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O fim da saída temporária

Por Rogério Tadeu Romano*

O Senado aprovou projeto de lei que restringe a “saidinha”, a saída temporária de presos em datas comemorativas, e veda a concessão em casos de crime hediondo ou cometido com violência ou grave ameaça. O texto voltará para a Câmara, que havia aprovado mudança mais drástica, com o fim integral. O benefício é dado hoje a quem cumpriu pelo menos um sexto da pena, no caso de primeira condenação, e um quarto, quando reincidente.

A Lei Anticrime sancionada em dezembro de 2019 pelo presidente Jair Bolsonaro acabou com a saída temporária de presos que cometeram crimes hediondos com morte da vítima.

A medida, porém, só será aplicada a crimes cometidos após o texto entrar em vigor, a partir do dia 23 de janeiro de 2020.

Mas, sob o noticiado projeto de “endurecimento” da execução penal quanto ao benefício aqui discutido disse a Folha, naquele editorial:

“Embora não desprezível, a proporção de presos que não retornam da saída temporária é relativamente baixa. Em São Paulo, por exemplo, cerca de 95% dos favorecidos no Natal de 2020 voltaram à prisão. Condenados por crime hediondo com morte não têm direito ao benefício desde 2019.”

A Lei de Execução Penal, em seu artigo 122, prevê a possibilidade de concessão de saída temporária aos sentenciados que se encontrem a cumprir pena em regime semiaberto. Tal benefício tem por finalidades viabilizar a reintegração social do apenado, bem como desenvolver o senso de autodisciplina.

O benefício da saída temporária tem como objetivo a ressocialização do preso e é concedido ao apenado em regime mais gravoso – semiaberto –, não se justifica negar a benesse ao reeducando que somente se encontra em regime menos gravoso – aberto, na modalidade de prisão domiciliar –, por desídia do próprio Estado, que não dispõe de vagas em estabelecimento prisional compatível com o regime para o qual formalmente progrediu.

Há uma visão preconceituosa com relação à saída temporária, conhecida como “saidinha”.

Como salienta Suzane Jardim:

“O regime semiaberto e as saidinhas são medidas que tentam integrar o detento à sua comunidade de origem, garantindo assim que existam vínculos fora da prisão. Tal medida não é questão de benevolência com criminosos — é simplesmente um método para evitar que o ex-detento volte a cometer crimes quando retornar à sociedade”.

Certamente o projeto assim referenciado se apoia em pesquisas que apontam que cerca de 2,3mil presos não voltaram aos presídios após o recesso de fim de ano de 2015. Em SP, cerca de 50 mil presos não voltaram às celas dentro de um período de 10 anos.

Para os que querem eliminá-lo o argumento é de que “o benefício já se mostrou ineficaz para reintegrar o reeducando à sociedade. Os fatos assim demonstram. Não tem se prestando para ser uma espécie de pré-requisito para um futuro benefício de livramento condicional.”

Razões de cunho social ou até etiológica poderiam conduzir a demonstração da necessidade da extinção dele.

Carlos Eduardo Machado e Ignácio Machado (Fim da saída temporária ameaça ressocialização e pode aumentar insegurança, in Consultor Jurídico, em 18.24) afirmaram que o fim da saída temporária é um retrocesso na política de execução penal e afirmaram:

“Portanto, a supressão das saídas temporárias, sem o devido debate e análise, representa um retrocesso nas políticas de execução penal e uma ameaça aos princípios constitucionais que devem reger o sistema penitenciário.

A reintegração social dos apenados deve ser o objetivo central da execução penal, conforme estabelecido pela Lei de Execução Penal e pelos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Por conta de casos pontuais de mal uso do benefício, tentam generalizar e quebrar um instituto que tem uma história de êxito.

Pelos erros de dezenas querem punir milhares. Seria como proibir a circulação de veículos automotores nas ruas por conta do grande número de atropelamentos. Trata-se de uma resposta punitiva meramente simbólica e ineficaz.

Em síntese, é imperativo que haja um debate aberto e fundamentado sobre as implicações deste projeto, com a participação de todos os setores da sociedade, incluindo especialistas em direito penal, organizações de direitos humanos e os órgãos do sistema de justiça criminal.

A proposta de proibição das saídas temporárias subestima a importância deste benefício para a ressocialização dos apenados e para a segurança pública.

A manutenção e o aprimoramento deste mecanismo, com foco na fiscalização e no acompanhamento efetivo dos beneficiados, surgem como alternativas mais alinhadas aos princípios de justiça restaurativa e ao objetivo último da pena: a reintegração do indivíduo à sociedade.”

Ora, só o exame do caso concreto resolverá o caráter mais favorável ou mais severo da lei. Deve ser aplicada ao acusado a lei que lhe for mais favorável, no confronto das leis no tempo, renegando-se a solução que se faça no mero campo de critérios que venham a ser taxados de vacilantes.

Há na discussão da saída temporária uma forma de aplicar teorias que visam a tratar o apenado dentro de um etiquetamento social a vê-lo dentro dos limites da culpabilidade do caráter em uma linha que nos lembra Lombroso. Vale lembrar que “a teoria do etiquetamento criminal muda o foco de pesquisa do crime ou do criminoso e passa a analisar o problema da estigmatização, deslocando o problema criminológico do plano da ação para o plano da reação.”

Quanto à fiscalização do apenado beneficiado com a saída temporária, ressalta-se que, embora a lei a autorize sem necessidade de escolta, a LEP dispõe que o Juízo da execução penal, se entender necessário, poderá concedê-la aplicando monitoração eletrônica, possibilitando-se, assim, uma fiscalização indireta, nos termos dos art. 122, § 1º e 146-B, inc. II da LEP.

Para tanto, como ensinaram Júlio F. Mirabete e Renato N. Fabbrini (Execução Penal: comentários à Lei n. 7.210, de 11-7-1984. 12. ed. São Paulo: Atlas S.A., 2014, p. 544): “[…] constituem, assim, verdadeiro meio de prova que permite verificar se o condenado alcançou um grau de resistência que lhe permite vencer as tentações da vida livre e um sentido de responsabilidade suficiente para não faltar à confiança que lhe foi depositada ao lhe deferir o benefício”.

O benefício da saída temporária que pode ser objeto dos seguintes apontamentos: a saída temporária é destinada aos condenados que cumprem pena em regime semiaberto, sem vigilância direta nos seguintes casos: visita à família; frequência a curso supletivo profissionalizante bem como se segundo grau ou superior na Comarca do Juízo da Execução; participação em atividades que concorram para o convívio social.

Aqui podem ser utilizados equipamentos de monitoração eletrônica sem que haja interferência excessiva ao direito à intimidade do apenado, na justa medida da necessidade.

Tem direito o apenado a tal benefício na medida em que cumpre o regime semiaberto e que até a saída tenha cumprido 1/6 da pena total se for primário ou ¼ se for reincidente.

É a condição para adaptação ao livramento condicional.

De acordo com a proposta, se o Projeto for aprovado, a pessoa presa só poderá obter o benefício da saída temporária uma única vez ao ano, por prazo não superior a sete dias, tendo por condição ser considerado réu primário, ter comportamento adequado e ter cumprido mais de um sexto da pena.

Atualmente, conforme a Lei de Execução Penal, a saída temporária pode ser concedida até cinco vezes ao ano para que a pessoa visite a família, estude ou desenvolva alguma atividade que contribua para o retorno ao convívio social.

Em regra, as saídas temporárias ocorrem em datas comemorativas específicas (com caráter familiar) como Natal, Páscoa, Dia das Mães e Dia dos Pais, e não podem ultrapassar, ao longo do ano, o período de 35 dias. Os critérios para concessão desse benefício e as condições impostas, como o retorno ao estabelecimento prisional no dia e hora determinados, são disciplinados por portaria da vara de execuções penais.

A Lei de Execução Penal prevê a saída temporária para frequentar curso supletivo profissionalizante, segundo grau ou faculdade. O curso deve ser na comarca onde o sentenciado cumpre pena.

Nesse caso, o preso sairá todo dia somente o tempo necessário para assistir às aulas, até terminar o curso, condicionando ao bom aproveitamento, sob pena de revogação.

Por certo, não há lugar quando da efetivação da saída temporária para o apenado frequentar bares e boates ou locais semelhantes no referenciado período.

Em síntese, o art. 122, incs. I, II e III, da LEP determina que a autorização para saída temporária será concedida, sem vigilância direta, para as seguintes finalidades: i) visita à família; ii) frequência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução4; iii) participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social.

Sobre ele dispôs o item 129 da Exposição de Motivos da LEP: “As saídas temporárias são restritas aos condenados que cumprem pena em regime semiaberto (colônias). Consistem na autorização para sair do estabelecimento para, sem vigilância direta, visitar a família, frequentar cursos na Comarca da execução e participar de atividades que concorram para o retorno ao convívio social (artigo 121 e incisos). A relação é exaustiva.”

No período em que estiver no benefício não poderá o apenado frequentar bares, boates ou outros lugares similares.

Estaríamos diante da falência do instituto para a execução penal? Estaria esse benefício sendo mal aplicado?

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

 

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Paulinho Freire abraça o bolsonarismo pensando no segundo turno, mas entrega eleitor de Lula de bandeja a Carlos Eduardo

Ao assinar o pedido de impeachment do presidente Lula (PT) por causa das críticas que ele fez ao massacre que o governo de Israel faz aos palestinos, o deputado federal Paulinho Freire (União) fez um aceno ao eleitor bolsonarista.

Em terceiro lugar na última pesquisa divulgada pelo Instituto AgoraSei, Paulinho quer atrair o eleitor bolsonarista para sonhar com um segundo turno.

Para o momento a estratégia faz sentido.

Mas lá na frente ele pode pagar um preço alto. É que esse posicionamento será lembrado pelo eleitor lulista e em um eventual embate com o líder folgado nas pesquisas Carlos Eduardo Alves (PSD) ele perderia o eleitor do presidente que venceu na capital potiguar nos dois turnos em 2022 e mantém bons índices de aprovação.

Paulinho agiu pensando no presente sem pensar no futuro.

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Mossoró pintada de povo e a cultura popular no carnaval

Por Plúvia Oliveira*

Mossoró, como município central da região Oeste, tem, historicamente, um papel de protagonismo na cultura popular. Desde o cordel, teatro, a carnaval de rua. Foi, por muito tempo, um arsenal de arte feita do povo, para o povo. Prova disso é a presença resistente, no imaginário popular, da boneca Maria Ispaia Brasa, os carnavais de bairros, como Carnabuco (Rua Joaquim Nabuco), Carnacocota, Zé da Porteira, Sapo da Lagoa (Lagoa do Mato) e Os Ursos, tradição inteiramente nossa, que denota, desde sempre, a espontânea vontade de pintar Mossoró com nossas cores.

De início, é importante resgatarmos como nossas histórias se encontram e como se deu o surgimento de alguns dos nossos símbolos carnavalescos, especialmente Maria Ispaia Brasa, que surge com um tom de justiça social, ao ocupar o carnaval da cidade com pessoas que sempre foram retiradas desses espaços. Idealizada em 2001, pela atriz Tony Silva e a socióloga Ivonete Soares, Maria Ispaia Brasa era uma tentativa de resgate das tradições dos bonecos gigantes no carnaval de Mossoró e da cultura negra. A boneca foi uma criação do Raízes – Movimento Negro de Mossoró e passou a ser cuidada pelo grupo Amigos da Boneca e do Centro de Estudos, Pesquisas e atividades Culturais “Negro e Lindo”. Um diferencial da boneca Maria Ispaia Brasa é que ela saia apenas às terças-feiras de carnaval, num trajeto que se iniciava na casa da atriz Tony Silva e em seu percurso visitava a casa de todos os foliões que fizeram história no carnaval de Mossoró.

Nesse remonte, Os Ursos aparecem como protagonistas. Tradição popular movimentada principalmente por jovens da periferia que rodam as ruas de seus bairros com uma roupa feita de retalhos e máscaras assustadoras que imitam um urso ou algum monstro. Os ursos dançam e pulam ao som de tambores e taróis para pedir dinheiro a quem estiver nas calçadas, para financiamento ou dos blocos ou do próprio carnaval do grupo de urso. O momento mágico para as crianças era quando acontecia um encontro entre ursos: dois ou mais grupos fechavam a rua em que estivessem e os ursos brincavam no meio de uma roda feita pelas bandas que os acompanhavam. Os ursos fazem parte da prévia de carnaval, começando a rodar já depois do 6 de janeiro e indo até os dias de Momo.

Para além disso, muito fortemente nas décadas de 1970 e 1980, o carnaval de rua em Mossoró era trajeto central, com os carnavais de clubes e associações como Clube Ypiranga e a Associação Cultural e Desportiva Potiguar (ACDP), além da AABB e BNB Clube que organizaram os primeiros “Blocos de Salão” nas sedes dessas agremiações. A diferença é que esse modelo reúne a elite mossoroense no carnaval até a década de 70, com o desfile dos blocos acontecendo na Coronel Gurgel, que promovia competições de fantasias.

Com um processo de abandono e esvaziamento do fomento à cultura popular, a partir do poder executivo da cidade, o carnaval de Mossoró ficou sem possibilidade de ir às ruas ou de se movimentar por conta própria, sem investimentos. Isso denota o interesse político de silenciar, de maneira direta, a periferia da cidade que não consegue acessar os espaços elitizados, que escolhem quem pode ou não viver a cidade (em fevereiro e durante todo o ano). O desfile de bonecos, as saídas das escolas de samba e os carnavais de bairros foram, aos poucos, sendo extintos. Mossoró, antes pintada de povo, se acinzentou.

No entanto, a cultura popular, não podendo ser diferente, resiste. Prova disso é a tentativa contínua de resgatar as expressões do povo nas ruas. Em 2024, o Bloco Alô Frida completa 10 anos de sua criação. Surgindo como alternativa feminista, auto-organizada por mulheres e possibilidade da população mossoroense ocupar a cidade, dizendo não a todas as opressões e gritando qual o mundo, a sociedade e o carnaval dos nossos sonhos, este ano, na quinta-feira que antecede os festejos carnavalescos, o bloco trouxe de volta às ruas, com apoio do Governo do Estado, o desfile dos bonecos e outras tradições que construíram, por muito tempo, a nossa identidade. Fazer de Mossoró, novamente, uma cidade pintada de povo, é resistir ao projeto político de marginalização dos nossos corpos e vidas.

*É gestora ambiental.

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Houve crime contra a ordem democrática?

 Por Rogério Tadeu Romano*

Divulgado pelo Supremo Tribunal Federal, o vídeo de uma reunião de julho de 2022, com a presença do então presidente da República e ministros de Estado, gerou forte debate. O que ali se presencia é a execução da tentativa de um golpe de Estado ou seriam “apenas” atos preparatórios desse crime? Como indagou Nicolau da Rocha Cavalcanti (Bolsonaro cometeu crime de tentar um golpe?, in Estadão, em 14.2.24).

Ainda expôs, naquele artigo, Nicolau da Rocha Cavalcanti, que a tipificação do “tentar depor” foi precisamente o modo encontrado pelo legislador de assegurar que o Estado tenha meios de defender a democracia antes do golpe.

Ali disse Nicolau da Rocha Cavalcanti, naquela manifestação:

“Afirmar que todas as ações prévias ao golpe de Estado propriamente dito (a deposição do governo) seriam meros atos preparatórios é minar a eficácia protetiva do art. 359M, além de representar um olhar simplista sobre o que é um golpe – sempre um processo complexo de ações, e não um único ato numa hora determinada. Tem-se aqui mais um motivo para a não divulgação seletiva de elementos probatórios: é preciso compreender o todo.

O legislador foi prudente. Para não instituir um tipo penal muito amplo, violando o princípio da legalidade, determinou que, para haver crime, a tentativa de deposição deve se dar “por meio de violência ou grave ameaça”. Entendo que um presidente da República, reunido com seus ministros de Estado, atuando para que o resultado da eleição não fosse respeitado constitui, sim, uma grave ameaça. Isso é muito diferente do que alguém escrever, num grupo de WhatsApp, “não podemos deixar o Lula assumir”.

O Código Penal prevê não apenas os crimes e as respectivas penas. Na sua Parte Geral, estabelece como esses crimes devem ser aplicados – e essa aplicação normativa é o que distingue, entre outras coisas, a sentença judicial da mera opinião. Por hipótese, em muitos casos do 8 de Janeiro talvez não haja o preenchimento da tipicidade subjetiva, em especial acerca da compreensão de “governo legitimamente constituído”. Como se sabe, “o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo” (art. 20 do Código Penal). De toda forma, a situação é outra, por exemplo, quando se refere a alguém que, para assumir o cargo, jurou cumprir a Constituição e, mais tarde, sancionou a própria Lei n.º 14.197/2021.”

A tipificação do ‘tentar depor’ foi o modo de assegurar que o Estado tenha meios de defender a democracia antes do golpe. Para o caso, houve, em verdade, uma tentativa de autogolpe.

Um autogolpe é uma forma de golpe de Estado que ocorre quando o líder de um país, que chegou ao poder através de meios legais, dissolve ou torna impotente o poder legislativo nacional e assume poderes extraordinários não concedidos em circunstâncias normais.

Outras medidas tomadas podem incluir a anulação da constituição da nação e a suspensão de tribunais civis. Na maioria dos casos ao chefe de Estado é concedido poderes ditatoriais.

Lembrem-se que Hitler assumiu o poder, em 1933, de forma democrática, pelo voto popular e depois se transformou num ditador na Alemanha que tinha um passado cultural invejável.

O Estado Totalitário traz uma falsa consciência de direito. Um universo antitético.

O que há é a necessidade premente de manter, num país que tem uma constituição-cidadã de índole democrática como a do Brasil, o Estado Democrático de Direito.

Comentando o mesmo princípio da Constituição da República portuguesa, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira oferecem aos estudiosos, uma resposta: “Esse conceito – que é seguramente um dos conceitos-chave da CRP – é bastante complexo, e as suas duas componentes – ou seja, a componente do Estado de direito e a componente do Estado democrático – não podem ser separadas uma da outra. O Estado de direito é democrático e só sendo-o é que é Estado de direito. O Estado democrático é Estado de direito e só sendo-o é que é democrático”.

Observemos os tipos penais inseridos nos artigos 359 – L e 359 – M.

Sobre o tema disse Fernando Augusto Fernandes (O terrorismo por omissão e o artigo 359 – L do Código Penal, in Consultor Jurídico, em 29.12.2002):

“O crime mais adequado, contudo, é o do artigo 359-L, incluído no Código Penal pela Lei nº 14.197/21, que descreve a conduta de “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”, com pena é de 4 a 8 anos, “além da pena correspondente à violência”. Apesar do artigo sobre violência política (artigo 359-P, do CP) ter também deixado de fora o fim político da conduta delituosa e optado por ” razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional “, o crime de abolição violenta do Estado de Direito já traz a tentativa no próprio crime, sem limitação da atuação que naturalmente é política.

Trata-se de crime formal, que exige o dolo como elemento do tipo. A ação pode vir por violência ou ameaça, que há de ser séria, objetivando, inclusive, restringir o exercício de um dos poderes da República, para o caso o Judiciário.

A ameaça deve ser realizável, verossímil, não fantástica ou impossível. O mal prometido, segundo forte corrente, entende que o mal deve ser futuro, mas até iminente, e não atual. Só a ameaça séria e idônea configura esse crime.

O crime é de perigo presumido.

Fatalmente, tendo a Lei de Defesa do Estado Democrático substituído a Lei de Segurança Nacional, não pode ser esquecido que delitos perpetrados com motivação política — e, portanto, crimes políticos — devem ser julgados pela Justiça Federal, conforme disposição constitucional quanto à competência dos crimes federais. Valendo ressaltar que o trâmite reservado a tais procedimentos é de denúncia em primeira instância a juízo federal e, uma vez sentenciado, eventual inconformismo deve ser levado diretamente ao Supremo Tribunal Federal via recurso ordinário constitucional, conforme versa o artigo 102, inciso II, alínea b, da Constituição Federal.”

Outro crime, por sua vez, ainda contra a democracia foi o crime de tentativa de golpe de Estado.

Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: (Incluído pela Lei nº 14.197, de 2021) (Vigência)

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência. (Incluído pela Lei nº 14.197, de 2021)

O delito de tentativa golpe de Estado está localizado no Capítulo II da nova lei, chamado de dos Crimes contra as Instituições Democráticas. E o bem jurídico penal é o próprio Estado Democrático de Direito, o qual consta no preâmbulo da CF e nos artigos 1, caput, sendo o modelo, a forma institucional do Brasil.

Ademais, as normas constitucionais definem o sistema republicano, democrático e representativo no qual o voto é o meio pelo qual se ascende ao cargo político-eleitoral, não se admitindo a tomada violenta do poder.

O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, caracterizando o crime comum. O sujeito passivo é a sociedade e o Estado.

Quanto à tipicidade objetiva, trata-se de delito de forma livre de mera conduta. Incrimina-se a conduta de tentar depor governo legitimamente constituído, o que significa governo eleito democraticamente, conforme as regras constitucionais, e devidamente diplomado.

O delito somente ocorre se a tentativa de deposição utilizar violência ou grave ameaça, não se podendo confundir este delito com a renúncia ou impeachment daquele que foi eleito ou mesmo com cassação parcial ou total da chapa.

Nota-se que a violência deve ser empregada na tentativa de deposição para que o delito se caracterize.

A grave ameaça deve ser à pessoa (havendo interpretação de que pode ser contra as instituições), o que pode ocorrer por palavra, por escrito, gestos ou outro meio simbólico de causar mal grave e injusto.

O governo constituído que pode sofrer o golpe de Estado é municipal, estadual, distrital ou federal.

Consoante tipicidade subjetiva, incrimina-se a prática dolosa de usar violência ou grave ameaça para tentar depor um governo legitimamente constituído.

Este crime não admite forma tentada e se consuma com a tentativa de depor o governo legítimo mesmo que o governo se mantenha.

A pena, 4 a 12 anos e mais as penas das violências cometidas, como lesões corporais e outras práticas contra a pessoa, comporta regime fechado a depender o caso concreto. Admite-se prisão preventiva se houver requisitos e fundamentos do artigo 312 (CPP) já que a hipótese no artigo 313, inciso I do CPP está presente. Não é cabível prisão temporária.

Não se admite a incidência de instrumentos de barganha como transação penal, suspensão condicional do processo ou acordo de não percepção penal. E a ação penal pública incondicionada, tramitando pelo rito ordinário.

O caso é gravíssimo.

Trata-se de um crime contra a democracia.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

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Fuga em presídio federal coloca Mossoró em evidência nacional e se torna pretexto para bolsonaismo desviar foco sobre revelações de trama golpista

Para quem vive em Mossoró a ressaca do carnaval, que marca a quarta-feira de cinzas, veio com o gosto amargo do medo de encontrar dois dos criminosos mais perigosos do país escondido em sua casa ou de se deparar com um perseguição cinematográfica na volta para casa, após a notícia de que dois detentos fugiram do presídio federal localizado em Mossoró.

O assunto ganhou forte repercussão nacional pelo ineditismo. Agora se especula a possibilidade de falha humana enquanto agentes de segurança se mobilizam para capturar Rogério da Silva Mendonça, 36, conhecido como Tatu, e Deibson Cabral Nascimento, 34, chamado de Deisinho. A dupla integra o Comando Vermelho.

Além desse ponto, o incidente ganhou contornos políticos com o bolsonarismo explorando o tema a exaustão, visando desviar o foco da crise de imagem na extrema direita provocada pelas revelações da trama golpista revelada na semana passada expondo o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) como um dos “cabeças” das articulações.

Virou um verdadeiro troféu para a turma do ex-presidente que passou a acusar o PT de ajudar bandidos, mesmo que não exista qualquer evidência disso e sendo o partido do presidente Lula o responsável pela criação do sistema penitenciário federal até ontem considerado infalível.

O bolsonarismo não precisa de fatos para se impor e tentar ganhar o debate público no grito. Basta um pretexto e a fuga que colocou Mossoró no centro das atenções nacionais é o caso para criar a narrativa (palavra que eles adoram) que o PT é tolerante com a bandidagem.

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Direito, séries e seriados: os recursos

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Como outrora dito, a dramaticidade que nos envolve e a emoção que nos toca no cinema e perante a TV estão fortemente relacionadas aos recursos técnicos pertinentes a tais artes visuais, como a pluriperspectiva, a capacidade de manipular tempos e espaços, o corte cinematográfico, os efeitos especiais etc., que superpontencializam, para o espectador, os dados sensoriais da vida real.

A “pluriperspectiva”, por exemplo, é, nas palavras de Júlio Cabrera (em “O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes”, Editora Rocco, 2006), “a capacidade que tem o cinema [e a TV, ajunto] de saltar permanentemente da primeira pessoa (o que vê ou sente o personagem) para a terceira (o que vê a câmera) e também para outras pessoas ou semipessoas que o cinema é capaz de construir, chegando ao fundo de uma subjetividade. (…) A pluriperspectiva pode ser considerada uma espécie de qualidade ‘divina’ (ou demoníaca!) do cinema, no sentido da Onisciência e da Onipotência. Evidentemente, a montagem, a estratégia dos cortes, os movimentos de câmera etc. podem intensificar esta característica fundamental do cinema, que contribui grandemente para a eficácia do choque emocional”.

E aqui cito o seriado “Cold Case” (2003-2009), que tem como “cenário” a cidade de Filadélfia (EUA) e como personagem principal a detetive Lilly Rush (interpretada por Kathryn Morris). A missão da equipe de polícia é investigar casos antigos, de décadas atrás e já arquivados, com crimes até então nunca desvendados. “Cold Case” contém características que são comuns à maioria dos seriados policiais: investigando um crime por episódio, os detetives, a partir de uma introdução aos acontecimentos (geralmente em forma de flashback), colhem as evidências, ouvem testemunhas e suspeitos, fazem uso das novas tecnologias da criminalística etc., juntando as peças necessárias para desvendar o caso. Mas esse seriado faz uso de uma pluralidade de vozes toda especial: os testemunhos/versões dos acontecimentos são acompanhados por cenas em flashback da época do crime, que dramatizam sobremaneira a coisa. As cenas em flashback fazem com que tenhamos pluriperspectivas até nos depoimentos de uma mesma personagem, com cada testemunha/investigado enxergando os acontecimentos duplamente, tanto sob o “olhar” do passado (contemporâneo ao crime) como do presente (quando da investigação em curso). Esses flashbacks apresentam questões relacionadas à mentalidade do século 20, que influenciaram o cometimento do crime, tais como racismo, sexismo, aborto, homofobia, transfobia e violência policial, fazendo mais um interessante paralelismo, ao mostrar as diferentes perspectivas, com os dias atuais. Ao fim de cada episódio, desvendado o crime, é mostrada a prisão do assassino, geralmente em cena de flashback e testemunhada, essa prisão, pela própria vítima. Tem-se, então, até a perspectiva/olhar da própria vítima.

“Cold Case” é assim também um perfeito exemplo daquilo que Julio Cabrera registra como “a quase infinita capacidade do cinema [e da TV] de manipular tempos e espaços, de avançar e retroceder, de impor novos tipos de espacialidade e temporalidade como só o sonho consegue fazer”. Em grande medida, a TV consegue isso fazendo uso do chamado “corte cinematográfico”, recurso que, nas mãos de uma direção de TV talentosa e com recursos técnicos para tanto, pode fazer milagres. E isso pode ser levado a um grau elevadíssimo com os cortes/capítulos/episódios nas séries/seriados de TV.

Mas aqui podemos ir ainda mais longe sobre a adequação da TV para retratar fatos e temas relacionados ao direito, sobretudo naqueles chamados seriados de tribunal. Afinal, o que é um processo, e sobretudo um criminal, se não a análise retrospectiva de uma conduta juridicamente/penalmente relevante? A TV, manipulando tempos e espaços, avançando e retrocedendo, quase ao vivo, reconstrói os fatos, nos apresenta e questiona as testemunhas, reanalisa as evidências, debate os argumentos das partes, faz tudo de novo se necessário ou conveniente à trama/processo/julgamento, e por aí vai.

De fato, ao conseguir intensificar de forma colossal a “impressão da realidade”, a TV nos dá, com grande eficácia, quase a plenitude da desejada “experiência vivida”. Pelo menos assim eu acredito.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL, Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

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O artigo 19 do ato das disposições constitucionais transitórias

Por Rogério Tadeu Romano*

I – ESTABILIDADE E EFETIVIDADE

Por força do art. 37, inciso II, da CF, a investidura em cargo ou emprego públicos depende da prévia aprovação em concurso público, sendo inextensível a exceção prevista no art. 19 do ADCT. Precedentes: ADI nº 498, Rel. Min. Carlos Velloso , DJ de 9/8/96; ADI nº 208, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 19/12/02; ADI nº 100, Rel. Min. Ellen Gracie , DJ de 1/10/04; ADI nº 88, Rel. Min. Moreira Alves , DJ de 8/9/2000; ADI nº 1.350/RO, Rel. Min. Celso de Mello , DJ de 1/12/06; ADI nº 289, Rel. Min. Sepúlveda Pertence , DJ de 16/3/07, entre outros.

O Supremo Tribunal Federal tem pacífica jurisprudência no sentido de que o princípio inscrito no art. 37, II, do texto constitucional, enquanto cláusula concretizadora dos postulados da isonomia e da impessoalidade, traduz-se em exigência inafastável de prévia aprovação em concurso público para efeito de legítima investidura em cargo ou emprego público.

Apenas a Lei em sentido formal (ato normativo emanado do Poder Legislativo) pode estabelecer requisitos que condicionem o ingresso no serviço públicos. As restrições e exigências que emanem de ato administrativo de caráter infralegal, revestem-se de inconstitucionalidade, como ensinou José Celso de Mello Filho (Constituição Federal Anotada).

A Constituição Federal exige o concurso público de provas ou de provas e títulos para investidura em cargo ou emprego público. Ademais é mister que haja pertinência nas disciplinas escolhidas para comporem as provas, assim como os títulos, a que se reconhecerá valor com a função a ser exercida.

Por sua vez, Adilson Dallari (Regime constitucional dos servidores públicos, 2ª edição, Revista dos Tribunais, 1990, pág. 36) define concurso público como sendo “um procedimento administrativo aberto a todo e qualquer interessado que preencha os requisitos estabelecidos em lei, destinado à seleção de pessoal, mediante a aferição de conhecimento, da aptidão e da experiência dos candidatos, por critérios objetivos, previamente estabelecidos no edital de abertura, de maneira a possibilitar uma classificação de todos os aprovados”.

A Constituição de 1988 utiliza a palavra investidura para designar o preenchimento de cargo ou emprego público. Como bem disse Celso Ribeiro Bastos (Comentários à Constituição do Brasil, volume III, tomo III, 1992, pág. 67), não se fala mais, como ocorreu, no passado, em primeira investidura, para deixar certo de que se cuida de todas as hipóteses em que se dá a condição de ingresso no quadro de servidores públicos. Assim a Constituição repudia aquelas modalidades de desvirtuamento da Constituição anterior criadas por práticas administrativas, que acabaram por custar o espírito do preceito. Exemplificou Celso Bastos com o que acontecia com o chamado instituto da transposição, que com a falsa justificativa de que o beneficiado já servidor público era, guindava-o para novos cargos e funções de muito maior envergadura e vencimentos que não nutriam, contudo, relação funcional com o cargo de origem, com o beneplácito da legalidade sob o fundamento de que primeira investidura já não era.

O artigo 41 da Constituição de 1988 confere a garantia da estabilidade apenas aos servidores nomeados mediante aprovação em concurso público, após dois anos de efetivo exercício. Cabe notar que o artigo 41 se refere apenas aos servidores da administração direta e autárquica, sujeitas a um regime jurídico único, de natureza estatutária, e, por conseguinte, titulares de cargo de provimento efetivo.

Não se confunda efetividade com estabilidade.

A esse respeito, Tito Costa (Estabilidade e efetividade no serviço público municipal, Boletim do Interior, 19/16), mostrou que efetividade e estabilidade são coisas diversas e inconfundíveis, descrevendo cada um dos institutos para revelar as distinções: “Efetividade: trata-se uma característica da nomeação, pois que pode haver, no serviço público, nomeação em comissão, em caráter vitalício, ou em caráter efetivo. O funcionário aprovado em concurso e nomeado para o cargo de provimento efetivo, passa, em seguida à sua nomeação e à posse, a ter efetividade sem ter estabilidade. Estabilidade: é o direito que adquire o funcionário nomeado por concurso, após dois anos de sua nomeação. O funcionário estável só poderá ser demitido em virtude de sentença judicial ou mediante processo administrativo no qual se tenha sido assegurado ampla defesa. Estabilidade diz respeito ao serviço público e não ao cargo. Assim pode a administração aproveitar um funcionário estável em outro cargo de igual padrão, de conformidade com as suas aptidões”.

Sobre a matéria já entendeu o STF:

ADMINISTRATIVO – APELAÇÃO CÍVIL – PENSÃO POR MORTE – ARSENAL DE MARINHA DO RIO DE JANEIRO – CONTRATO DE TRABALHO – CLT – ART. 19 DO ADCT – AQUISIÇÃO DE ESTABILIDADE – NÃO EFETIVIDADE – NÃO APLICAÇÃO DA LEI 8.112/90 – ART. 243, § 1º DA LEI 8.112.

Como lembraram Gustavo Henrique Justino de Oliveira e Wilson Accioly Filho(Reforma Administrativa e Estabilidade no Serviço Público: O Contrato Vitalício, in Consultor Jurídico, em 15.8.21), segundo o artigo 41 da Constituição, introduzido no cenário constitucional pela Emenda 19/1998, são estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público. Ainda prevê-se que o servidor público estável somente perderá o cargo: a) em virtude de sentença judicial transitada em julgado; b) mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa; c) mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada a ampla defesa. Por fim, determina-se, como condição para a aquisição da estabilidade, a obrigatoriedade de uma avaliação especial de desempenho por comissão constituída para esta finalidade.

Entre as várias mudanças projetadas, certamente o fim da estabilidade para diversos cargos públicos é uma das mais polêmicas e controversas. Altera-se a principal garantia do funcionalismo público brasileiro e inclui no regime jurídico a noção privada de “vínculo de experiência”, de “cargo com prazo determinado” e de “avaliação periódica das metas de desempenho”.

Segundo a nova sistemática proposta pela reforma administrativa, somente adquirirá estabilidade o servidor que, após o término do vínculo de experiência, permanecer por um ano em efetivo exercício de cargo típico de Estado, com desempenho satisfatório, na forma da lei. Ainda, propõe-se que o servidor público estável ocupante de cargo típico de Estado somente perderá o cargo: a) em razão de decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado; b) mediante avaliação periódica de desempenho, na forma da lei, assegurada a ampla defesa. Deixou-se, contudo, ao encargo do legislador infraconstitucional o ônus de detalhar os conceitos de: 1) gestão de desempenho; 2) condições de perda dos vínculos e dos cargos típicos. Ao fim, expressou-se na proposta a vedação do desligamento de servidores por motivação político-partidária.

Ainda segundo a Agência Câmara de Notícias, o texto envolve trechos da Constituição que tratam da administração pública em geral (artigos 37 e 37-A); dos servidores públicos (artigos 39, 39-A, 41, 40-A e 41-A); dos militares dos estados, do DF e dos territórios (artigos 42 e 48); das atribuições do presidente da República (artigo 84); dos ministérios (artigo 88); das Forças Armadas (artigo 142); do Orçamento da União (artigo 165); da Previdência Social (artigo 201); e de outras disposições gerais (artigo 247).

Em uma segunda parte, a PEC traz regras transitórias e prevê a eventual atuação dos entes federativos na regulamentação, já que alguns dispositivos – como exigência da criação de novos regimes jurídicos específicos para servidores –, se aprovados, dependerão de regulamentação posterior à promulgação das mudanças pelo Congresso Nacional.

Chamada pelo governo de PEC da Nova Administração Pública, a proposta altera 27 trechos da Constituição e introduz 87 novos, sendo quatro artigos inteiros. As principais medidas tratam da contratação, da remuneração e do desligamento de pessoal, válidas somente para quem ingressar no setor público após a aprovação das mudanças.

II – UMA FORMA DE ESTABILIDADE EXCEPCIONAL

Fala-se no artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que criou forma excepcional de estabilidade para servidores que entraram antes da promulgação da Constituição de 1988 sem concurso público.

Art. 19. Os servidores públicos civis da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta, autárquica e das fundações públicas, em exercício na data da promulgação da Constituição, há pelo menos cinco anos continuados, e que não tenham sido admitidos na forma regulada no art. 37, da Constituição, são considerados estáveis no serviço público.

Na lição de Uadi Lammêgo Bulos ( Constituição Federal Anotada, 6ª edição, pág. 1469) a inserção do artigo 19 teve em vista a tutela daquelas situações específicas já consagradas desde o regime constitucional passado.

Disse ainda Uadi Lâmmego Bulos (obra citada):

“Todavia, saliente-se bem a aplicação desse artigo que tem dado margem a interpretações distorcidas, é limitadíssima só albergando os estritos termos de sua letra. Assim a regra é o pórtico alicerçado no art. 37, II< que exige concurso para a investidura em cargo ou emprego público, à exceção do art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. “

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que servidor admitido sem concurso público antes da promulgação da Constituição da República de 1988 não pode ser reenquadrado em novo plano de cargos, carreiras e remuneração. A decisão foi tomada no julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) 1306505, com repercussão geral (Tema 1157), na sessão virtual encerrada em 25/3/22. O voto do relator, ministro Alexandre de Moraes, foi acolhido de forma unânime.

O entendimento vale, também, para beneficiados pela estabilidade excepcional do artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). A regra não prevê o direito à efetividade, garantia inerente aos servidores admitidos mediante concurso público.

Ao votar pelo provimento do recurso, o relator explicou que a Constituição Federal (artigo 37, inciso II) deixa claro que apenas é considerado estável o servidor que ingressar na administração pública mediante prévia aprovação em concurso público para cargo de provimento efetivo e após o cumprimento de três anos de exercício. Segundo o ministro, a jurisprudência do Supremo é firme no sentido de que as situações flagrantemente inconstitucionais não podem ser consolidadas pelo decurso do tempo.

Ele observou que nem mesmo os servidores que preenchem os requisitos do artigo 19 do ADCT têm direito aos benefícios conferidos aos que ingressaram na administração pública mediante concurso. Assim, com menos razão, não se pode cogitar a continuidade de situação em que servidor contratado pelo regime celetista, sem concurso público, sem estabilidade, usufrui de benefícios legalmente previstos apenas para servidores efetivos, como informado pelo portal de notícias do STF, em 29/3/22.

O ministro ressaltou, ainda, que a jurisprudência do STF diferencia a “estabilidade excepcional” do ADCT da efetividade. Essa diferença foi reforçada no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3609, quando a Corte invalidou a Emenda Constitucional 38/2005 do Acre.

A tese de repercussão geral fixada é a seguinte: “É vedado o reenquadramento, em novo Plano de Cargos, Carreiras e Remuneração, de servidor admitido sem concurso público antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, mesmo que beneficiado pela estabilidade excepcional do artigo 19 do ADCT, haja vista que esta regra transitória não prevê o direito à efetividade, nos termos do artigo 37, II, da Constituição Federal e decisão proferida na ADI 3609”.

O Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, reafirmou sua jurisprudência de que servidores admitidos sem concurso público ou que tenham adquirido estabilidade com a Constituição Federal de 1988 devem se aposentar sob o Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Portanto, não têm direito às vantagens privativas dos servidores concursados ocupantes de cargo efetivo, que se aposentam sob as regras do regime próprio de previdência social (RPPS).

A decisão foi tomada no Recurso Extraordinário (RE) 1426306, que, em deliberação no Plenário Virtual, teve repercussão geral reconhecida e mérito julgado. A presidente do STF, ministra Rosa Weber, é a relatora do processo.

Em seu voto, a relatora levou em conta a jurisprudência do STF (ARE 1.069.876-AgR/SP; 2ª Turma e ADPF 573/PI) no sentido de que os servidores abrangidos pela estabilidade excepcional prevista no art. 19 do ADCT não se equiparam aos servidores efetivos e não possuem vantagens privativas desses servidores, o que afasta a possibilidade de participação no RPPS.

A tese de repercussão geral fixada foi a seguinte: “São admitidos no regime próprio de previdência social exclusivamente os servidores públicos civis detentores de cargo efetivo (art. 40, CF, na redação dada pela EC nº 20/98), o que exclui os estáveis na forma do art. 19 do ADCT e demais servidores admitidos sem concurso público”.

No julgamento do RE nº 716378, com repercussão geral reconhecida (tema 545), realizado na sessão extraordinária no dia 07/08/19, o Tribunal Pleno do STF, por maioria, nos termos do voto do Relator e Presidente da Suprema Corte, Ministro Dias Toffoli, decidiu que a estabilidade especial do art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) não se aplica aos empregados das fundações públicas de direito privado.

A tese aprovada para fins de repercussão geral proposta tem a seguinte redação:

1 – A qualificação de uma fundação instituída pelo Estado como sujeita ao regime público ou privado depende: I – do estatuto de sua criação ou autorização; II – das atividades por ela prestadas. As atividades de conteúdo econômico e as passíveis de delegação, quando definidas como objetos de dada fundação, ainda que essa seja instituída ou mantida pelo Poder Público, podem se submeter ao regime jurídico de direito privado.

2 – A estabilidade especial do artigo 19 do ADCT não se estende aos empregados das fundações públicas de direito privado, aplicando-se tão somente aos servidores das pessoas jurídicas de direito público.

Destaco o que foi dito no julgamento da REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1.426.306 TOCANTINS.

“6. A jurisprudência do STF é no sentido de que os beneficiados pela estabilidade excepcional prevista no art. 19 do ADCT não são detentores das vantagens privativas dos servidores ocupantes de cargo efetivo, o que afasta a possibilidade de participação no regime próprio de previdência social. A partir da EC nº 20/1998, o regime próprio é exclusivo para os detentores de cargo efetivo, os quais foram aprovados em concurso público. Precedentes . “

……

  1. Pedido julgado parcialmente procedente, com a fixação da seguinte tese: “1. É incompatível com a regra do concurso público (art. 37, II, CF) a transformação de servidores celetistas não concursados em estatutários, com exceção daqueles detentores da estabilidade excepcional (art. 19 do ADCT); 2. São admitidos no regime próprio de previdência social exclusivamente os servidores públicos civis detentores de cargo efetivo (art. 40, CF, na redação dada pela EC nº 20/98), o que exclui os estáveis na forma do art. 19 do ADCT e demais servidores admitidos sem concurso público”.” ( ADPF 573/PI, Rel. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe 09.3.20).”

Essa diretriz tem sido reiterada em diversas decisões, em casos idênticos ao presente. Confira-se a propósito: ARE 1.364.531/TO, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 25.02.2022; ARE 1.381.190/TO, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 16.5.2022; RE 1.362.166/TO, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 21.02.2022; RE 1.364.524/TO, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 11.5.2022; RE 1.364.535/TO, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 02.3.2022; RE 1.369.863/TO, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 22.4.2022; RE 1.381.716/TO, da minha lavra, DJe 04.7.2022; RE 1.392.419/TO, Rel. Min. André Mendonça, RE 1.403.847/TO, Rel. Min. Nunes Marques, DJe 05.12.2022; RE 1.416.017/TO, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe 02.02.2023; RE 1.421.314/TO, Rel. Min. Luiz Fux , DJe 28.02.2023; DJe 10.4.2023.

Ainda foram colacionados os seguintes julgados:

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PREVIDENCIÁRIO. SERVIDORA PÚBLICA APOSENTADA. ESTABILIDADE DO ART. 19 DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS. IMPOSSIBILIDADE DE EQUIPARAÇÃO ENTRE SERVIDORES ESTÁVEIS NÃO EFETIVOS E SERVIDORES EFETIVOS. VINCULAÇÃO AO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO PARA DAR PROVIMENTO AO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.” ( RE 1.375.560-AgR/TO, Red. p/ acórdão Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJe 04.7.2022)

“Agravo regimental em recurso extraordinário. Administrativo. Servidores públicos detentores da estabilidade excepcional do art. 19 do ADCT. Inclusão no regime próprio de previdência social. Impossibilidade. Precedentes. 1. Os servidores abrangidos pela estabilidade excepcional prevista no art. 19 do ADCT não se equiparam aos servidores efetivos, os quais foram aprovados em concurso público. Aqueles possuem somente o direito de permanecer no serviço público nos cargos em que foram admitidos, não tendo direito aos benefícios privativos dos servidores efetivos. 2. Conforme consta do art. 40 da Constituição Federal, com a redação dada pela EC nº 42/03, pertencem ao regime próprio de previdência social tão somente os servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, inclusive de suas autarquias e fundações. 3. Agravo regimental provido para se dar provimento ao recurso extraordinário, sem condenação ao pagamento de custas ou de honorários advocatícios, nos termos do art. 55 da Lei nº 9.099/95.” ( RE 1.381.167-AgR/TO, Red. p/ acórdão Min. Dias Toffoli , Primeira Turma, DJe 05.9.2022).

Tem-se, então, que os servidores admitidos sem concurso público até a promulgação da Constituição Federal de 1988 devem se vincular ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS) – administrado pelo INSS – e não sob as regras dos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS).

Os servidores abrangidos pela estabilidade excepcional prevista no art. 19 do ADCT não se equiparam aos servidores efetivos, os quais foram aprovados em concurso público. Aqueles possuem somente o direito de permanecer no serviço público nos cargos em que foram admitidos, não tendo direito aos benefícios privativos dos servidores efetivos.

Diga-se que as decisões do STF referenciadas sobre o tema de aposentadoria para aqueles servidores públicos sujeitos àquela estabilidade excepcional não lhes obrigam a ser aposentar com data certa. Isso somente existe para as chamadas aposentadorias compulsórias pelo limite de idade de 75 anos como previsto na Constituição. O prazo ali citado está vinculado ao que diz o próprio dispositivo constitucional previsto no artigo 19 do ADCT (em exercício na data da promulgação da Constituição, há pelo menos cinco anos continuados, e que não tenham sido admitidos na forma regulada no art. 37, da Constituição). .

III – OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ESTABELECIDOS

Estamos diante de limitações explícitas ou implícitas que a Constituição Federal apresenta aos Estados Membros, aos Municípios e ao Distrito Federal e que podem ser vedatórias ou mandatórias.

São o que José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, ed. RT, 5ª edição, pág. 515) chama de princípios constitucionais estabelecidos.

São –como ensinou Raul Machado Horta (A Autonomia do Estado-Membro no Direito Constitucional Brasileiro, 1964, pág. 225) os que limitam a autonomia organizatória dos Estados, são aquelas regras que revelam, previamente, a matéria de sua organização e as normas constitucionais de caráter vedatório, bem como os princípios de organização política, social e econômica, que determinam o retraimento da autonomia estadual, cuja identificação reclama pesquisa no texto da Constituição.”

As limitações expressas ao Constituinte Estadual são consubstanciadas em dois tipos de regras: umas de natureza vedatória e outras mandatórias.

As primeiras proíbem explicitamente os Estados de adotar determinados atos e procedimentos.

As limitações de natureza mandatórias consistem em disposições que, de maneira explícita e direta, determinam aos Estados a observância de princípios de sorte que na sua organização administrativa hão de adotá-los. Aos Estados não mais resta que transcrever, em toda a sua essência, os princípios referenciados nos artigos 37 a 41 da Constituição Federal, tendo ainda que segui-los sob pena de uma atuação inconstitucional.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Uma medida provisória questionável

Por Rogério Tadeu Romano*

I – O VETO PRESIDENCIAL

Com o veto o Presidente da República nega a aquiescência à formação da lei, por entendê-la inconstitucional ou por contrária ao interesse público.

Aliás, desde 1891 (Constituição Federal, artigo 37, § 1§), restringem-se os casos de veto: a) a inconstitucionalidade do projeto; b) a ofensa aos interesses nacionais.

Ensinou Paulino Ignácio Jacques (Curso de Direito Constitucional, 9ª edição, pág. 263) que é uma instituição própria do governo presidencial, que se desenvolveu e se aperfeiçoou nos Estados Unidos. Afasta-se o veto do modelo antigo romano, exercido pelos tribunos plebei, e com o qual invalidaram o senatus consultus.

Trata-se de poder e direito porque o seu exercício depende da vontade do Presidente da República, que é manifestada de acordo com a Constituição.

Historicamente, ainda ensinou Paulino Jacques (obra citada, pág. 264) foram conhecidos três espécies de veto: o absoluto, o suspensivo e o restitutório. O absoluto, vigente ao tempo do tribunato romano, consistia na oposição irrevogável dos tribunos aos decretos do Senado; o segundo, o suspensivo, foi fruto do constitucionalismo anglo-americano (1689 – 1776), suspendia a vigência da lei até nova deliberação; o restitutório, que foi inaugurado na República de Weimar, submetia ao povo, em plebiscito a solução da controvérsia.

Em Portugal, o veto de inconstitucionalidade pode ser superado por expurgação ou confirmação por maioria qualificada (artigo 279, º 2º).

No Brasil, o veto pode ser suprimido pelo Legislativo, por maioria absoluta de cada uma das Casas reunidas em sessão conjunta, no prazo de trinta dias, contados de seu recebimento pelo Presidente do Senado (artigo 66, § 4º). É caso de veto relativo e não de veto absoluto, como já observara Celso Ribeiro Bastos (Curso de direito constitucional, 11ª edição, pág. 314).

II – ADI 7232

O que dizer quando o Poder Executivo, ao desconhecer a derrubada do veto, criar nova norma jurídica em detrimento daquela decisão do Poder Legislativo?

Por maioria, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) referendou a liminar concedida pela ministra Cármen Lúcia para suspender os efeitos da Medida Provisória (MP) 1.135/2022, que alterou leis que davam apoio financeiro ao setor cultural e de eventos. A decisão se deu, na sessão virtual extraordinária realizada, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7232, ajuizada pelo partido Rede Sustentabilidade.

A fim de ajudar o setor cultural em razão da pandemia da covid-19, o Congresso Nacional editou a Lei 14.148/2021 (que criou o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos), a Lei Aldir Blanc 2 (Lei 14.399/2022) e a Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar 195/2022). As normas foram vetadas pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, e, após a derrubada dos vetos pelo Congresso, ele editou a MP.

Em seu voto pela manutenção da cautelar, a ministra Cármen Lúcia reiterou que a medida provisória esvaziou a eficácia das normas aprovadas pelo Legislativo.

A relatora observou ainda que a MP não atendeu aos requisitos de urgência e de relevância do tema. Segundo ela, as leis foram resultado de um longo processo legislativo, conduzido por quase um ano.

Outro ponto assinalado foi o desvio de finalidade na edição da MP. “O que se tem é um quadro no qual o presidente da República não aceita o vetor constitucional nem a atuação do Poder Legislativo e busca impor a sua escolha contra o que foi ditado pelo Parlamento, que é, no sistema jurídico vigente, quem dá a última palavra em processo legislativo”, afirmou.

Ao deferir a liminar, a ministra considerou que a medida provisória esvaziou a eficácia das normas aprovadas pelo Legislativo.

Ficam assim suspensos os efeitos da medida provisória em sua integralidade, desde o início da sua vigência, mas ela continuará a tramitar como projeto de lei no Congresso Nacional, nos termos do artigo 62 da Constituição Federal. Ficam, assim, restauradas as leis anteriores.

Deve o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes, no caso da perda de vigência da MP.

A teor do parágrafo 11 do artigo 62 da Constituição, não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas.

III – NÃO TEM O PODER EXECUTIVO SUPERPODER PARA SUSPENDER DECISÃO DO CONGRESSO QUE DERRUBOU SEU VETO

Já decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF), em mais de uma ocasião ( ADI n.º 2.010; ADI n.º 7.232), que a “medida provisória não é desvio para se contornar a competência do Congresso Nacional”, sendo “inconstitucional a utilização deste instrumento excepcional para sobrepor-se a atuação presidencial à vontade legítima das Casas Legislativas”.

Quando o Congresso promulga a lei e o Executivo edita MP para desfazer o trabalho congressual, tem-se uma anomalia no sistema.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2010 – 2 – Distrito Federal (Medida Cautelar) deixou destacado:

“PRINCÍPIOS DA IRRETIBIBILIDADE DOS PROJETOS REJEITADOS NA MESMA SESSÃO LEGISLATIVA ( CF, ART. 67)– MEDIDA PROVISÓRIA REJEITADA PELO CONGRESSO NACIONAL – POSSIBILIDADE DE APRESENTAÇÃO DE PROJETO DE LEI, PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA , NO INÍCIO DO ANO SEGUINTE EM QUE SE DEU A REJEIÇÃO PARLAMENTAR DA MEDIDA PROVISÓRIA”.

De toda sorte, não cabe ao Presidente da República ter uma espécie de superpoder para rever, quando bem entender, decisões tomadas por amplíssima maioria no Congresso Nacional, sobretudo quando por meio do exercício de derrubada de veto.

Em suas razões de voto, no julgamento daquela Ação Direta de Inconstitucionalidade aqui reportada, disse a ministra Cármen Lùcia: “O advento de medida provisória, alterando o que fora aprovado, vetado e superado pela promulgação da lei pelo Congresso Nacional impõe quatro níveis de questionamento sobre a validade jurídica do ato normativo: a) o primeiro, sobre a obediência aos requisitos de relevância e urgência para a expedição da medida; b) o segundo, a natureza provisória da medida (que, no caso, impõe a postergação do que fora determinado em lei); c) o terceiro, sobre a legitimidade constitucional de burla ao devido processo legislativo pela superação do que fora ultrapassado ao veto oposto. Deu-se novo tratamento do tema em via extraordinária, o que configura desvio de finalidade do exercício da competência conferida constitucionalmente ao Presidente da República; d) o quarto, se seria possível, constitucionalmente, alterar-se matéria cuidada em lei complementar (a Lei Complementar n. 195/2022), cujo processo legislativo é específico, com exigência de quórum qualificado, por medida provisória.”

Explicou o Ministro Celso de Mello que, “a possibilidade de controle jurisdicional, mesmo sendo excepcional, apoia-se na necessidade de impedir que o Presidente da República, ao editar medidas provisórias, incida em excesso de poder ou em situação de manifesto abuso institucional, pois o sistema de limitação de poderes não permite que práticas governamentais abusivas venham a prevalecer sobre os postulados constitucionais que informam a concepção democrática de Poder e de Estado, especialmente naquelas hipótese em que se registrar o exercício anômalo e arbitrário das funções estatais” ( ADI 2.213-MC, Relator Ministro Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 23.4.2004).

IV – O CASO DE MP QUE TRATA DE DESONERAÇÕES TRIBUTÁRIAS

Veja-se o caso da edição de medida provisória em flagrante oposição a derrubada de veto presidencial no caso das desonerações tributárias.

O governo editou uma medida provisória ( MP 1202/2023) que muda as regras da desoneração da folha de pagamento, promulgada, no dia 28.12.23, pelo Congresso Nacional, após a derrubada do veto do presidente Lula. O texto prevê alterações já a partir de abril: alíquota menor apenas para um salário mínimo por trabalhador e redução gradual de benefícios, como informou o portal da Rádio Senado.

O que se tem, assim, é quadro no qual o Presidente da República não aceita o vetor constitucional, nem a atuação do Poder Legislativo e busca impor a sua escolha contra o que ditado pelo Parlamento, que é, no sistema jurídico vigente, quem dá a última palavra em processo legislativo. E adota essa postura normativa pela edição da medida provisória expedida, assim, em desvio de finalidade que contamina aquele documento, maculando-o por inconstitucionalidade, como afirmado pelo autor da presente ação, como disse a ministra Cármen Lúcia em oportunidade anterior.

Caso seja exercida aquela competência para burlar a necessidade urgente sobre questão relevante pela edição de medida provisória, por exemplo, para sobrepor a decisão executiva ao que decidido e legislado pelas Casas Congressuais, está a se incorrer em inconstitucionalidade, por se desviar da finalidade a que se destina aquela atribuição.

Inexistem assim os pressupostos específicos para a edição da medida provisória: sua relevância e o perigo de demora (urgência).

O art. 62 da Constituição da República prevê: “Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.”

Relevância é requisito que se remete ao fundamento que há de ser, motivadamente, havido como detendo realçada importância para o exercício extraordinário da competência executiva e que precisa ser objetivamente demonstrada para legitimar a prática. A relevância mencionada constitucionalmente refere-se ao interesse público qualificado, para além do ordinário, não sendo atendida essa condição aquela previsível e de trivial atendimento pelo desempenho legislativo normal, regular, atendido pelo regular trâmite que conduz à produção das leis. Para Clermerson Merlin Clève, “a relevância não é apenas um pressuposto relacionado com a matéria a ser veiculada na medida provisória, pois deve lastrear, igualmente, a situação ensejadora do provimento… a relevância demandante de sua adoção não comporta satisfação de interesses outros que não os da sociedade… a relevância autorizadora da deflagração da competência normativa do Presidente da República não se confunde com a ordinária, desafiadora do processo legislativo comum. Trata-se, antes, de relevância extraordinária, excepcional, especialmente qualificada, contaminada pela contingência, acidentabilidade, imprevisibilidade.” (CLÈVE, Clemerson Merlin. Medidas provisórias. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 69), como lembrou a ministra Cármen Lùcia, naquela decisão reportada.

A relevância constitucional autorizadora da medida provisória relaciona-se ao interesse público extraordinariamente realçado pela sua gravidade, pelo atendimento a ser assegurado em molde a não poder aguardar a tramitação regular de um projeto de lei, tendo repercussão de tal vulto que impõe entrega pronta e eficaz da norma para cumprir a exigência pública. 26. Urgência conjuga-se com o tempo, que impõe a edição da medida por não se dispor de dilação suficiente para a tramitação ordinária de projeto de lei.

Tenha-se em conta que a medida provisória não revoga lei anterior, mas apenas suspende seus efeitos no ordenamento jurídico, em face do seu caráter transitório e precário.

Lembre-se, na lição de Paulino Jacques (Curso de introdução à ciência do direito, 2ª edição, pág. 107) que “a lei posterior revoga a anterior em três casos: a) quando expressamente o declare; b) quando, seja com ela incompatível; c) quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. “

Todavia, quando a lei posterior (lei nova) estabelece disposições gerais ou especiais ao lado das já existentes, sem que haja incompatibilidade entre elas, não revoga, nem modifica a lei anterior (lei velha).

Como ainda ensinou Paulino Jacques (obra citada, pág. 108),”demais a lei revogada não se restaura quando a lei revogada perde a vigência. Como ainda nota Oscar Tenório, “o advento de uma lei resulta, às vezes, na morte de outra. Esta não ressuscita, mesmo quando a lei que a eliminou do mundo jurídico, também se extinguiu. Somente por disposição expressa do legislador, a lei morta ressuscita, volta a ocupar lugar no sistema jurídico do país”(in Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro, Editor Borsói, Rio, 1955, 2ª edição, pág. 92, nº 140). Essa lei que ressuscita a lei morta, ou sem metáfora, que restaura expressamente a lei revogada, se denomina “lei repristinatória”, que restabelece o passado.”

Sendo assim, diante do fato aqui trazido à colação, tem-se que faltam àquela MP 1202/2023 os requisitos próprios para a sua edição.

Dir-se-ia que o caminho, pois, seria a sustação dos efeitos da medida com sua devolução pelo Poder Legislativo ao Poder Executivo, para que este ofereça um projeto de lei, que, a seu tempo, deveria ser examinado pelo Congresso Nacional para aprovação ou não.

Saliente-se, entretanto, que a medida de desoneração da folha tem aspectos negativos no direito financeiro.

V – A DESONERAÇÃO DA FOLHA FERE A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL

Observe-se o artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal:

Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições: (Vide Medida Provisória nº 2.159, de 2001) (Vide Lei nº 10.276, de 2001) (Vide ADI 6357)

I – demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;

II – estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.

…..

Essa Lei de desoneração da folha fere o artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Os efeitos das perdas de receita (chamadas de renúncias fiscais, no jargão) não estão contemplados nas projeções e nas metas fiscais para 2024, tampouco a nova lei trouxe medidas para neutralizar o custo contratado.

Felipe Salto (O cheque sem fundo do Congresso, in Estadão, 18.1.24) trouxe sobre a matéria importantes conclusões do ponto de vista fiscal:

“A desoneração da folha é uma medida sem efeito sobre o emprego, a renda e o crescimento econômico. Mesmo assim, o Congresso decidiu rejeitar o veto presidencial e impor ao País um custo de cerca de R$ 20 bilhões. Pior, não mostrou como a conta seria paga, em desrespeito à Lei de Responsabilidade Fiscal.

A Lei Orçamentária Anual não previa recursos para essas duas finalidades – a prorrogação da desoneração da folha para 17 setores de atividade econômica e a redução da alíquota de contribuição previdenciária para um conjunto de municípios (aqueles que utilizam o regime geral da Previdência para seus servidores). O Congresso, depois de garfar R$ 53 bilhões em emendas, no processo orçamentário, deu ao governo mais esse presente de grego.”

E concluiu:

“A desoneração da folha é uma medida sem efeito sobre emprego, renda e crescimento. Mesmo assim, o Congresso decidiu impor ao País um custo de R$ 20 bi.”

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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RN, a imagem do elefante deitado

Por Ney Lopes*

Já batendo a porta de 2024, que será um ano de eleições.

Não se trata de pessimismo, mas olhar a realidade política e econômica do RN é constatar, que avanços, debates, inovações são palavras proibidas.

Os parlamentares, o governo estadual e municípios não são medidos por ações objetivas, através da criatividade de ações ousadas para a economia e área social.

Exceção à regra, apenas alguns empreendedores privados, que enfrentam dificuldades por pensarem com lucidez.

É hora de olhar pelo retrovisor para identificar acertos, erros cometidos e projetar o futuro.

O que se deseja para 2024 são os “atos” e “gestos” políticos voltados para o pensamento sério, soluções que tenham começo, meio e fim.

Jamais, o “toma lá, dá cá”, que garante “o apoio hoje” para ser “retribuído amanhã”.

O mais grave é que se faz essa troca de interesses em nome da ética dos partidos, num verdadeiro estupro aos valores morais e sociais.

A eleição de prefeitos e vereadores em Estado pequeno como o nosso, deve preceder cautelas quanto à confiabilidade e experiência para os cargos disputados.

Do contrário, o estado corre o risco de tornar-se menor, do que já é.

Infelizmente, o cenário de “artimanhas e jogadas” está pintado e quase emoldurado.

Para confirmar o óbvio é suficiente comparar o RN com estados vizinhos.

O Ceará investe mais de 5 milhões de euros com equipamentos tecnológicos de última geração para os laboratórios da sua rede de pesquisa científica.

A Paraíba atualiza o pensamento de Celso Furtado, de acordo com a Agenda 2030, da ONU, visando estimular inovações voltadas à melhoria do estado.

Participei na época que presidi o PARLATINO, da “IV Conferência da União Europeia com América Latina e Caribe”, realizada na Áustria com 60 chefes de Estado presentes dos dois continentes.

Desfrutei momentos de convivência com as personalidades presentes.

Era presidente do Parlamento Europeu o deputado espanhol Joseph Borell, hoje ministro das relações exteriores da União Europeia.

Sempre defendi um tratado comercial do Brasil com os países limítrofes no norte do pais, que seria o MERCONORTE.

Nestes países, vivem mais de 100 milhões de consumidores, que seria a porta de acesso para promover mudanças nos padrões de consumo.

Falei a ideia a Borell e ele se entusiasmou.

Disse que na Europa os países confrontantes formam essas áreas comerciais, imagine mais de cinco países, envolvendo a área amazônica.

“Malhei em ferro frio”.

No RN, governo, a classe política e empresarial fizeram ouvido de “mercador”.

Depois, lembrei que a ferrovia transnordestina, que integra o Nordeste, prossegue a construção, com a criminosa exclusão do RN.

Sugeri mobilização política.

Nada ocorreu.

A chegada das águas do São Francisco, até agora, uma miragem.

Pequeno RN sem sorte.

Com a forma geográfica de elefante, a sua imagem na chegada de 2024 é de um mamífero deitado e sem ação.

Fazer o que?

*É jornalista, advogado e ex-deputado federal.

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Algumas notas sobre o assédio eleitoral

Por Rogério Tadeu Romano*

Observo o que foi narrado Agência Brasil , em 27.12.2023:

“A Justiça do Trabalho em Goiás condenou o deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO) ao pagamento de R$ 80 mil por danos morais. O parlamentar foi acusado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) de assédio eleitoral em âmbito trabalhista durante o segundo turno das eleições de 2022.

De acordo com o MPT, Gayer realizou reuniões com funcionários de diversas empresas para promover “propaganda eleitoral irregular” para o então candidato à reeleição Jair Bolsonaro. Em um dos casos, Gayer foi a uma padaria, a pedido do proprietário, e fez uma reunião com os colaboradores para falar sobre “as propostas dos candidatos à Presidência da República”.

No ano passado, após receber uma denúncia anônima, os procuradores entraram com uma liminar na Justiça do Trabalho para impedir a realização de novas reuniões durante o período eleitoral, e o pedido de suspensão foi aceito.

No último domingo (25), o juiz Celismar Coelho de Figueiredo, da 7ª Vara do Trabalho de Goiânia, proferiu sentença para condenar o deputado ao pagamento da indenização de R$ 80 mil.

“A prova documental, apresentada pelo MPT, deixa clara a prática de assédio moral eleitoral no ambiente de trabalho, perpetrada pelo requerido contra trabalhadores de diversas sociedades empresárias sediadas nesta capital, coagindo-os moralmente a votarem em um candidato específico como meio de manutenção e criação dos empregos, caso referido candidato fosse reeleito”, escreveu o juiz.”

Preocupa o que é narrado no site Consultor Jurídico em 12.12.2022:

“Em Pernambuco, uma integrante do departamento de recursos humanos da rede Ferreira Costa ameaçou demitir empregados que declarassem voto em Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições. No Pará, um empresário foi multado em R$ 300 mil após prometer R$ 200 a cada trabalhador que não votasse no ex-presidente. No Rio Grande do Sul, a empresa de maquinários agrícolas Stara ameaçou reduzir seu quadro de empregados caso o atual presidente, Jair Bolsonaro (PL), não se reeleja. Por causa disso, o Ministério Público do Trabalho ajuizou uma ação civil pública pedindo o pagamento de R$ 10 milhões por dano moral coletivo.”

Há níveis altos de denúncias de assédio eleitoral no âmbito eleitoral nessas eleições.

À época foram registrados 169 casos. A região Sul tem o maior número de acusações, com 79 ocorrências, sendo 29 no Paraná, estado com maior quantidade de queixas. Na segunda posição está a região Sudeste, com 43 denúncias, seguida por Nordeste (23), Centro-Oeste (13) e Norte (11).

A resolução 23.610 do TSE, em seu artigo 20, prevê que   não é permitida a veiculação de material de propaganda eleitoral em bens públicos ou particulares, exceto de …. (Lei nº 9.504/1997, art. 37, § 2º). Não se permite, assim, a distribuição ou exposição de propaganda eleitoral dentro das empresas, especialmente, com a exigência de uso de vestimentas em referência a algum candidato.

Trata-se de assédio eleitoral matéria que prioritariamente deve ser tratada no âmbito do Ministério Público do Trabalho.

O MPT divulgou a Recomendação 01/2022 com o intuito de orientar as empresas e empregadores sobre as consequências da prática do assédio eleitoral.

Foi divulgada também uma nota técnica para a atuação do Ministério Público do Trabalho em face das denúncias sobre a prática de assédio eleitoral no âmbito do mundo do trabalho

É espécie de assédio moral.

Ricardo Calcini, professor e coordenador editorial trabalhista, explica o que é assédio eleitoral no ambiente de laboral: “É o abuso de poder patronal para que o (a) trabalhador (a) seja coagido (a), intimidado (a), ameaçado (a) ou influenciado (a) em seu voto. Caso seja comprovada a denúncia, a empresa poderá responder uma ação civil pública e, assim, poderá suportar o pagamento de uma indenização por danos morais”.

Disse Nayana Shirado ( Disponível https://bibliotecadigital.tse.jus.br/xmlui/bitstream/handle/bdtse/5271/2015_shirado_assedio_eleitoral_ambiente.pdf?sequence=6&isAllowed=y):

“Para além da campanha eleitoral realizada no chão da fábrica ou no corpo a corpo do lado de fora, algumas candidaturas imbuídas do espírito de que para ser eleito vale tudo, lançam mão de condutas entre apoiadores e colaboradores, no ambiente de trabalho, que desequilibram a disputa eleitoral e beiram, no mínimo, à reprovação moral.

O Tribunal Superior do Trabalho, em oportuna iniciativa, apresentou à sociedade uma cartilha que é um instrumento importante contra essa conduta corrosiva que ocorre nos ambientes de trabalho. Ali se diz:

“Assédio moral é a exposição de pessoas a situações humilhantes e constrangedoras no ambiente de trabalho, de forma repetitiva e prolongada, no exercício de suas atividades. É uma conduta que traz danos à dignidade e à integridade do indivíduo, colocando a saúde em risco e prejudicando o ambiente de trabalho.”

O assédio moral é conceituado por especialistas como toda e qualquer conduta abusiva, manifestando-se por comportamentos, palavras, atos, gestos ou escritos que possam trazer danos à personalidade, à dignidade ou à integridade física e psíquica de uma pessoa, pondo em perigo o seu emprego ou degradando o ambiente de trabalho”.

Disse ainda Pedro Paulo Teixeira Manus que na atividade empresarial há uma obrigação de fiscalizar os atos praticados pelos seus prepostos, pois estes agem em seu nome e, portanto, responsabilizam-na por prejuízos que venham a causar.

Há um dano moral.

Louve-me da lição de Sérgio Cavalieri Filho (Programa de Responsabilidade Civil, 9ª edição revista e ampliada, São Paulo, Atlas, pág. 82) para quem se pode conceituar o dano moral por dois aspectos distintos. Em sentido estrito, dano moral é a violação do direito à dignidade. Por essa razão, por considerar a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem corolário do direito à dignidade que a Constituição inseriu em seu artigo 5º, V e X, a plena reparação do dano moral.

Trata-se da prática de assédio eleitoral no ambiente de trabalho ou assédio político, como também é conhecido o fenômeno que, embora mereça maior atenção da comunidade jurídica, por tangenciar o direito eleitoral, o direito administrativo e o direito do trabalho, não ensejou produção legislativa ou literatura específica até o presente momento, havendo esparsas menções nas atuações do Ministério Público do Trabalho (MPT) e do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Assim, por se tratar de uma modalidade de assédio, pode-se afirmar que está associado à ideia de coagir, impor, pressionar o trabalhador, pouco importando o liame contratual (efetivo ou temporário), ou o tomador do serviço (entidade privada ou pública), com o objetivo de fazer aderir a determinados grupos políticos, obter-lhe voto e/ou apoio a candidatos no interesse do assediante, contra a vontade do assediado, ou ainda associado à conduta de fazer adotar determinadas posturas político-ideológicas contrárias às da vítima”.

Sendo assim qualquer agressão à dignidade pessoal que lesiona à honra, constitui dano moral e é indenizável.

É a linha do pensamento trazido pelo Ministro Cézar Peluso, no julgamento do RE 447.584/RJ, DJ de 16 de março de 2007, onde se acolhe a proteção do dano moral como verdadeira tutela constitucional da dignidade da pessoa humana, considerando-a como um autêntico direito à integridade ou incolumidade moral, pertencente à classe dos direitos absolutos.

Ricardo Calcini e Leandro Bocchi de Moraes(Assédio eleitoral nas relações de trabalho, in Consultor Jurídico, em 13 de outubro de 2022) disseram-nos que:

“Claro está, portanto, que a empresa deve adotar todas as medidas efetivas a fim de coibir a prática do assédio eleitoral, pois, uma vez configurado, justifica até mesmo a rescisão indireta do contrato de trabalho. Afinal, o empregador deve zelar por um meio ambiente do trabalho seguro e saudável, de sorte a promover, através de políticas internas, orientações para se evitar campanhas e propagandas políticas no local de trabalho.

Em arremate, impende destacar que o poder diretivo do empregador não é absoluto, encontrando limitações, principalmente, quando colide com os direitos e garantias fundamentais dos trabalhadores.”

Nas últimas eleições colombianas, surgiram casos de empresários que exerceram pressões indevidas sobre seus trabalhadores para que se abstenham de votar no candidato de esquerda, comportamento que a Missão de Observação Eleitoral qualificou de” criminoso “, como revelou importante reportagem do O Globo, em 20 de maio de 2022.

O exemplo mais notório foi o de Sergio Araújo Castro, um dos fundadores do Centro Democrático, atual partido no poder, juntamente com o ex-presidente Álvaro Uribe. Castro desencadeou uma discussão acalorada ao garantir, nas redes sociais, que pretende demitir os trabalhadores de suas empresas que apoiassem o candidato presidencial do Pacto Histórico, a heterogênea coalizão de esquerda que já obteve a maior bancada no Congresso no eleições legislativas de março:

“Um funcionário que vota no Petro não se encaixa no meu esquema de negócios e simplesmente precisa sair “, escreveu Castro.

No Brasil, como dito, o quadro não é diferente, infelizmente.

Como revelou site da CUT, em 2 de setembro de 2022, empresária Roseli Vitória Martelli D’Agostini Lins do setor agropecuário, divulgou um vídeo nas redes sociais estimulando seus colegas a demitir trabalhadores e trabalhadoras que forem votar no ex-presidente Lula (PT) nas eleições para presidente em 2 de outubro deste ano.

“Demitam sem dó”, diz a sócia da empresa baiana Imbuia Agropecuária LTDA, que produz soja no município de Luís Eduardo Magalhães.

“Eu queria falar algo para os nossos agricultores: façam um levantamento, quem vai votar no Lula e demitam. Demitam sem dó porque não é uma questão de política, é uma questão de sobrevivência. E você que trabalha com o agro e que defende o Lula, faça o favor, saia também”, afirmou a empresária no vídeo.

“Nós, agricultores, temos que tomar posição. E não venham me dizer ‘ah, não, tem que [respeitar] o direito’. Não é direito, é questão de sobrevivência.”

Extrapolando o âmbito trabalhista há evidente ação escandalosa nos limites eleitorais de forma de captação de sufrágio que geralmente é aliada ao abuso de poder econômico e político.

A captação ilícita de sufrágio e o abuso do poder econômico, apesar de semelhantes, não se confundem. Ambos constituem ilícitos eleitorais que acarretam a cassação do registro ou do diploma do candidato em virtude do emprego de vantagens ou promessas a eleitores em troca de votos, apresentando, todavia, cada qual as suas particularidades, seja na fonte de previsão legal, seja no objeto que visam tutelar.

A compra de votos, espécie do gênero abuso do poder econômico, está prevista no art. 41-A da Lei nº 9.504/1997 e assim deve ser identificada:

[…] doação, oferecimento, promessa, ou entrega, ao eleitor, pelo candidato, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de multa de mil a cinquenta mil Ufirs, e cassação do registro ou do diploma.

Tem-se o ilícito penal:

Art. 299. Dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita:

Pena – reclusão até quatro anos e pagamento de cinco a quinze dias-multa.

Trata-se de crime formal, instantâneo.

O tipo penal permite a prática da oferta de sursis processual e ainda de proposta de não persecução penal por parte do Parquet.

Na captação ilícita de sufrágio, ou compra de votos, o beneficiário da ação do candidato deve ser, necessariamente, o eleitor, caso contrário, não haverá perigo ou ameaça ao bem jurídico tutelado, que é a liberdade de voto, não se configurando, portanto, o ilícito.

Adriano Soares da Costa (Instituições de Direito Eleitoral. Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 531) procura defini-lo como a “vantagem dada a uma coletividade de eleitores, indeterminada ou determinável, beneficiando-os pessoalmente ou não, com a finalidade de obter-lhe o voto”.

Na captação ilícita de sufrágio, ou compra de votos, o beneficiário da ação do candidato deve ser, necessariamente, o eleitor, caso contrário, não haverá perigo ou ameaça ao bem jurídico tutelado, que é a liberdade de voto, não se configurando, portanto, o ilícito.

Dita o artigo 41- A da lei de eleicoes:

Art. 41-A. Ressalvado o disposto no art. 26 e seus incisos, constitui captação de sufrágio, vedada por esta Lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de multa de mil a cinqüenta mil Ufir, e cassação do registro ou do diploma, observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990 . (Incluído pela Lei nº 9.840, de 28.9.1999)

  • 1o Para a caracterização da conduta ilícita, é desnecessário o pedido explícito de votos, bastando a evidência do dolo, consistente no especial fim de agir. (Incluído pela Lei nº 12.034, de 2009)
  • 2o As sanções previstas no caput aplicam-se contra quem praticar atos de violência ou grave ameaça a pessoa, com o fim de obter-lhe o voto. (Incluído pela Lei nº 12.034, de 2009)
  • 3o A representação contra as condutas vedadas no caput poderá ser ajuizada até a data da diplomação. (Incluído pela Lei nº 12.034, de 2009)
  • 4o O prazo de recurso contra decisões proferidas com base neste artigo será de 3 (três) dias, a contar da data da publicação do julgamento no Diário Oficial. (Incluído pela Lei nº 12.034, de 2009).

Como explicou Adriano Soares da Costa (Instituições de Direito Eleitoral, 5ª edição, pá. 400) “a sanção prevista pelo art. 41-A, visando a fustigar os que cometerem a captação de sufrágio, é desdobrada em uma multa pecuniária e na poda do registro de candidatura ou diploma; “(….) sob pena de multa de mil a cinquenta mil Ufir, e cassação do registro ou do diploma. Observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, prescreve o documento normativo.”

É certo que o Tribunal Superior Eleitoral decidiu, em diversos julgados, no sentido de que a cassação do registro por captação ilícita de sufrágio não induz a inelegibilidade, mas apenas a perda de condição de candidato.

Disse Adriano Soares da Costa (obra citada, pág. 492):

“Ora, se a norma do art. 41-A prevê como ilícita a conduta do candidato de apenas prometer uma vantagem pessoal de qualquer natureza, com a finalidade de obter do eleitor o voto, está claro que não se há de falar em relação de causalidade ou em gravidade do ato do candidato para se lhe infringir uma sanção. Havida a promessa – note-se, basta a promessa – consumado está o tipo da captação ilícita de sufrágio. Seja como for, parece-nos que tanto na hipótese do abuso de poder econômico, como na captação de sufrágio, se busca coibir a perturbação da livre manifestação popular, sendo essa joeira retórica utilizada naquele julgamento sem densidade alguma para servir de critério para apartar ambos os ilícitos eleitorais.

Quem oferece ou promete vantagem pessoal ao eleitor, com o fito de lhe obter o voto, está perturbando a livre manifestação popular, corrompendo assim a vontade a ser manifestada pelo eleitor.”

Situações como essas minam as relações trabalhistas e são péssimas para a democracia.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.