesso ainda. A vida parava para assisti-la, mulheres e homens, velhos e jovens, tipo derradeiro capítulo das antigas novelas da Globo. Outras adaptações vieram. Semyonov e sobretudo o espião Stierlitz, desde então, viraram mitos na Mãe Rússia.

“Mas por que os livros de Semyonov exerceram uma influência tão poderosa nas mentes influenciáveis?”, indaga o autor de “The Soviet James Bond Who Shaped Putin”. Para além da qualidade literária em si, “embora os enredos sejam fictícios, eles são repletos de pessoas reais e ambientados em cenários históricos. Isso deu um toque autêntico a Stierlitz e suas aventuras, deixando os leitores tão seduzidos que se lembravam de passagens da história assim como contada por Semyonov”. Ademais, Semyonov colaborou com a KGB ao longo dos anos. Foi um chamado “agente de influência”. Seus textos eram muito populares no meio do serviço secreto soviético, sobretudo no tempo de Yuri Andropov (1914-1984), chefe da KGB por 15 anos e, em seguida, o líder da União Soviética, como Secretário-geral do Partido Comunista. Andropov sugeriu enredos para Semyonov e deu carta branca para muitas coisas. E mais recentemente, já na era Boris Yeltsin (1931-2007), o espião Stierlitz venceu uma pesquisa sobre quem o público gostaria, dentre as personagens do cinema, de ver como presidente da Rússia. Isso é muito mais do que muito.

É nesse contexto que entra Vladimir Putin (1952-). Segundo o autor de “The Soviet James Bond Who Shaped Putin”, o autocrata russo, quando estudante, tinha um herói, o espião soviético Stierlitz: “as aventuras de guerra do espião fictício Stierlitz encantaram uma nação na era da Guerra Fria – incluindo o jovem que subiria na hierarquia da KGB para governar a Rússia. Stierlitz inspirou Vladimir Putin a ingressar na KGB”. E mais: as aventuras de Semyonov/Stierlitz “plantaram ideias na mente de Putin que se transformaram nos mitos históricos que o líder russo usa para justificar sua guerra contra a Ucrânia”. Um romance em especial deve ser referido, “Third Card” (“Третья карта”), de 1973: “A ação se dá em 1941, Stierlitz lutando contra nacionalistas ucranianos que colaboram com Hitler. Foi a partir desse romance que Putin soube de Stepan Bandera [1909-1959], o divisivo e controverso líder da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) durante a Segunda Guerra Mundial”. De fato, Bandera liderou uma campanha por uma Ucrânia independente da URSS e viu os nazistas como aliados nessa luta. Mas Hitler não apoiava uma Ucrânia independente e Bandera acabou em um campo de concentração. Todavia, esses anos de guerra são contados em “Third Card” de forma diversa: “Bandera é retratado como um sádico criminoso, um agente pago por seus mestres nazistas. (…). Hoje a propaganda russa ainda se refere a ‘banderitas’, usando o termo de forma intercambiável com ‘fascista’. É usado repetidamente por Putin e seus apoiadores, que pretendem pintar o governo da Ucrânia como um bando ilegal de usurpadores fascistas. O mito de Bandera sustentou a justificativa de Putin para a invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022 como ‘desnazificação’”.

Curioso, se não fosse imensamente trágico.

Bom, andei catucando a Internet, mas não consegui achar edições de Semyonov em português (por isso a citação dos títulos em inglês). Vou continuar procurando, para ver se leio algo no nosso idioma. Sem correr o risco de compartilhar as ideias de Putin ou de autocratas assemelhados, acredito. Ainda sei diferenciar a realidade da ficção.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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