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Crônica

O panelão da cultura

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Por estes dias, referi-me aqui à denominada “cultura de massa”, anotando que os gostos, hábitos, valores, ideias e atitudes – o agir do homem moderno – estavam cada vez mais condicionados pelos meios de comunicação de grande escala. Desde a era do rádio, do cinema e da TV, e hoje em tudo amplificado pelo fenômeno, ainda mais agudo e capilarizado, da Internet. A ação crescente desses meios de comunicação – sobretudo a TV e a Internet – criam um certo tipo de “cultura”, dita “de massa”, homogênea e invariavelmente de baixa qualidade, padronizando os gostos, preferências, interesses, motivações, ideias e valores do homem-massa contemporâneo.

E essa cultura, de há muito transformada em mercadoria, mexe com muito – muitíssimo mesmo – dinheiro. Ela tem, para além da sua relevância como “coisa do espírito”, altíssimo “valor”.

De fato, Nelson Werneck Sodré, em “Síntese de história da cultura brasileira” (DIFEL, 1985), reproduzindo o para lá de controverso Karl Marx (1818-1883), já nos alertava para a gritante transformação dos produtos da cultura em mercadorias: “Houve um tempo, como na Idade Média, em que não se trocava senão o supérfluo, o excedente da produção sobre o consumo. Houve também um tempo em que não somente o supérfluo, mas todos os produtos, toda a existência industrial, passaram ao comércio, em que a produção inteira dependia da troca. (…) Veio, finalmente, um tempo em que tudo o que os homens tinham encarado como inalienável tornou-se objeto de troca, de tráfico, e podia ser alienado. Este foi o tempo em que as próprias coisas que, até então, eram transmitidas, mas jamais trocadas; dadas, mas jamais vendidas; adquiridas, mas jamais compradas – virtude, amor, opinião, ciência, consciência, etc. – em que tudo enfim passou ao comércio. Este foi o tempo da corrupção geral, da venialidade universal ou, para falar em termos de economia política, o tempo em que tudo, moral ou físico, tornando-se valor venal, é levado ao mercado, para ser apreciado no justo valor”.

Pondo de lado o tom panfletário de Marx, parece certo – ou pelo menos é o que diz um outro Nelson, o Rodrigues – que, hoje em dia, “o dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro”.

Com isso eu chego aonde quero chegar: é possível “comprar” o sucesso na cultura? Partindo do pressuposto da existência de um mínimo existencial de talento, parece mais do que certo que sim. Publicidade/propaganda é muito mais do que muito.

Como diz Nelson Werneck Sodré (favor não confundir os Nelsons), “na medida em que se amplia a área de atividade artística e que suas criações se tornam mercadoria, muda o quadro e, inclusive, a escala de valores. Antes, quando não havia público ou, nele, reduzido que era, preponderava o julgamento dos oficiais do mesmo ofício, dos confrades, a consagração, pelo menos a curto prazo, ficava na dependência dos especialistas – eram os escritores que julgavam os escritores, por exemplo – e isso conferia uma nota provinciana ao meio, assemelhava-se ao arraial interiorano, permitindo a influência das igrejinhas; só estas poderiam consagrar. O aparecimento e o crescimento do público, que passa a ser árbitro do sucesso, transfere esse poder de consagração àqueles que estão fora da atividade artística e não sofrem as suas injunções e competições. Na medida em que as criações artísticas se transformam em mercadoria e que, portanto, há consumidores para ela, são estes os juízes de seu valor. Com o desenvolvimento desse mercado, surge a possibilidade de forjar falsos valores, à base da publicidade, aquilo que a chamada ‘cultura de massa’ pode impingir. Assim, em seu desenvolvimento dialético, o positivo se torna negativo, o avanço se transforma em recuo”.

De toda sorte, talvez esse panelão da cultura seja melhor do que as panelinhas/igrejinhas de outrora, referidas por um dos Nelsons, que, embora menos poderosas, ainda hoje subsistem tanto nas artes como nos esportes. Pensando bem, deve ser por isso que eu não estou conseguindo apresentar devidamente, na pelada da AABB, o meu futebol clássico e eficiente.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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As madeleines

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

A madeleine – bolinho basicamente feito de farinha, manteiga, ovos e açúcar – é uma das delícias da França. Ela restou famosa, para os amantes das letras, por sua ligação com o grande Marcel Proust (1871-1922), que, escrevendo “Em busca do tempo perdido”, faz seu narrador ser invadido por graciosas memórias após provar um chá com as madeleines oferecidas pela mãe: “(…) no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal”.

A partir daí “la Madeleine de Proust”, como registra a revista Deguste (numa já antiga edição de 19 de abril de 2017), “se tornou uma expressão da língua francesa que se refere à memória involuntária, que acontece quando um som, cheiro ou sabor faz com que uma pessoa se lembre de algo, sem nenhum esforço adicional. A expressão, portanto, traz à tona o poder da memória inconsciente e como ela chega, de repente, de forma forte e irracional”.

Acredito, na mesma linha de Steven Pinker (em “Como a mente funciona”, Companhia da Letras, 1998), no “colorido emocional da experiência. Nós não apenas registramos os eventos, mas os registramos como agradáveis ou dolorosos”. E que todos nós, vez ou outra, de surpresa, topamos com as nossas “madeleines”, essas “memórias involuntárias” de um passado remoto – “fragmentos preciosos” se agradáveis –, que vêm espontaneamente à mente a partir das ocorrências cotidianas mais comuns. Não importa que sentido nos faça viajar no tempo/memória: pode ser o sabor do pedacinho de bolo de Proust, o cheiro infantil inconscientemente jamais esquecido ou o som de um amor serenamente perdido.

Eu mesmo relatei, por esses dias, o achado, em Paris, do livro “Les timbres: guide pratique du collectionneur” (Editions Atlas, 1984): com imagens/fotografias de selos em gostosíssima fartura, ele funcionou para mim como uma “madeleine”, em busca de um tempo em que, menino curioso, sonhava e aprendia com os amantes dos selos, filatelistas do mundo e da nossa “Cidade do Sol”. Lições aprendidas com Elmo Pignataro, o nosso maior colecionador, na sua casa da Ponciano Barbosa, rua sem saída que ia dar na comunidade das irmãs Doroteias do inesquecível Colégio Imaculada Conceição/CIC. As aventuras na rua Seridó de Mussolini Fernandes, durante décadas o nosso maior comerciante de selos. As visitas à casa da Nascimento de Castro de Rosaldo Aguiar, presidente do nosso Clube Filatélico e também pai de amigos de infância. As idas quase semanais aos Correios da Ribeira, cuja “agência filatélica” o saudoso Expedito cuidou por tantos anos, para a aquisição das mais recentes emissões comemorativas brasileiras.

De toda sorte, as “madeleines de Proust” são deveras irracionais. Bem estranhas até. Eu mesmo tenho uma, aliás recorrente, que posso classificar como “esquisitíssima”. O cheiro de estrume (grosso modo, “cocô de vaca”), odor em regra detestado, invariavelmente provoca em mim, de forma involuntária, uma sensação/sentimento muito agradável. Uma sensação de placidez, segurança ou mesmo gostosa saudade, que é complicado para definir, mas não é difícil de relacionar. Associo a uma época em que, ainda menino, ia – na verdade, íamos todos, meus pais, meus tios e primos, nossos amigos de outrora – à Fazenda Paraíso do meu pai. O curral, o leite cru, o cavalo Gugaga, a montaria nas ovelhas, o banho de tanque – num tempo em que todos que eu conhecia eram vivos – era tudo que o menino de então poderia desejar.

Esse cheiro doce de estrume, que me leva de volta à Fazenda Paraíso, semelhante à “Madeleine de Proust”, por um hiato torna-me “indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade”. Faz-me desacreditar que somos todos medíocres, contingentes e mortais.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

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Zero à notação

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Na Europa, em especial na França, já de algum tempo, há quem denuncie aquilo que eles chamam de abuso das “notações” – leia-se a prática de se classificar ou dar nota a tudo –, por consumidores/clientes, em sites de diversas empresas (a Uber, por exemplo) ou mesmo em plataformas virtuais para tanto direcionadas (a exemplo do TripAdvisor).

Alega-se que esse tipo de notação tem “infernizado” a vida dos trabalhadores das empresas avaliadas. As notas dadas, marcadamente subjetivas, têm ensejado reduções de salários, suspensões de contrato de trabalho ou mesmo demissões com justa causa, entre outras penalidades. “Boicotem esse sistema abjeto”, é o que já pedem as organizações em prol dos trabalhadores.

Ademais, na selva virtual de hoje, as inúmeras plataformas especificamente direcionadas para a notação têm sido um inferno não só para os trabalhadores. Basta irmos ao Google e encontraremos profissionais liberais – médicos, por exemplo – bem ou muito mal “notados”. E especificamente quanto ao Golias da Web TripAdvisor, muito em razão dos chamados “serial-noteurs” (de boa ou má-fé), este tem se tornado uma ameaça “insuportável” às empresas/profissionais de hotelaria e de restaurantes, na França, mas também no mundo inteiro.

Novamente estudando na Aliança Francesa de Natal, por intermédio do nosso livro/método de francês “Défi 5”, tive acesso a um texto do Concierge Masqué da revista Vanity Fair francesa, em que se grita “Morte ao TripAdvisor”, uma plataforma que, veiculando as “chantagens mesquinhas” dos clientes de restaurantes e hotéis – muitas vezes em busca de um jantar ou um pernoite como recompensa –, transformou-se numa “ditadura de Jecas Tatu”. Texto forte.

A moda da notação/classificação está se espalhando perigosamente. O tal Concierge Masqué até especula sobre uma exigência do governo chinês de uma notação recíproca entre seus concidadãos, algo que “não iria desagradar a todos neste minúsculo mundo”. Nessa toada, aliás, é interessantíssimo o episódio “Nosedive” da badalada série de ficção científica britânica “Black Mirror”. Na estória, as pessoas são reciprocamente notadas/classificadas em um aplicativo do tipo Instagram, com avaliações de 0 a 5. Graças às notas/classificações de outrem, a pessoa pode conseguir tudo na vida… ou nada. E aí temos a confirmação da máxima de Jean-Paul Sartre (1905-1980) – “O inferno são os outros”.

Embora isso ainda possa ser tido como um tipo de distopia, acho que não estamos muito longe desse “abominável mundo novo”. Por exemplo, na Internet, outro dia, dei de cara com mais de um quiz que prometia apontar a minha “real” posição política, se “de esquerda ou de direita”. No geral, por ser a favor da proteção do meio ambiente, fui classificado como de centro, “mas com ideias de esquerda”. Ainda acho que proteger o meio ambiente é um dever universal, cósmico.

Para os mais diversos fins, até de amizade ou relacionamento, as pessoas já estão hoje notando/classificando os outros como de “direita” ou de “esquerda”. E laços são completamente rompidos. Aliás, tenho um amigo querido, já fanático por natureza, que pedestremente nota/classifica a tudo e a todos com base na posição dos assentos da Assembleia Revolucionária Francesa, fato histórico que ele desconhece por completo. Sentado num já imaginário “Muro de Berlim”, esgoela delírios destros e canhotos. Em meio a qualquer assunto, sai com “esse cara é um esquerdista fdp”, “isso é coisa da esquerda”, “na direita não tem isso não” e por aí vai. Outro dia, curioso, eu perguntei a ele se “quem toma suco de maracujá é de direita ou de esquerda”. Gostaria de saber, sob esse critério, de que lado da sua revolução imaginária eu estaria.

Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

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Ciência ou crença

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Já faz algum tempo que Rubem Alves, em “Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras” (Editora Brasiliense, 1981), nos advertiu: “O cientista virou um mito. E todo mito é perigoso, porque ele induz o comportamento e inibe o pensamento. Este é um resultado engraçado (e trágico) da ciência. Se existe uma classe especializada em pensar de maneira correta (os cientistas), os outros indivíduos são liberados da obrigação de pensar e podem simplesmente fazer o que os cientistas mandam. Quando o médico lhe dá uma receita você faz perguntas? Sabe como os medicamentos funcionam? Será que você se pergunta se o médico sabe como os medicamentos funcionam? Ele manda, a gente compra e toma. Não pensamos. Obedecemos”. E isso vale não só para a medicina e os seus profissionais/“cientistas”. “Os economistas tomam decisões e temos de obedecer. Os engenheiros e urbanistas dizem como devem ser nossas cidades, e assim acontece”, ainda anota o grande educador. E o mesmo se dá com o direito e os seus “juristas”, acrescento eu.

Tendo a concordar em parte com Rubem Alves. Não acredito que o cientista – e, sobretudo, o suposto cientista, que apenas arrota um “conhecimento” sustentado por um diploma – seja uma pessoa que necessariamente pensa melhor do que as outras. Costumo, quando recebo uma receita, fazer algumas perguntinhas. É sempre bom saber como um remédio ou uma vacina funcionam.

Todavia, acredito que hoje estamos vivendo um mundo perigosamente ao contrário, onde se dá palpite, passando bem longe do senso comum disciplinado e refinado, sobre quase tudo que deveria ser tratado “cientificamente”.

Quantas vezes não estamos em uma festa barulhenta, com quatro doses de uísque já animando o juízo, e alguém, invariavelmente leigo em direito, vem com essa: “E o Supremo, hein?”. E começa o rosário de afirmações que não guardam base senão nas crenças da própria pessoa ou da sua “bolha”, para usar a expressão consagrada por Peter Sloterdijk (1947-). Hoje mais do que nunca, como lembra Aécio Cândido em “Conhecimento, conhecimentos – como sabemos o que sabemos” (Edições UERN, 2021), “as pessoas organizam sua percepção e a comunicação desta segundo algumas matrizes de raciocínio, formadas pelo conjunto daquilo em que elas acreditam e têm como assertivas verdadeiras. As pessoas possuem crenças religiosas, políticas e morais; elas estão impregnadas de alguns medos ilógicos e de muitas certezas duvidosas. Ao comunicar um ponto de vista, elas expressam essas convicções. Na interlocução, em razão da empatia criada e por outras razões, nem sempre se analisa criticamente o que é dito”.

Com a Internet, o que era um papo de bêbado chato, tornou-se um problema cósmico. Não se estuda o assunto; não se lê acerca dele, sequer. E “viver sem ler é perigoso. Te obriga a crer no que te dizem”, já alertava a Mafalda do cartunista Quino (1932-2020). Repetem-se as asneiras de bolhas cheias de “idiotas da aldeia”, como dizia Umberto Eco (1932-2016), dando e recebendo mais do mesmo, insuflando crenças e preconceitos que passam longe da verdade. As leis da imitação, de Gabriel Tarde (1843-1904), no que têm de mais negativo, jamais encontraram terreno tão fértil como no esgoto iletrado do Twitter, WhatsApp, Telegram e assemelhados.

Não acredito que o especialista seja infalível. Longe disso. Mas acho que devemos ser mais conscientes nesse ponto. Devemos ser mais “filosóficos” nos sentidos leigo e técnico desse termo. Saber se o raciocínio que estamos recebendo/tendo é mesmo minimamente científico ou não passa de uma crença. José Souto Maior Borges, em “Ciência feliz” (Editora Noeses, 2021), afirma que “nenhum sistema científico – refiro-me às ciências especializadas, ditas naturais e culturais – pode ser construído sem o sustentáculo da Filosofia”. E complementa Inês Lacerda Araújo em “Introdução à Filosofia da Ciência” (Editora UFPR, 1998): “A ciência, o conhecimento científico, seus métodos, suas explicações e, ainda, os resultados da pesquisa aplicada, marcam nossa época. A filosofia, como referencial necessário do pensamento crítico, tem na ciência um tema fundamental. Cabe ao filósofo pensar sobre que tipo de conhecimento é o conhecimento científico, seu alcance e validade”.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

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Ciência e imagem

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Já confessei outras vezes a minha paixão por alguns livros que são o resultado da adaptação, para o papel, de séries/documentários de TV: “Civilização” (“Civilisation”, 1969), “A escalada do homem” (“The Ascent of Man”, 1973), “A era da incerteza” (“The Age of Uncertainty”, 1977), “A música do homem” (“The Music of Man”, 1979) e “Cosmos” (“Cosmos: a Personal Voyage”, 1980). Esses livros, sob a batuta de especialistas nas respectivas áreas do conhecimento – Kenneth Clark (1903-1983), Jacob Bronowski (1908-1974), John Kenneth Galbraith (1908-2006), Yehudi Menuhin (1916-1999) e Carl Sagan (1934-1996) –, nos contam a história da humanidade através das artes, das ciências, da economia/sociologia, da música e do universo/cosmos. Eu os li algumas vezes, sem falar que vivo xeretando-os ou mesmo reassistindo a capítulos das respectivas séries.

Outro dia, meditando sobre essa minha paixão, acho que descobri as suas causas/motivos.

Primeiramente, relaciono essa paixão com o que esses livros realmente são: exemplos de “divulgação científica”, aqui entendida em sentido amplo para englobar todas as artes. E de altíssimo nível, tanto quanto ao conteúdo como – e sobretudo – ao estilo/qualidade literária.

Sou um curioso (a maioria de nós o é, nem que seja sobre fofocas quanto à vida alheia…). Para além da minha suposta especialização (o direito), no que toca às ciências, sempre me interesso em saber mais um pouco, para interdisciplinarmente poder interagir ou para, pelo menos, quando for o caso, saber raciocinar dentro do respectivo sistema. Acredito que a aprendizagem de qualquer ciência, nos seus diversos níveis de conhecimento, é uma questão de desenvolvimento do senso comum aplicado à respectiva área. O etnólogo e arqueólogo Augustus Pitt Rivers (1827-1900) já dizia que a ciência era “senso comum organizado”. E, mais recentemente, o economista formado em direito Gunnar Myrdal (1898-1987) sentenciou: “a ciência nada mais é que o senso comum refinado e disciplinado”. Esse potencial mínimo de refinamento do senso comum, nos seus variados níveis (desde o raciocínio do agricultor sobre a meteorologia do sertão às elucubrações dos físicos teóricos), é comum a todos nós.

Possuo inclusive um livro – “Scientifica Historica: how the world’s great science books chart the history of knowledge” (Ivy Press, 2019) – cujo autor, Brian Clegg, nos leva exatamente “a uma jornada bibliográfica através do tempo/história e examina como a literatura científica redirecionou seu foco da elite acadêmica para uma audiência generalizada ansiosa para se educar. Essa transformação demonstra como os livros têm sido um condutor para a promoção do nosso conhecimento do universo e de nós mesmos”.

Mas também acredito que há uma razão mais simples para a minha paixão pelos livros acima citados. Trivial mesmo. Para explicá-la, talvez bastasse uma releitura do ditado “uma imagem vale mais do que mil palavras”. Lembremos que os livros aqui referidos têm algo de inusitado em comum. Se, em regra, livros é que são transformados/adaptados, embora quase sempre resumidos, em filmes ou séries de TV, os livros acima citados são o resultado expandido de um percurso inverso, da tela para a página. Penso que isso faz serem eles livros muito visuais. E posso até dizer que eles são perfeitamente visuais no sentido de agradar aos olhos, ao nosso importantíssimo sentido da visão.

Sempre fui – e ainda sou hoje – mais um homem da página do que da tela. Mas não custa nada misturarmos as coisas, letras, imagens e até sons. Estou ficando mais velho – estamos todos, não? –, e intercalar a leitura de alguns parágrafos com uma bela fotografia vai muito bem. Para não termos, como disse o Pessoa, “um supremíssimo cansaço / Íssimo, íssimo, íssimo / Cansaço…”.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

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A arquitetura jurídica (I)

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Os edifícios do Poder Judiciário são cheios de significados para a nossa compreensão do direito e da justiça. A própria ideia de edificar é um ato de poder. Significa o poder estatal e a relevância específica da atividade judicante. É uma arquitetura que se impõe e mesmo constrange. Ela visa tanto relembrar, rememorar, evocar e enaltecer como também instruir e inspirar. Ela busca conferir solenidade, dignidade, respeito e prestígio aos atos e às decisões ali proferidas. E muitos desses edifícios são também grandiosos, às vezes suntuosos, feitos para impressionar, admoestar, intimidar e até mesmo amedrontar.

Eduardo C. B. Bittar, em “Semiótica, Direito & Arte: entre teoria de justiça e teoria do direito” (Almedina, 2020), anota que essa “linguagem arquitetônica permite conferir dignidade e solenidade às decisões da justiça. Por isso, geralmente, a linguagem arquitetônica se vale do ornamento, da solenidade e da massa, além de uma decoração ostentatória para demonstrar a solenidade e a seletividade do ambiente de justiça, como demonstra o ensaio de Piyel Haldar na obra intitulada Law and the Image, de Costas Douzinas. Ora, o que se faz num Palácio de Justiça não é arbitrário, possui uma história e dá continuidade ao curso da civilização, desde o seu protótipo-fundador. É aí que o Palácio de Justiça revela uma forte investidura simbólica, que traduz, como afirma o sociólogo francês Antoine Garapon, três experiências fundamentais: a de um espaço separado, a de um lugar sagrado, a de um percurso iniciático”. Com efeito, “todas as ‘marcas’ simbólicas – em separado, e diferentes dos demais espaços sociais – fazem do espaço judiciário este lugar especial para as coisas da justiça, (…) na medida em que seu oposto é o reino da violência, da barbárie e da desordem”. E se é de dentro desses palácios que saem as sagradas ordens da justiça para cumprimento por todos que estão no espaço exterior, isso justificaria o investimento orçamentário-estético-simbólico feito nos edifícios.

Um exemplo típico dessa arquitetura, dessa carga simbólica, está no Palais de Justice de Paris, sito no 1º arrondissement da capital francesa, na Île de la Cité. Sua localização, no coração da Cidade Luz, já o torna um edifício icônico. Verdadeiramente “um lugar excepcional”, como afirma François Christian Semur, em “Palais de justice de France: des anciens parlements aux cités judiciaries moderndes” (L’àpart éditions, 2012).

O Palais de Justice de Paris é um complexo de edifícios construídos e reconstruídos ao longo da história da França. Sua origem está no Palais de la Cité, que foi residência e sede de poder dos reis da França, do século X ao XIV e do qual permanecem belos vestígios, como a Conciergerie e a Sainte Chapelle. Foi a casa de Felipe Augusto e de São Luís. E quando Carlos V transferiu a residência real, as instituições da justiça ali permaneceram. O Palais de Justice foi assumindo uma nova dimensão política, especialmente após a Revolução Francesa (1789). Hoje, o Estado Francês busca reforçar a atratividade cultural e turística da Île de la Cité. E o Palais de Justice, devidamente embelezado, tem um papel central nessa empreitada.

A fachada que domina a Cour du Mai, entrada principal do Palais de Justice de Paris, possui em estilo neoclássico com uma imponente colunata. E está encimada com signos verbais que evocam as tradições posteriores à Revolução Francesa (1789): Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Essa simbologia é muitíssimo importante. Significa a regeneração da ordem social, a legalidade, a legitimidade e, sobretudo, a expressão de um novo poder.

No cidadão, a simbologia da arquitetura jurídica atua para além do nível racional. Afeta inconscientemente os nossos sentidos: o tato, a audição e, sobretudo, no que toca à grandiosidade externa dos edifícios, a visão. Entretanto, como ensina C. B. Bittar, é “interessante notar que os elementos arquitetônicos do espaço judiciário serão, não raro, investidos de muita força simbólica, seja do lado externo, seja do lado interno, da construção arquitetônica”.

E é tratando da imersão dentro de um palácio de justiça, uma experiência interna, que continuaremos, na semana vindoura, esse nosso papo sobre a arquitetura jurídica.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

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Os contos

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Sob o ponto de vista da extensão do texto, numa ordem decrescente, a ficção em prosa é classificada em romance, novela e conto. Longe de ser arbitrária, essa classificação tem sua razão de ser, pois, entre outras coisas, os recursos imaginativos do escritor e a própria formatação da narrativa dependem muito do estilo/subgênero em que se deseja escrever.

Como explica Alan Wall, em “Writing Fiction” (Collins, 2007), “a mais óbvia diferença entre o romance e o conto é a extensão/tamanho. O romance é algo muito mais longo, e todas as outras diferenças decorrem desse fato. A maior extensão permite uma variedade de vozes, retratos detalhados de diferentes vidas; ela permite uma ambientação variada, com a descrição dos locais e de suas populações. A narrativa pode acelerar ou diminuir de velocidade, pode ter longas seções meditativas, em que nada acontece com exceção da descrição das inúmeras reflexões. Por isso o romance é talvez a mais flexível forma literária já inventada”. A novela, basicamente, fica no meio do caminho, no que toca a tamanho e características, entre o romance e o conto.

Quanto ao conto, os especialistas ensinam o que dá forma e conteúdo a um texto de excelência: partir de um fragmento da vida ou de uma história; daí retornar a um tema universal; apresentar uma mínima biografia das personagens; sugerir mais do que contar; ter um narrador irreal, num monólogo, ou ter um diálogo, com duas visões de mundo; ter um mistério a ser decifrado; apresentar um caso sobrenatural com a exploração do suspense ou do terror; sugerir uma estória de amor, em regra não realizado; e, ao final, ter uma epifania. Edgar Alan Poe, Guy de Maupassant, Anton Tchecov, Ernest Hemingway, Flannery O’Connor, Jorge Luis Borges e o nosso Machado de Assis, entre outros gigantes, foram os “craques do jogo”.

Embora o romance ainda seja o subgênero narrativo ficcional mais glamouroso, o conto é um meio de expressão narrativa sobremaneira ajustado ao mundo “líquido” atual, certamente bem mais fragmentado do que o mundo/vida de outrora. O já citado Alan Wall lembra mesmo que “as estórias da modernidade são frequentemente fragmentadas: isso porque a própria modernidade é fragmentada. A vida moderna, ela mesma, não se nos apresenta num todo contínuo. Ela é comumente uma montagem de fragmentos desconectados”. Na roda-viva de hoje, a ficção em forma de conto é uma dádiva tanto para o escritor como para o leitor. A duração de sua leitura, bem menor que a de um romance, é o suficiente para gostarmos da estória sem cansarmos. É um mundo em miniatura para se viver, com começo, meio e fim.

É nesse contexto agitado que me caiu em mãos o livro “Contos do Tirol” (Sarau das Letras, 2024), do prolífico escritor mossoroense David de Medeiros Leite, que é professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e Mestre e Doutor em Direito pela Universidade de Salamanca (USAL) – Espanha. Li-o de uma tirada. Adorei. E desejo recomendá-lo por aqui.

As estórias de “Aurora”, “Tatuagem”, “Húmus de minhoca”, “Medo de dedo”, “Dahora”, “Unhas roídas”, “Fim do mundo”, “Reencontro”, “O colecionador de guarda-chuvas”, que compõem os “Contos do Tirol”, seja na voz de um narrador imaginário ou nos seus diálogos, retornando a temas universais, têm amores não realizados, um tico de pornografia, psicologia, suspense e, claro, várias epifanias. Identifiquei-me, inclusive, com algumas dessas estórias.

Sophie King, em “How to Write Short Stories” (How To Books, 2010), ensina que “escrever contos é tanto uma ciência como uma arte”. Pois David de Medeiros Leite, professor doutor e fino escritor, em “Contos do Tirol”, misturou muito bem essas duas sabenças.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

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O pesquisador entusiasta

O pesquisador entusiasta

 

Marcelo Alves Dias de Souza

Amaro Cavalcanti (1849-1922) foi um pesquisador entusiasta do direito dos Estados Unidos da América, cuja história se confunde com a formação do próprio país.

A conformação do direito estadunidense remonta à fundação, pelos ingleses, nos albores do século XVII, de colônias independentes no chamado novo mundo (a primeira, em 1607, foi Virginia). Então, com o exemplo do processo Calvin, de 1608, é o common law que vigora nas treze colônias inglesas a partir de 1607 até 1722. Em conjunto com o common law inglês, desenvolveu-se um direito primitivo nas colônias americanas, no qual a Bíblia tinha também papel de fonte do direito. Surgiram codificações, tais como a de Massachusetts de 1634, que ajudavam na administração da justiça. E a presença de colonos vindos de outros países explica a coexistência, nesse período, do common law com um esboço, mesmo que rudimentar, de codificação. Já o século XVIII, o Século das Luzes e da secularização do conhecimento, vem lançar a luz que originará a especificidade do direito americano, sobretudo porque as normas do common law importadas da Inglaterra já não ofereciam, para todos os casos, as soluções idôneas aos problemas jurídicos da futura nação.

Em 1776, veio a Declaração de Independência das primeiras colônias americanas, emancipação que se consumou com a Constituição de 1787 e o Bill of Rights de 1789. A independência dos Estados Unidos fez com que, apesar de mantida a filiação ao common law, fossem elaboradas leis novas que, ocasionalmente, divergiam da tradição pura do sistema inglês. Foi nesse período tumultuado da independência dos Estados Unidos da América que os representantes dos estados (antigas colônias), em congresso de delegados na Filadélfia, no Independence Hall, optaram pela criação da célebre e modelar Federação.

Segundo Amaro Cavalcanti – e aqui já se mostra o entusiasmo do autor de “Regime Federativo e a República Brasileira” (1900) com a Federação estadunidense –, era o caso, “nada mais, nada menos, do que, no dizer de um escritor, – ‘salvar os Estados confederados da bancarrota, da desordem e da anarquia, e dar a todos uma existência nacional’”. Mas “a tarefa era por demais difícil, em vista dos interesses encontrados nos Estados”, que, “antes de tudo, não queriam abrir mão dos seus antigos privilégios e direitos soberanos, mantidos na Confederação”. Triunfou “o querer patriótico e a habilidade de alguns chefes proeminentes da Convenção” e “foi adotada a Constituição Federal da República Americana”.

Amaro nos dá, pela ótica de então, à luz da Constituição estadunidense, a conformação do Estado federal criado, com seus ramos do poder público completos e bem definidos: (i) o poder legislativo foi confiado a um Congresso, composto da Câmara dos Representantes e do Senado; (ii) o poder executivo foi confiado ao Presidente dos Estados Unidos, eleito para um período de quatro anos, pelo povo, mediante sufrágio de dois graus, isto é, o povo de cada Estado elege os eleitores presidenciais, e estes, o Presidente da República. Conjuntamente com o Presidente é também eleito um vice-presidente, para servir-lhe de substituto, e tanto um como outro podem ser reeleitos; (iii) o poder judiciário foi confiado a uma Corte Suprema e às cortes inferiores, que por lei forem criadas. Os membros deste poder são nomeados pelo Presidente da República, mediante assentimento do Senado, e são conservados nos seus lugares, enquanto bem servirem (during good behaviour); (iv) a Constituição federal investiu os três poderes ditos de todas as atribuições e faculdades necessárias, de modo a constituir o governo federal a autoridade soberana da Nação, tanto nos negócios interiores, como nas relações exteriores da República; (v) e, talvez o mais importante, já que estamos tratando da conformação de um Estado federal, quanto aos estados federados, conservaram eles, sem dúvida, a mais completa autonomia nas matérias de legislação, administração e justiça local; mas, em todo o caso, dependentes do poder central, segundo os princípios da nova organização feita.

Ao finalizar sua “história” da formação da Federação estadunidense, Amaro não fez a menor questão de esconder seu entusiasmo com a obra comentada: “desta sorte, começou a ter efetivo vigor esse documento memorável que, sob o título de ‘Constitution of the United States of America’, subsiste há mais de século [lembremos que ele escreveu por volta do ano 1900], fazendo a prosperidade de um grande povo, e provocando a admiração dos estadistas do mundo inteiro”.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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O gosto

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

O “gosto” é algo complicado. “Tem gosto pra tudo”, afirma o ditado popular; “(…), cada um tem o seu”, encerra um dito ainda mais enfático e escrachado. Essa sabença geral é confirmada pelos especialistas em estética. Virgil C. Aldrich, no seu “Filosofia da arte” (Zahar Editores, 1976), lembra que, “ao falar sobre obras de arte [e, aqui, eu incluo realizações da literatura, da música, das artes plásticas, da arquitetura e por aí vai], as pessoas frequentemente dizem que gostam mais de uma do que de outra ou, então, que simplesmente não podem suportá-las”. E Jean Lacoste chega mesmo a ter, como um dos tópicos do seu livro “A filosofia da arte” (Jorge Zahar Editor, 1986), “o gosto como problema”. Acho que é por aí mesmo – e quem sou eu para contestar o povo e os doutos?

De toda sorte, sempre me pareceu que podemos enxergar certos consensos sobre algumas coisas. O convencionalismo é uma grande arma para enfrentarmos a inconsistência do gosto e apontarmos o que é “belo”. Um desses consensos é a cidade de Paris, no caso sua arquitetura/ambiência, de modo geral glamorosa. Eu acho Paris bela. Você provavelmente também acha. E algo entre meio mundo e mundo e meio concorda conosco.

Paris, ouso dizer, é belíssima. A Torre Eiffel, o Arco do Triunfo, a Avenida dos Campos Elísios, a Ópera, os Inválidos, o Museu do Louvre, o rio Sena, a Catedral de Notre Dame, o Jardim de Luxemburgo, os grandes bulevares, as ruelas do Marais, de Saint-Germain-des-Près e do Quartier Latin, a boemia de Montmartre e a Sacré-Cœur, os muitíssimos cafés da cidade… etc. etc. etc. Até a cor de Paris encanta: de dia, nos seus prédios, um tom bege que a tudo predomina; à noite, uma Cidade Luz, iluminada e iluminista. Paris é excitante como sentenciou Hemingway: “Se, na juventude, você teve a sorte de viver na cidade de Paris, ela o acompanhará sempre até ao fim da sua vida, vá você para onde for, porque Paris é uma festa móvel”. E Paris é, e talvez sobretudo, romântica.

Foi por causa da reconhecida beleza romântica de Paris que ficamos preocupados com o causo de um primo muitíssimo querido. Há alguns anos ele foi para Paris em lua de mel. Viagem dos sonhos de qualquer casal. Passear de mãos dadas à beira do Sena, tomar um vinho nacional, namorar à luz de velas e de Paris, isso é muitíssimo mais do que muito para qualquer par de amantes. Imaginem para os recém-casados. Mas a mulher do meu primo não gostou de Paris, “definitivamente”, nos disse. Detestou talvez seja um qualificativo forte. Mas foi algo próximo daí. Separaram-se pouco tempo depois. Ficamos sem entender. E aqui me refiro ao “desgosto” de Paris.

Entretanto, outro dia, para além das complexas lições dadas pela filosofia sobre o problema do “gosto”, encontrei uma explicação até plausível – assim pelo menos eu quero crer – para os padecimentos parisienses do meu querido primo.

Há algumas semanas, quando voltamos da França em viagem familiar, meu pai perguntou ao nosso pequeno João o que ele tinha mais gostado de Paris. Eu estava na hora e esperava que João dissesse a Torre Eiffel (vi a empolgação dele embaixo daquele colosso de ferro onde estivemos duas vezes) ou a Euro Disney (por motivos óbvios). Mas ele disse os “esgotos”. Isso mesmo: os esgotos de Paris, embora aqui devamos ler o “Museu dos Esgotos de Paris” (Musée des Égouts de Paris), que visitamos, por promessa minha e exigência dele, numa malcheirosa, mas divertidíssima, tarde ao derredor do Sena.

É isso. Eles – o outrora casal de primos – apenas não foram na Paris certa. Pelo menos é isso que eu agora gosto de crer. E gosto… Bom, cada um tem o seu.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

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Rua Boaventura de Sá da Bodega de Dudu até o Cinema de Chico Uriel

Por Gláucio Tavares Costa*

Nos extremos, situavam-se a Bodega de Dudu e o Cinema de Chico Uriel, aquela no lugar mais perto do pôr do sol do logradouro, que acontecia, ao menos de quem ali avistava, no cemitério Santa Águeda, local do fim da rua e sepulcro do sol a cada dia. Estou aqui a escrever sobre a Rua Boaventura de Sá de Ceará-Mirim, lugar do mundo que ligava de uma maneira imediata toda a zona rural do Município de Ceará-Mirim e redondezas à feira da cidade, que naquela época era robusta e acontecia aos sábados e aos domingos.

Os carros do interior rumavam para a feira da cidade, encontrando aconchego e descanso nas ruas laterais da inclinada Praça Monsenhor Celso Cicco, que foi embelezada, por obra do então prefeito Roberto Varela, ao tempo em que a seleção brasileira de futebol foi derrotada pela Itália na Copa do Mundo de 1982 e em cuja parte mais alta do largo dava abertura para a Rua Boaventura de Sá.

A partir do estacionamento das ruas fronteiriças do largo público, onde ficavam enraizados os ônibus da vestuta Empresa Unidos, as pessoas interioranas se juntavam no primeiro ponto de socialização do interior e da cidade: a Bodega de Dudu. Na verdade, a referida mercearia era como uma representação diplomática da zona rural na cidade, em que muitas vezes alguém da zona rural deixava encomendas para outrem residente da urbe receber e vice-versa.

Para se chegar a cidade de Ceará-Mirim ou para voltar ao interior era preciso cumprir uma etapa incontornável: passar no entreposto diplomático: a Bodega de Dudu, nem que fosse tão somente para beber água contida numa caixa de Brasilit, atada em cima de um balcão, que se aliava a um copo de alumínio fixado por uma corrente no desiderato de abeberar os sedentos.

Cabia, entreato, matar a sede pelos auspícios de uma garrafa de refresco, ou ainda, para tantos e tantos, tomar um copo cheio de cachaça, conhaque ou vinho. Nestas últimas opções degustativas, demorava-se mais, tendo como usufruir tempo suficiente para observar a venda de, por exemplo, produtos ligados a cultura da Umbanda, como velas pretas e vermelhas, de todas as demais cores, banhos de pega homem, contra olho gordo, comigo ninguém pode, chora nos meus pés, Iemanjá e Pomba Gira, categorias de instrumentos de proteção divina que também se manifestavam como defumadores, além de patuás, amuletos, cachimbos, bonecos de vudu, azougues e esculturas sagradas.

Não é trivial relembrar que tais objetos cerimoniais da fé advinda do sincretismo religioso euro-africano eram reprovados pela Igreja Católica e pela pequena burguesia da urbe educada no catolicismo. Certamente assim seria aqui na Rua Boaventura de Sá e em outros lugares: a fé não congruente dos outros representa uma ameaça ao conglomerado de fé concorrente no mercado da religiosidade.

Por isso, não raro, alguém adentrava a Bodega de Dudu pela porta mais distante da prateleira das oferendas às divindades da Umbanda e inadvertidamente, como se surpresa fosse, descobria que ali se expunha tais objetos sagrados da cultura africana, perguntando, com suposto falso ar de estranheza, se se vendia e para que serviam os amuletos, velas, banhos e defumadores. Ao final, pesava nas mãos dos acanhados compradores duas ou três sacolas de objetos da Umbanda estrategicamente camufladas para não se revelar a secreta aquisição aos pedestres da Rua Boaventura de Sá.

Muitas outras particularidades interessantes sucederam na Bodega de Dudu. Entretanto, para o texto não transbordar os limites de um conto, vamos agora para a outra extremidade da Rua Boa Ventura de Sá, que é o Cinema de Chico Uriel. Seguiremos.

Todavia, daqui pra lá, digo da Budega de Dudu para o cinema não se pode ir sem passar em uma das primeiras lanchonetes modernas de Ceará-Mirim, a Lanchonete de Benigna, que era irmã de Dudu. Benigna inovou a gastronomia da região com o sanduíche de denominação Americano, merenda volumosa que era carinhosamente confeccionada por Coló, um mulato, oriundo da Praia de Zumbi, que tinha a especial incumbência de fazer sanduíches glamurosos, enquanto Lourdes preparava as vitaminas e Benigna Branca cuidava do atendimento dos fregueses, empreendimento capitaneado por Benigna Preta com aptidão de concentrar toda sociedade cearamirinense na noite do domingo, após o encerramento da Santa Missa.

Seguindo a calçada, passamos na Loja de Zé da Fácil, que vendia rações, utensílios e máquinas agrícolas, comércio que se limitava adiante pela Vila Rica, mais conhecida por Vila de Tudo Rico, que entre tantos inquilinos, abrigava viajantes e uma benzedeira… Do lado oposto da Rua Boaventura de Sá ficava a casa de Dona Lucimar, que juntamente com as ruínas de uma antiga delegacia, atualmente demolida, abriam alas para uma ladeira: a Rua da Cruz.

Voltemos ao passeio pela Rua Boaventura de Sá. Depois da Vila de Tudo Rico, encontravam-se algumas casas, a Berberia de Manu, a Sapataria de Chico Bento, que dispunha na porta de entrada de uma lista de devedores, uns passos a mais, chegava-se a Loja de Nanal de equipamentos eletro-eletrônicos, que trouxe inovações como videogames Atari e videocassestes, alcançando-se, por fim, a casa da sétima arte.

Hoje é uma farmácia, naquela época era um cinema, em cuja calçada sempre estava a disposição o adorável e saboroso cachorro quente do Tinôco, que aceitava inclusive vender só o recheio se o cliente comprasse o pão na Padaria de Miguel Paiva, localizada na esquina do outro lado da rua. Havia por ali, naquele tempo, uma laranja, que tinha a casca subtraída por uma geringonça giratória, que a deixava pronta para entrar no cinema e ser saboreada enquanto se assistia o filme, que derivava da arte, da película de celulose e do carvão colocado por Lula na máquina projetora cinematrográfica, que se assentava no pavimento superior do prédio do cinema, arrodeada de cadeiras reclináveis de madeira.

O fim ou começo da Rua Boaventura de Sá era onde se transmitiu os filmes de Teixeirinha, Rambo, Bradock, Fuscão Preto com Xuxa, além de inúmeras pornochanchadas. O amplo salão tornava-se diminuto para o público quando da estreia de filmes como Rambo, que atraia tanta gente, que além de preencher as quase trezentas cadeiras enfileiradas no térreo e primeiro andar do prédio, deixava muita gente assistir a película de pé, apesar da concorrência do Cinema Paroquial, administrado por Lúcio Som, que era encravado na parte debaixo da cidade, nas proximidades dos Correios.

A Rua Boaventura de Sá, além da missão de globalizar o rural e o urbano, teve de um lado, esse brilho da arte cinematográfica e doutro, recanto da religiosidade subversiva na Budega de Dudu.

*É Assessor Jurídico do TJRN, mestrando em Direito pela Universidad Europea del Atlántico, graduado em Farmácia pela UFRN e morou por anos na Rua Boaventura de Sá de Ceará-Mirim/RN.

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