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Crônica

Uma comparação literária

Por Marcelo Alves Dias de Souza

Hoje mais do que nunca, com a globalização, a facilidade de comunicação e o maior intercâmbio cultural, a literatura comparada deve ser uma das principais “parceiras” daquele que pretende analisar as realidades da cultura geral e do seu povo. E, quando falo de globalização, refiro-me àquele processo que tende a criar e consolidar uma economia mundial unificada, um único sistema ecológico, uma complexa rede de comunicações que abarca todo o mundo e, por que não, um padrão de cultura/literatura comum a todos os povos ditos “civilizados”.

Essa melhor utilização da literatura comparada, aliás, pode se dar de várias maneiras e em vários níveis. Podemos realizar macro ou microcomparações. A primeira refere-se ao estudo de duas ou mais “literaturas” (a brasileira e a norte-americana em suas totalidades, por exemplo); a segunda, ao estudo de aspectos, temas, obras ou autores de duas ou mais “literaturas”. Deve-se notar, ainda, que essa comparação pode ser horizontal ou vertical, a depender se o enfoque recai sobre o panorama atual ou se são feitas incursões de caráter histórico nas “literaturas” comparadas. De fato, na literatura, a comparação tem muito a nos oferecer. De maneira ao mesmo tempo integrativa e contrastante, a literatura comparada nos ajuda a identificar os elementos essenciais da literatura de outros países, de outros povos, de outras línguas, suas semelhanças e diferenças para com a nossa, assim como seus pontos fortes e fracos no panorama cultural universal. Jamais em competição com as tradições internas, mas em parceria com elas, a literatura comparada pode ter uma função de análise e ajudar a se chegar a um julgamento mais equilibrado e crítico de nossa produção intelectual, graças a uma perspectiva mais ampla e multicultural da literatura.

Tomemos aqui, como singelo exemplo para comparação literária, a seguinte relação entre a obra do irlandês Laurence Sterne (1713-1768) e do nosso Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908).

O mulato carioca Machado de Assis é convencionalmente tido como o maior escritor brasileiro de todos os tempos. É quase uma unanimidade, acredito. O grande crítico norte-americano Harold Bloom (1930-2019), aliás, tinha Machado de Assis como o maior escritor negro de todos os tempos. Uma de suas obras-primas é o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881). E a propósito, em 2020, a prestigiosa revista The New Yorker, em virtude de uma nova edição de “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas”, deu à resenha do livro o consagrador título: “Redescobrindo um dos mais espirituosos livros jamais escritos”.

“Memórias Póstumas de Brás Cubas” é alegadamente inspirado no “Tristram Shandy” (“The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman”, 1759-1767) de Sterne. Mesmo que se tenham estórias diversas para cada um dos livros, e mesmo que seus contextos sociais e culturais sejam diversos (uma Europa com duzentos anos de diferença para o nosso Brasil), há, sem dúvida, fortes pontos de contato/inspiração. A “forma livre de jogar as ideias”, as digressões e o humor (embora um humor mais sarcástico em Machado e um mais ingênuo/sentimental em Sterne) são amplamente reconhecidos. Pode-se até de dizer que Machado “roubou” a ideia ou concepção do romance de Sterne, que, por sua vez, já a teria “furtado”, em parte, do Dom Quixote (1605) de Miguel Cervantes (1547-1616).

Mas não tenham isso como demérito para o nosso maior escritor. Com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Machado de fato nos presenteou com um romance inovador – experimental, posso dizer –, tido como o marco inicial do realismo (mágico?) na literatura brasileira, até então presa ao romantismo. Um ponto de virada, para melhor, na obra do Bruxo do Cosme Velho. As ousadias formais – basta lembrar que o narrador é um “defunto autor”, sem compromisso com a cronologia do tempo – e o humor implacável são mesmo revolucionários. E, para além dos aspectos formais, o romance também encanta pelo seu conteúdo: pretensa autobiografia, é uma crítica, refinada mas sem concessões, da hipocrisia da sociedade brasileira de então (e de hoje?). Por detrás do humor, revela o pessimismo do autor com tudo que ele enxerga. É um romance filosófico e moral, que combina diversão e profundidade com natural equilíbrio.

Afinal, e não canso de repetir, já dizia o enorme Picasso (1881-1973): “Bons artistas copiam, grandes artistas roubam”.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Uma receita ensaística

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Michel de Montaigne (1533-1592) é considerado o exemplo do intelectual moderno. Talvez tenha sido o primeiro da sua estirpe. Como bem define Carlos Eduardo Ortolan (em “Montaigne: um ensaísta refinado”, Cadernos EntreLivros 4 – Panorama da Literatura Francesa, 2007), ele foi um “cavalheiro elegante que, recluso em sua propriedade em Bordeaux e cercado por vasta biblioteca como um herói solitário do pensamento, produziu reflexões sobre os temas mais variados. Montaigne forneceu o tom para o estudioso erudito, o trabalhador intelectual incansável, às voltas com a leitura e a redação de seus artigos”. Montaigne foi um sábio, no que de mais positivo possa ter essa palavra. Praticante da “epoché” do ceticismo clássico, a suspensão do juízo diante da antinomia de duas formulações igualmente razoáveis e fundamentadas, evitava, entre outras coisas, falar tolices.

E Montaigne foi – ou, melhor, é – o autor de uma obra considerada seminal das letras universais, “Os ensaios” (“Les Essais”, 1580), que tratam de quase tudo e que fundam um novo gênero literário. Como anota o citado Carlos Eduardo Ortolan, “uma breve vista de olhos por suas páginas nos brindará com um cortejo imenso, heterogêneo e vazado, no melhor estilo clássico de uma variedade de temas que faria inveja a qualquer enciclopédia moderna. (…) Esse é um dos encantos da obra: os ensaios podem ser lidos sem compromisso com uma ordem rígida, abertos ao acaso e fruídos em sua sabedoria e elegância, mesmo nos tempos atuais”.

Mas, a partir do exemplo de Montaigne, o que faz alguém ser um bom ensaísta? E, em tempos tão “líquidos”, que pedem textos mais curtos, o que faz um bom cronista/ensaísta? Existe uma receita para um “fino corte ensaístico”?

Certamente, ensaios/crônicas devem ser sistemáticos somente até certo ponto. Os textos, espalhados em jornais e revistas, ou mesmo reunidos em livro, podem possuir um ou mais núcleos temáticos, é verdade. Mas o que realmente importa é que eles sejam o resultado das reflexões mais íntimas do autor, das suas preferências na vida ou mesmo do momento, enfim, do seu estado anímico, quando ele, tinta e papel à mão, ou defronte a uma tela de computador, deixa fluir suas ideias e sua imaginação.

O ensaísta/cronista não deve cair na tentação da rigidez acadêmica, embora não deva abrir totalmente mão dos elementos indispensáveis a uma formulação de ideias fundamentada e crítica. Nesse ponto, basta ser sensato.

Ele deve ser informativo. Conhecer o mundo, as pessoas e as ideias. Mas deve ser também opinativo. Ter posição. Não precisa – aliás, não deve – ser extremista. O ensaísta/cronista deve ter a coragem de ser moderado.

Pode ser irônico, até sarcástico, mas na medida certa. A ironia oferece expressividade a qualquer discurso. E o riso, para desespero dos casmurros de hoje, nos une.

Por derradeiro, o ensaísta/cronista de gênio deve saber interpretar o mundo. Para além de saber das ideias, é necessário compreendê-las. Deve sobretudo descobrir e dizer o ainda não dito a partir daquilo que já foi dito. Mark Twain (1835-1910) certa vez disse algo como: “Não existe uma nova ideia. É impossível. Nós simplesmente pegamos um monte de ideias antigas e, então, as colocamos em um tipo de caleidoscópio mental”. E assegurava o revolucionário Picasso (1881-1973): “Bons artistas copiam, grandes artistas roubam”.

E, claro, o ensaísta/cronista deve concluir o seu raciocínio ou, pelo menos, sugerir alternativas coerentes de conclusão para o leitor. Pois essa é a minha receita de “fino corte ensaístico”. Que, confesso, copiei ou roubei, por partes, de muita gente.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Direito, séries e seriados: vale a pena?

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Vale a pena estudar o direito por intermédio de séries e seriados de TV? Eles se prestam a propósitos que vão além do divertimento? São instrutivos sob o ponto de vista do conhecimento jurídico? É minimamente seguro embarcar nessa interdisciplinaridade?

Quanto às séries em forma de “documentário” isso parece bastante óbvio.

Mas acho que podemos fazer a mesma afirmação quando se tratar de obras de ficção. Embora os seriados jurídicos possam levar a visões equivocadas sobre o sistema judicial de dado país e do direito como um todo – afinal, são ficção –, se os assistirmos com um mínimo de senso crítico, eles são altamente instrutivos para os profissionais do direito. E posso dar até um depoimento pessoal: quando estava fazendo meu PhD no Reino Unido, no King’s College London – KCL, frequentemente assistia e muito aprendi com “Law & Order: UK”, a versão adaptada do badalado seriado para o Reino Unido. Apesar das inconsistências com a realidade, ele me fez aprender bastante sobre o mundo judiciário daquele país, sua história e, sobretudo, sua geografia, ao mostrar alguns dos mais belos prédios de Londres (da Legal London, como as Royal Courts of Justice, as Inns of Courts e a Old Bailey), prédios que, quase todos os dias, passava em frente para admirar.

Na verdade, posso dar uma série de motivos para justificar essa assertiva de que as séries e os seriados de TV são meios adequados para o tratamento sério do direito.

Em primeiro lugar, posso dizer que esses legal dramas testemunham a visão sobre o mundo do direito existente em determinada sociedade em certa época, muito embora essa visão esteja marcada, em certa medida, pela ótica particular do roteirista ou do diretor da obra. E esse testemunho é bem mais acessível ao espectador (com ou sem formação jurídica), para fins de reconstrução da imagem que determinada sociedade tem do direito e de seus atores, do que os áridos estudos jurídico-sociológicos postos em livros de caráter estritamente científico. Parece certo que o cidadão médio tem muito mais contato com operadores jurídicos ficcionais – incluindo-se aqui os personagens de filmes, séries, seriados e, no Brasil, sobretudo, os de telenovelas – do que com profissionais reais. Consequentemente, a imagem que o cidadão médio faz da lei, do direito, da justiça, dos juízes, dos promotores, dos advogados etc. é formada muito mais através da ficção (em suas diversas formas) do que a partir de experiências diretas pessoais.

Em segundo lugar, alguns legal dramas resolvem satisfatoriamente problemas jurídicos intrincados. As séries e seriados, com suas intrigantes estórias, relatando a casuística das prisões, da vida forense ou dos escritórios de advocacia em linguagem bem mais acessível que a linguagem técnico-jurídica, são frequentemente excelentes aulas de direito. O relato televisivo, com sua dramaticidade, muitas vezes é bem mais elucidativo do que a objetiva descrição técnica do mesmo fato, processo ou instituição. De fato, vale a pena estudar o direito através das séries e dos seriados porque, na medida em que haja uma correspondência entre o conteúdo do filme e a realidade do mundo jurídico, o estudo do direito, partindo da casuística narrada no filme analisado, torna-se bem mais concreto e compreensível.

Em terceiro lugar, acredito que vale a pena estudar o direito através das séries e dos seriados porque a (re)construção televisiva dos operadores jurídicos pode ser um bom instrumento para que os estudantes e os profissionais no mundo real repensem e reconstruam com aprimoramento os seus papéis e as suas imagens na sociedade. E pode-se ainda acrescentar que, valendo-se de uma análise da TV de outros países, é possível se conhecer melhor – e comparar – a imagem que a sociedade brasileira tem da atividade jurídica e dos profissionais do direito no nosso país.

Em quarto lugar, a produção televisiva, ao mesmo tempo em que reproduz o direito posto e o imaginário popular acerca das diversas temáticas jurídicas, também influencia, em graus variados, a construção desse direito e, sobretudo, desse imaginário. Nesse ponto, como se dá com outras interfaces da TV – por exemplo, com a religião, com os costumes, com a moda e por aí vai –, ela, a televisão, é subversiva, tanto para o direito positivo em si como para a “mentalidade” jurídica de modo mais abrangente. Não causa assim espanto que essa televisão mais “subversiva” – sobretudo a telenovela, no caso do Brasil – tenha antecipado muito das modernas teorias e tendências do direito, tais como a ética jurídica, o ambientalismo, o biodireito, o feminismo, a transexualidade etc. De fato, muitas das ideias inovadoras no direito, assim como boa parte das críticas à mentalidade jurídica consolidada, historicamente encontraram sua mais vívida expressão na ficção – seja através de romances, do teatro, do cinema, da TV etc. –, nesse meio de expressão que William P. MacNeil (em “Lex Populi: The Jurisprudence of Popular Culture”, Stanford University Press, 2007) chamou, poeticamente, de “lex populi”.

Mas há ainda aspectos mais sutis…

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

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Trágicas misturas

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Nas últimas semanas, tenho aqui tratado da “ética das profissões/personagens jurídicas”, propositadamente de maneira interdisciplinar, misturando o direito com a literatura e o cinema. Uma maneira lúdica – afinal, poucas coisas são tão gostosas como a literatura e o cinema – de abordar a ética de profissões hoje tão incompreendidas, mas fundamentais, que, nas palavras de Eduardo C. B. Bittar (no seu “Curso de ética jurídica: ética geral e profissional”, Editora Saraiva, 2016), são capazes “de cercear a liberdade, de alterar fatores econômicos e prejudicar populações inteiras, de causar a desunião de uma sociedade e a corrosão de um grande foco de empregos e serviços, desestruturar uma família e a saúde psíquica dos filhos dela oriundos, de intervir sobre a felicidade e o bem-estar das pessoas…”. E acho que o fiz também de uma forma sistematizada, já que, seguidamente, tratei de profissionais/personagens como o governante, o legislador, o juiz, o promotor, o advogado, o professor/jurista, o jurado, o réu, a testemunha e por aí vai.

Dito isso, usarei como mote, para um arremate da temática, a mistura de todas essas profissões no teatro clássico grego. Se há semanas comecei a análise das profissões jurídicas com a “Antígona” (441 a.C.), de Sófocles (497-406 a.C.), desta feita, para finalizar, volto à Grécia antiga com o “Édipo Rei” (429 a.C.), do mesmo autor. Um retorno ao nosso eterno berço.

O enredo – ou o mito – de Édipo é conhecidíssimo (e notadamente desenvolvido na psicanálise de Sigmund Freud). Filho do rei tebano Laio, Édipo, ainda bebê, foi deixado para morrer, pois o seu destino era, segundo o Oráculo de Delfos, matar o próprio pai e desposar a mãe. Mas é salvo por um pastor. Já adulto, entre Corinto e Tebas, mata um velho homem. Chega a Tebas. Responde a um enigma proposto pela Esfinge. Salva a cidade. É feito rei, casando com Jocasta, sua mãe e viúva de Laio, assassinado misteriosamente. Anos após a realização da profecia, e Édipo sendo rei de Tebas, uma peste castiga a cidade. O Oráculo de Delfos, segundo consultado por Creonte (que sucederá como rei), vaticina que, para salvar Tebas do sofrimento, é necessário descobrir e punir o assassino de Laio. Édipo promete aos cidadãos da pólis encontrar e punir o homicida. Édipo sai em sua “caçada”. Mas quando consegue chegar à verdade, ele constata a existência de um só inesperado responsável – ele próprio.

Já tratei de “Édipo Rei” em outra oportunidade para frisar duas coisas: (i) nela, o leitor verá a origem, como um precursor, da dita ficção policial ou detetivesca, gênero literário mais que popularíssimo; e (ii) que podemos também traçar, a partir de “Édipo Rei”, a origem ou o conceito de um mui específico subgênero da literatura (e do cinema), a “ficção de tribunal” (“courtroom drama”), cujas estórias se passam perante uma corte de justiça em funcionamento, com seus atores (advogados, promotores, juízes etc.) realizando suas peripécias jurídicas.

Mas hoje quero ir além na análise de “Édipo Rei”, para dela tirar uma lição ou “moral”.

Na trama, em busca do assassino de Laio, Édipo procura a verdade dos fatos, ouve testemunhas, envia mensageiros para coleta de informações e provas, analisa os relatos, pondera hipóteses, tudo reunindo para formar uma convicção acerca da identidade do responsável pelo hediondo crime. Proativamente agindo, é um policial, um detetive, um investigador. Mas há também inúmeras cenas, como os diálogos/confrontos entre Édipo e Tirésias e entre Édipo e Creonte, que deveras se assemelham ao que se dá em uma sala de audiência/tribunal. Um “courtroom drama” no qual Édipo é promotor e é juiz. E Édipo, claro, nunca deixou de ser Rei, muito embora se veja ao final também culpado.

A mistura de papéis – detetive/promotor/juiz/rei/culpado – não dá certo. Sabedor da verdade, desesperado, Édipo se autocondena, arranca os próprios olhos, para não ser testemunha da própria desgraça e dos próprios crimes. Jocasta, sua mãe, esposa e rainha, outra mistura fatal, comete suicídio. Os destinos são cumpridos. E são só tragédias.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

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Juristas e bacharelas

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Não apenas de homens “práticos” é feito o direito. Há também os juristas, numa acepção peculiar do termo, para designar os pesquisadores, doutrinadores, professores e estudantes dessa ciência. E eles têm também o seu devido espaço na literatura universal.

O enorme Honoré de Balzac (1799-1850), o “Napoleão das letras”, por exemplo, se apropriou de muitas coisas do direito: instituições (casamento, herança, falência, crime etc.), linguagem, cenas/dramaticidade e, por que não, de seus juristas. “A comédia humana”, herdeira do “Code Napoléon”, é pródiga em juristas. Aqueles imaginados pelo autor, claro. Mais de 50 “homens da lei”, todos com lugares especiais dentro da “Comédia”, como teria certificado Peirre-François Mourier, em “Balzac, L’injustice de la loi” (Michalon Editeur, 1996). E, mais curiosamente,  juristas de verdade, grandes nomes da França, alguns deles professores de Balzac na Faculdade de Direito de Paris, como Hyacinthe Blondeau (1784-1854), Louis-Barnabé Cotelle (1752-1827), Charles Toullier (1752-1835) e Raymond-Theodore Troplong (1795-1869) ou os famosos quatro “redatores” do Código, Jean-Étienne-Marie Portalis (1746-1807), François Denis Tronchet (1726-1806), Jacques de Maleville (1741-1824) e Bigot de Préameneu (1747-1825), que são citados ou aludidos pelo autor em seus romances.

Assim também o fez o gigante Miguel de Cervantes (1547-1616), o pai do “Dom Quixote de la Mancha” (1605). Grandes jurisconsultos são citados nas obras de Cervantes, anota Luis E. Rodríguez-San Pedro Bezares, em “Atmósfera universitaria em Cervantes” (Ediciones Universidad Salamanca, 2006). Por exemplo, “o nome de Justiniano é referido pela boca da personagem Redondo na comédia Pedro de Urdemalas, ainda que de forma grosseira. O mesmo se dá com os importantes juristas medievais Bartolo ou Baldo”. Em “La elección de los Alcaldes de Daganzo”, uma farsa, “num coro de músicos e ciganos, faz-se referência a Bartolo”. Há também “uma menção aos juristas Bartolo e Baldo em La tía fingida, atribuída por um tempo a Cervantes”.

De verdade ou fictícios, estudiosos e estudantes do direito também têm lugar, para além da literatura, no cinema. E aqui, no momento em que se discute o papel da mulher no sistema judicial brasileiro, com a controversa questão da inclusão do gênero como critério de promoções por antiguidade e merecimento na magistratura e no Ministério Público, faço referência ao popular filme “Legalmente loira” (“Legally Blonde”, 2001), adaptado do romance homônimo de Amanda Brown e estrelado pela engraçadíssima Reese Witherspoon.

Basicamente, quanto ao seu enredo, segundo o site em português do IMDb (Internet Movie Database), a patricinha Elle Woods, “uma rainha da irmandade da moda, é abandonada pelo namorado. Ela decide segui-lo para a faculdade de direito [no filme, a Harvard Law School]. Enquanto está lá, ela percebe que há mais nela do que apenas aparência”. “Legally Blonde” é um filme divertidíssimo. Foi sucesso de crítica e público. Ganhou uma sequência (“Legally Blonde 2: Red, White & Blonde”). Virou um musical, que, aliás, assisti em Londres. Adorei. Mas ele é também, sob a aparência de “bobinho”, bem mais do que isso.

“Legally Blonde”, à sua maneira, representa um final rompimento com a tradição secular, no cinema, de os advogados (e outros operadores do direito) serem sempre personagens masculinos. Levando em consideração a completa ausência de mulheres advogadas em “I Am The Law” (1938), passando pelas personagens femininas de “Suspect” (1987), “The Accused” (1988), “Class Action” (1991) e “The Client” (1994), a onipresença feminina da personagem Elle Woods (interpretada por Reese Witherspoon) é um marco notável. Bem construído, por detrás da máscara de bobinho, “Legally Blonde”, com a vitória profissional da protagonista e a demonstração da hipocrisia e preconceito masculinos (e de Harvard), tem um forte apelo em favor da mulher. Representa, em certa medida, o espaço que o “sexo frágil” vem ganhando no mundo do direito. “Mesmo de salto alto e vaidosas, as mulheres terão sempre mais espaço daqui para frente”, foi o que me disse certa feita uma amiga querida.

Têm alguma ou bastante razão, o filme e a minha amiga.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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A ética do preso

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Nunca esqueci a observação de Nilo Batista, em prefácio ao livro “Literatura e direito: uma outra leitura do mundo das leis” (de Eliane Botelho Junqueira, Letra Capital, 1998): “o relato literário, muitas vezes integrado pela experiência do autor, quando não explicitamente autobiográfico, não é menos elucidativo do que a objetiva descrição técnica do mesmo fato, processo ou instituição; através de Dostoiévski (Recordações da Casa dos Mortos) aprende-se sobre a penitenciária não menos que através de John Howard (O Estado das Prisões) e sua descendência. Um diretor de presídio brasileiro que tenha lido, por exemplo, representantes da nossa literatura como Graciliano Ramos (Memórias do Cárcere), Plínio Marcos (Barrela) e Assis Brasil (Os que Bebem como os Cães) compreenderá melhor o que está fazendo”.

Peguemos o exemplo de Dostoiévski (1821-1881), que, acusado de conspirar contra o Czar Nicolau I, foi, em 1849, condenado à morte. Apenas momentos antes da ordem de fuzilamento, a pena foi anunciada como comutada para prisão com trabalhos forçados (o próprio Czar exigira a encenação da falsa execução). Dostoiévski, então, foi levado à Sibéria. Quatro anos de prisão e dez anos de exílio nesse fim de mundo. Esse padecimento – a partir da sua experiência numa prisão decadente, suja e intransponível – foi narrado pelo autor em “Recordações (ou Memórias) da Casa dos Mortos”, talvez como ninguém mais na literatura universal. De 1862, “Recordações da Casa dos Mortos”, construído a partir de uma coleção de fatos e eventos relacionados à vida nas prisões da Sibéria, é um romance, é vero. Mas só um gênio que passou por esse “sofrimento inenarrável”, que ali esteve “sepultado vivo”, para usar de expressões do próprio Dostoiévski, seria capaz de descrever as condições de vida e a personalidade daqueles que são condenados, culpados ou não, a viver ou morrer nessas condições. O momento da prisão em si, a solidão do cárcere ou a promiscuidade com delinquentes perigosos, tudo isso é terrível, sobretudo para homens de caráter e de sentimento, como Dostoiévski.

Esse tipo de experiência e de posterior narrativa não é uma exclusividade do grande romancista russo. Oscar Wilde (1854-1900) também pôs a angústia e o sofrimento no papel, retratando a realidade nas masmorras. A partir das idas e vindas de uma acusação pelo “crime” de homossexualismo, Wilde foi bater na prisão de Reading, cidade no sudeste da Inglaterra, que se torna o cenário de sua “Balada do Cárcere de Reading” (1898). A “Ballad” tem como ponto de partida a execução de um tal Charles Wooldridge, acontecida em 1896, quando Wilde estava ali encarcerado. Wooldridge, um militar, foi condenado à morte por haver assassinado a própria mulher. O enforcado tinha 30 anos quando cumprida a sentença. Para além do testemunho, Wilde amplia o sentido da sua narrativa, para simbolizar a situação de todos os prisioneiros, mas não para criticar a justiça das decisões que os condenaram, e sim para mostrar, como “advogado” de uma reforma penal, a brutalização da punição do condenado à morte e de todos aqueles ali aprisionados e esquecidos. O verso autoaplicável “cada homem mata as coisas que ama” restou célebre. Aliás, ainda em Reading Gaol, Wilde escreveu uma longuíssima carta ao seu amante, o Bosie. Nela, ele relembra o caso de amor e suas experiências de condenado. O tom é de lamento e ataque. Em 1905, foi publicada uma versão reduzida dessa carta. Em 1949, uma versão com partes inéditas. E, em 1962, a versão original revisada. A missiva restou conhecida com o título “De Profundis”.

Mas talvez tenha sido Victor Hugo (1802-1885) quem mais tenha feito em prol daqueles que eram – ainda o são – tratados como bestas humanas. Em “O último dia de um condenado” (1829), Hugo, sob os pontos de vista filosófico, sociológico, psicológico e jurídico, nos apresenta o diário de um condenado à morte, anônimo, que não é herói nem vilão, nas 24 horas anteriores a sua execução. Mas como se julga o ato do homem (ou do seu agrupamento em forma de Estado) que decide e impõe a morte a um outro homem? É o que procura fazer o autor. É o que os franceses chamam de “roman à thèse”. Libelo contra a pena de morte, tema tão importante para o direito (e aqui já deixo minha assertiva oposição à pena capital imposta pelo Estado). É verdade que a pena de morte, depois de muita luta, está hoje abolida na grande maioria dos países ditos “civilizados”. Mas, com Hugo e seu livro, na França e por onde a sua literatura se irradia, a luta pela abolição atingiu consciências e sensibilidades. Poucos fizeram tanto para abolir a “maldita” como o reformista/ativista Victor Hugo. Agradecemos!

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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A ética da testemunha

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Reformulação de um conto publicado em 1933, a peça “Testemunha de Acusação” (“Witness for the Prosecution”) é um dos maiores sucessos teatrais de Agatha Christie (1890-1976), dita a “Rainha do Crime”. Foi encenada, pela primeira vez, na Londres pós-guerra de 1953. Foi produzida nos EUA já no ano seguinte (1954). E ganhou os palcos do mundo. Todavia, embora seja uma das mais lidas e encenadas peças de Christie, a estória de “Testemunha de Acusação” alcança de fato o grande público com a sua adaptação para o cinema. Sob a direção de Billy Wilder (1906-2002), em 1957 é lançada a película de mesmo nome (“Witness for the Prosecution”), a meu ver um dos melhores filmes de tribunal ou “courtroom dramas” até hoje produzidos. No filme estão Charles Laughton, Tyrone Power, Elsa Lanchester e Marlene Dietrich, a esposa do réu e “testemunha de acusação”.

Apesar dos traços cômicos, que dão um tom único ao filme, “Testemunha de Acusação” é, antes de tudo, uma reverência ao que o direito – no caso, o direito inglês – tem de melhor e de pior. A sala de audiência na “Old Bailey” é um lugar que transpira tradição, frequentado por grandes homens. Charles Laughton/Sir Wilfrid Robarts, o advogado “velha raposa”, consegue absolver o réu Leonard Vole apenas para descobrir, imediatamente após o veredicto, que o acusado era realmente culpado. A “testemunha de acusação” laborou maliciosamente para absolver o réu (que estará protegido daí em diante pela regra do ne bis in idem). A reação do velho advogado é: “Vole, você brincou com a lei inglesa”, um pecado mais “grave” que o próprio homicídio. Leonard Vole, que revela estar de caso com uma mulher mais nova, é, em seguida, fatalmente esfaqueado por sua esposa, a “testemunha de acusação”. E o filme termina com Charles Laughton/Sir Wilfrid Robarts prometendo defender a esposa/testemunha maritalmente traída, mostrando sua crença na Justiça e no sistema legal inglês.

De estilo mais sério, baseado em romance homônimo de Robert Traver, pseudônimo do juiz John D. Voelker (1903-1991), o filme “Anatomia de um Crime” (“Anatomy of a Murder”, 1959), protagonizado por Jimmy Stewart (1908-1997), é outro clássico do cinema que tem como tema recorrente a falibilidade da prova testemunhal. Nele, uma testemunha, por lealdade à vítima (seu antigo patrão) e por amor à filha deste, “interpreta” os fatos do caso, mesmo que de “boa-fé” (ou seja, acreditando ser a verdade), em detrimento da defesa do réu da estória. Outra testemunha, um dos companheiros de cela do réu, dolosamente depõe contra ele, orientada pelos promotores, em troca de um acordo suave para o seu próprio crime, segundo o contexto dá a entender.

Esses dois filmes retratam uma realidade que nós, operadores do direito, bem conhecemos. Sabemos que a prova testemunhal é provavelmente o meio de prova mais utilizado no direito processual brasileiro, sobretudo no processo penal. Mas ele também é, sabemos, o meio mais manipulável, o menos confiável. É por demais sujeito a imprecisões, seja dolosamente, “seja pela falibilidade da memória humana, seja porque, talvez até sem malícia, pode a testemunha deturpar os fatos com o fito de favorecer a parte”, como diz Luiz Rodrigues Wambier (em seu “Curso avançado de processo civil”, vol. 1, RT, 2007).

A prova testemunhal é por isso entre nós conhecida pela alcunha de “a prostituta das provas” (e aqui já afirmo que longe de mim querer ofender “as profissionais do amor”), apelido cuja autoria já vi atribuída a vários juristas de renome. Sem testemunhos de ciência própria sobre a criação, darei meu veredicto: tenho a designação como de “autor desconhecido”.

A alcunha de “prostituta das provas” é pejorativa e talvez exagerada, é vero. Mas que os causos de “Testemunha de Acusação” e “Anatomia de um Crime” nos fazem lembrar da “mais antiga profissão”, isso é vero também.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Crônica

A ética do réu

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Grosso modo, juridicamente, réu é “aquele que é chamado a juízo para responder a uma ação cível ou criminal”. E, de uma maneira bastante informal, no imaginário popular, é o “autor de crime”. No palco do direito, é personagem de tristíssima figura. Mas sempre antipatizada? Protagonizando inúmeras estórias, a resposta é depende.

De início, lembremos o padrão criminoso lombrosiano – que advém de Cesare Lombroso (1835-1909), o médico, psiquiatra, antropólogo e criminologista italiano, autor de “O homem delinquente” (1876), o iniciador da antropologia criminal e fundador da Escola Positiva do Direito Penal. No nosso imaginário, Lombroso é sobretudo lembrado pela sua descrição do “criminoso nato”, como parte de uma classificação, toda sua, dos delinquentes. Aquele sujeito disforme, assustador até, que nos acostumamos a chamar de lombrosiano. A classificação do professor italiano não resistiu por muito tempo às críticas dos estudiosos, é vero. Mas Lombroso deu muito material para a imaginação dos literatos, como é o caso do naturalista Émile Zola (1840-1902), com “A besta humana” (1890). Entre nós, temos Pedro Américo (1843-1905), gênio da pintura, mas também escritor, que vivia na Itália quando as ideias de Lombroso perambulavam pelos arredores “civilizados”. No seu “O Foragido” (1899), a curandeira Cericê é apresentada como um tipo degenerado, à moda das feiticeiras, deveras lombrosianas, da Itália mística de outrora.

Entretanto, na literatura, também temos autores de crimes bárbaros que não se parecem com o criminoso nato lombrosiano. Já na mitologia grega, temos Medéia, filha de Eetes, rei da Cólquida, que, apaixonada, ajudou Jasão, o líder dos argonautas, a conseguir o velocino de ouro. Como narra Lemos Britto (1886-1963), em seu “O crime e os criminosos na literatura brasileira” (Livraria José Olympio, 1946), “Eetes possuía o velocino de ouro, que Jasão e os argonautas buscavam, e o mantinha guardado por um dragão. A feiticeira Medéia apaixonou-se pelo herói e, depois de ajudá-lo a realizar seu intento, seguiu com o grupo para a pátria de Jasão, Jolcos, na Tessália. Mais tarde, Jasão apaixonou-se por Glauce e abandonou Medéia. Inconformada, ela estrangulou os filhos que tivera com Jasão e presenteou a rival com um manto mágico que se incendiou ao ser vestido, matando-a”. O mito restou conhecido em obras de Eurípides, Ésquilo, Ovídio, Sêneca e, mais modernamente, de Corneille e até mesmo de Pier Paolo Pasolini e do nosso Chico Buarque. A mais célebre versão é a tragédia “Medéia” (431 a.C.), do primeiramente citado Eurípides (480-406 a.C.). De toda sorte, repetindo Lemos Britto, “no imaginário coletivo, Medéia persiste sempre como o arquétipo da mulher desesperada de amor a quem o ciúme conduz às mais alucinadas e terríveis ações criminosas, sem contudo apresentar a frieza emocional caraterística do criminoso nato, pois representa, sim, a criminosa passional por excelência”.

Aliás, temos réus da literatura que merecem toda a nossa simpatia, sendo esse o caso do bancário Jofeph K., de “O processo” (1925), para nós do direito o mais badalado dos romances de Franz Kafka (1883-1924). Jofeph K., por um “crime” ou por razões nunca reveladas, nem a ele nem ao leitor, é preso, processado e condenado por um misterioso e inacessível tribunal. Algo “kafkiano”, digo, sendo hiperbolicamente tautológico. Desse romance, para tentar ilustrar a problemática da denegação da justiça a muitos daqueles que são de algum delito acusados, lembro a parábola “Diante da Lei”, que consta do capítulo 9 de “O processo” (e também publicada, separadamente, no livro de contos “Um médico rural”, de 1919). Texto central na obra de Kafka, um dos preferidos do próprio autor, ele narra a impotência de um homem do campo, mas que poderia facilmente ser um cidadão da cidade (sobretudo se preto e pobre), diante do poderoso porteiro que vigia a entrada para a “lei”.

Dito isso, sugiro a releitura de Kafka e do seu “O processo”. Que aprendamos sobre as burocracias do direito, em especial, os seus aparelhos policial e judicial, e sobre a impotência do cidadão-réu em relação a elas. Que aprendamos algo sobre o fim ético ou moral da atualíssima parábola “Diante da Lei”.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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Crônica

A ética do jurado

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

O tribunal do júri é um dos institutos mais encantadores do direito, sobretudo para o leigo nas lides jurídicas. É a forma de julgamento, cuja ancestralidade remonta aos primórdios da civilização, que, com toda a sua teatralidade, os debates entre acusação e defesa, a presença do réu, a majestade do juiz presidente e a reunião dos jurados em sala secreta, mais apelo tem no imaginário popular. No mundo anglofônico – onde está a origem moderna do instituto –, ele tem seu fundamento na cláusula 39 da Magna Carta, que fala em “processo legal por seus pares”.

É um prato cheio para a ficção jurídica, sobretudo para o cinema e as séries de TV (tipo “Law & Order”). E o mais típico dos filmes de júri é “Doze Homens e uma Sentença” (“12 Angry Men”, 1957), direção de Sidney Lumet (1924-2011) e estrelado por Henry Fonda (1905-1982).

À primeira vista, o enredo de “Doze Homens e uma Sentença” é simples.  Um jovem porto-riquenho, pobre morador de um “slum” (algo próximo de um “pardieiro”), é acusado de haver assassinado o pai. “As provas circunstanciais” estão contra ele. Doze jurados se reúnem para chegar a uma decisão unânime. Não alcançada a unanimidade, o júri será dissolvido. Onze jurados, já na primeira votação, optam pela condenação do réu. Henry Fonda é o jurado número 8 que, menos por acreditar na inocência do réu e mais por não crer na consistência das provas, obsta essa unanimidade. E o jurado número 8, após muita discussão, consegue finalmente convencer os demais jurados para fins de absolvição do jovem réu.

Todavia, um olhar mais atento ao filme nos revela como as decisões judiciais (ou quaisquer decisões) são tomadas. No ambiente sufocante da sala secreta, com calorosos debates, as personalidades dos jurados (todos homens e identificados, salvo na cena final, apenas por números e pela profissão) se evidenciam, assim como são revelados os motivos de cada um deles – baseados em preconceitos e experiências bem pessoais – para a decisão açodada de condenação do réu.

O jurado nº 7 é um descompromissado que quer uma decisão rápida para poder ir ao jogo de baseball da noite. O jurado nº 2 é um pacato bancário que, num primeiro momento, por não ter uma personalidade forte, apenas segue a maioria. O jurado nº 5 tem uma origem humilde e, a partir de certo ponto da narrativa, tende – ou é acusado de – a simpatizar com o réu. As acusações partem, principalmente, do jurado nº 3, um raivoso homem de negócios com um histórico de sérios conflitos com o filho (que ele enxerga no réu). O jurado nº 4 é um consultor na bolsa de valores, frio e analítico. O jurado nº 10 é um preconceituoso. Seu preconceito se dirige, para além do réu, contra o bom jurado nº 11, um europeu do Leste naturalizado norte-americano. O filme mostra, assim, o pior da Justiça e do tribunal do júri, quando decisões sobre a vida, a liberdade ou o patrimônio de pessoas são tomadas com base em preconceitos ou por homens descompromissados. E não pensem que decisões assim fundadas são privilégio do tribunal do júri. Elas se dão também com juízes de carreira, embora em menor grau, já que esses juízes são ou deveriam ser treinados para minimizar tais influências. Os que tenham estudado como se dão os processos de decisão confirmarão o que eu digo.

Mas nem só de “bigots” (pessoas radicais ou intolerantes) é feito o heterogêneo júri de “Doze Homens e uma Sentença”. Além do já mencionado jurado nº 11, há o de nº 9, um velhinho que, pela idade, não é levado a sério por alguns dos jurados, mas que, ao final, se mostra observador e sábio. O próprio jurado nº 1, que preside os trabalhos na sala secreta, se mostra agregador e eficiente. Isso sem falar no onipresente jurado nº 8 (Henry Fonda). Ele é o cidadão que trabalha, dentro do sistema, para que a Justiça dos homens coincida com a “justiça ideal” e, ao final, consegue convencer os demais jurados, defendendo a presença da chamada “dúvida razoável” (“reasonable doubt”), para fins de absolvição do jovem réu. Na atuação do jurado nº 8, o filme apresenta o que o júri ou a Justiça tem de melhor. E mesmo a diversidade estereotipada dos doze jurados não deixa de ser uma homenagem ao pluralismo, à tolerância e ao consenso, pilares de um estado democrático de direito para a realização final da Justiça.

Por fim, vai uma observação sobre o Brasil. Segundo a nossa CF (art. 5º, inciso XXXVIII, alínea “d”), compete ao tribunal do júri o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Na fase final, na sessão de julgamento propriamente dita, sete cidadãos comuns (sem necessária formação jurídica), que compõem o conselho de sentença, decidem, de acordo com as suas consciências e (supostamente) as provas dos autos, o destino do réu. Tenho dúvidas quanto à positividade do júri. Não conheço profissionalmente os modelos inglês ou norte-americano. Mas, quanto ao nosso, conheço coisas de patéticas a escabrosas. Na verdade, tenho um caminhão carregado de críticas.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

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Crônica

A ética do advogado

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

A literatura e o cinema são abundantes em personagens advogados. Poucas profissões – certamente nenhuma outra profissão do direito, com exceção dos policiais, se tida esta como tal – foram tão retratadas em obras de ficção. Positiva ou negativamente. Mas deixarei a nomeada dessa plêiade de causídicos ficcionais à boa memória de vocês.

Aqui vou me concentrar em dois desses advogados, personagens principais de dois clássicos do cinema, por sua vez inspirados/adaptados de obras literárias: o advogado Paul Biegler, personagem de Jimmy Stewart (1908-1997) em “Anatomia de um Crime” (1959) e o advogado Atticus Finch, interpretado por Gregory Peck (1916-2003) em “O Sol é para Todos” (1962).

O enredo de “Anatomia de um Crime” gira em torno do homicídio cometido, em uma cidadezinha dos EUA, por um oficial do Exército, contra um homem violento que, alegadamente, teria estuprado sua aparentemente infiel esposa. Paul Biegler/Jimmy Stewart é o advogado do interior que um dia foi o Promotor de Justiça da cidade. Biegler é contatado pela provocante esposa para defender o marido. Ele não quer se envolver no imbróglio, mas, precisando ganhar a vida, acaba aceitando o caso. Biegler é o arquétipo do heroico advogado dos filmes americanos.

Mas será apenas isso? Um olhar crítico nos mostrará que não é bem assim, preto no branco, um filme de mocinhos contra bandidos. Por exemplo, no teatro do tribunal do júri o queridinho Biegler, fugindo do seu bom mocíssimo, pateticamente apresenta ao júri uma surrada calcinha, como evidência do crime sexual que teria levado ao crime de morte. Depois intencionalmente faz, para o júri, uma afirmação que ele, ética e legalmente, não deveria fazer. O júri é instado pelo juiz a desconsiderar essa afirmação. O réu pergunta ao seu advogado como o júri fará isso. A resposta é simples: “eles não farão, eles não conseguem” –, mostrando que um julgamento “se faz” com muito mais do que aquilo que está nos autos. O réu é assim absolvido. No mais, assistindo ao filme, mesmo sendo contra o argumento de que o estupro justifica o homicídio, a gente torce pela absolvição, acredito que por empatia para com o advogado de defesa. É digno de nota como o ator Jimmy Stewart gera esse tipo de sentimento. Talvez o enxerguemos como em “Do mundo nada se leva” (1938) e “A felicidade não se compra” (1946). E isso é outra coisa a ser pensada: até que ponto os advogados obtêm os seus “resultados” com base em empatias e antipatias pessoais?

Quanto a “O Sol é para Todos”, faço uso do livro “100 filmes: da literatura para o cinema” (organizado por Henri Mitterand, BestSeller, 2010) para resumir o enredo: “Estado do Alabama, Grande Depressão da década de 1930. Desde a morte da mulher, Atticus Finch, advogado idealista, cria sozinho os dois filhos, Scout e Jem. Encarregado de defender um operário negro acusado de espancar e violentar uma jovem branca, Atticus enfrenta o ódio e o racismo da população local, em um julgamento de grande repercussão. Após uma tentativa de linchamento comandada pelo pai da vítima, Bob Ewell, o operário é condenado, apesar das provas de sua inocência. Desesperado, ele tenta fugir, e é abatido. Algum tempo depois, Scout e Jem são brutalmente agredidos por Ewell, mas Boo Radly, vizinho simplório da família Finch, interfere e mata acidentalmente o agressor. O caso é abafado por Atticus e pelo xerife da cidade, tanto mais que uma forte suspeita recai sobre Ewell no caso do estupro de sua filha”.

Anoto que Atticus Finch é talvez o advogado mais famoso da literatura e do cinema. Aquele que mais contribuiu para melhorar a imagem da classe, comumente malvista. Como anotam Ernesto Pérez Morán e Juan Antonio Pérez Millán (em “Cien abogados de ayer e de hoy”, Ediciones Universidad de Salamanca, 2010), “belo, generoso, sereno, sempre bem vestido, dedicado pai de dois filhos cuja mãe faleceu quatro anos atrás, Atticus Finch é um modelo de cidadão, admirado por seus vizinhos do condado de Macon que, em 1932, seguem sofrendo as consequências da quebra da bolsa de valores de 1929”. Mas lembremos do final do filme. Após o julgamento do operário negro Tom Robinson, as crianças são salvas graças ao misterioso (e com transtornos psiquiátricos) Boo Radley. Bob Ewell é morto por Boo Radley, que é referido como uma das “cotovias” (“mockingbirds”) do filme. Um novo júri é ventilado, quiçá mais terrível que o primeiro, contra mais uma cotovia. Mas o xerife acaba dando o caso por encerrado. Relatará que Bob Ewell caiu, bêbado, ferindo-se mortalmente com a faca que levava. Ele “sentencia”: “há algum tempo morreu um negro inocente, agora foi um branco, o verdadeiro responsável por aquela morte. Que um morto enterre o outro. Não será errado proteger um inocente que fez um favor a todos”. Scout dá razão ao xerife. As crianças Finch foram ensinadas a não ferir as cotovias (Tom Robinson e Boo Radley), que apenas cantam. Atticus, o advogado exemplo, comovido, aceita a decisão, agradece a todos e abraça sua filhinha. Mas seria essa a solução eticamente correta?

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.