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Reportagem especial

Abolição da escravidão em Mossoró completa 140 anos mantendo o protagonismo negro apagado da história

Por Bruno Barreto

Editor do Blog

No dia 30 de setembro de 1883 membros da Loja Maçônica 24 de Junho unidos aos integrantes da Sociedade Libertadora Mossoroense se reuniram na Câmara Municipal de Mossoró para libertar os últimos escravos da cidade.

É assim que a história vem sendo contada há exatos 140 anos e festejada com o feriado instituído em 1913.

A história é simples, de fácil assimilação e tão distorcida que muita gente acredita até hoje que Mossoró foi a primeira cidade do Brasil a libertar os escravos. Na verdade, foi a 10ª, o pioneirismo cabe a Redenção (CE) em 1º de janeiro de 1883. Há até quem acredite que foi por força de lei, também não foi. Na verdade, a elite local, influenciada pelos movimentos abolicionistas do Ceará, juntou fundos para comprar a liberdade dos escravos, sem causar ônus aos senhores. O movimento foi rápido e durou entre 6 de janeiro e 30 de setembro do longínquo ano de 1883.

Foi, como afirma o professor Dr. Marcílio Falcão, um movimento de brancos para brancos. Os negros foram libertados e abandonados como viria acontecer no restante do país após 13 de maio de 1888.

O professor Emanoel Pereira Braz é um dos pioneiros na contestação ao idealismo em torno do 30 de setembro. No livro “Abolição da Escravidão em Mossoró: pioneirismo ou manipulação do fato” ele mostra como vários aspectos dessa história foram omitidos pelos memorialistas oficiais de Mossoró, que ignoraram os interesses econômicos e como as celebrações da “Mossoró Libertária” foi fabricada, o que não desmerece o papel dos abolicionistas da cidade.

Por outro lado, é preciso compreender o papel econômico de Mossoró nos anos 1880, em que a escravidão tinha um peso muito menor do que em outras partes do Brasil. Na hoje “Capital do Oeste Potiguar”, a economia girava em torno do comércio, cultura algodoeira e criação de gado. Essas três atividades careciam de pouca mão-de-obra escrava. A escravidão em Mossoró tinha um perfil mais urbano devido as características da economia local.

O escravo era tratado mais como um “investimento”, sobretudo, para recuperar o caixa em períodos de seca prolongada quando estes eram levados para serem vendidos no Porto de Fortaleza de onde seriam enviados para as lavouras do Café em São Paulo. “As condições que propiciaram o abolicionismo em Mossoró foram bem específicas e diferenciadas daquelas que ocorreram em outras regiões do Brasil”, afirma Emanuel na página 47 do livro.

Após a seca de 1877, a população escrava de Mossoró que tinha chegado, segundo Câmara Cascudo (Notas e Documentos para a História de Mossoró) a 267 escravos em maio de 1873 tinha caído para 162 (72 homens e 90 mulheres) em 1881 conforme números do professor Marcílio Falcão na tese “No labirinto da memória: fabricação e uso político do passado de Mossoró pelas famílias Escóssia e Rosado (1902-2002)”.

Anuncio de escravo fugitivo no Jornal O Mossoroense em 1875, a fuga era uma forma de resistência (Imagem: reprodução)

O trabalho ainda mostra que dois meses antes da abolição, havia 145 escravos registrados na cidade. Vale lembrar que em 10 de junho daquele ano 40 escravos já tinham sido libertados em Mossoró. Os dois últimos escravos inventariados em Mossoró foram em 17 de 1882, conforme registro de Maria Patrícia de Souza no artigo “Inventários como Forma de Pesquisa: a questão escrava em Mossoró. 1833-1882” publicado no livro “História Social e Cultural de Mossoró: métodos e possibilidades”.

A partir de 6 de janeiro, vários bailes foram realizados para arrecadar fundos e libertar escravos em Mossoró, o que foi diminuindo paulatinamente a quantidade de cativos na cidade até o 30 de setembro de 1883.

O cenário era amplamente favorável porque, como em outras partes do país, o trabalho escravo estava em declínio e havia uma preocupação dos proprietários em recuperar o dinheiro investido por meio de indenizações em caso de abolição via lei. O quadro se tornava ainda mais preocupante com o fechamento da rota do tráfico interprovincial para o Sul do Império através do Porto de Fortaleza, o que tornava a inviável o investimento na escravidão como alternativa para suprir eventuais prejuízos em períodos de seca.

O bloqueio é resultado da luta liderada pelo ex-escravo e jangadeiro Francisco José do Nascimento, que entraria para história como o “Dragão do Mar”, pela luta contra o tráfico negreiro no Ceará. Essa resistência teve influência direta no processo abolicionista em Mossoró.

Grupos abolicionistas se formavam para comprar alforrias como a Sociedade Libertadora Mossoroense que viria a protagonizar o 30 de setembro.

Em conversa com o Blog do Barreto o professor Marcílio Falcão explica que a pressão vinha do Ceará, onde Mossoró mantinha fortes laços comerciais. “A abolição foi pensada a partir da lógica da sociedade abolicionista cearense. Antes de acontecer o evento aqui os jornais de Fortaleza já divulgavam, então era algo que não foi algo que não foi imprevisível. Era previsto. Na verdade, ia ser dias antes, ia ser dia 28 de setembro. Aí foi 30 porque houve ali um arrozinho ali. Mas na verdade é uma abolição de brancos para brancos”, avalia.

A pergunta que fica em aberto é: diante desse contexto econômico onde está o papel dos negros de Mossoró na resistência à escravidão?

O estudo mais recente é a monografia “Dia Branco: comemoracionismo e apagamento racial no 30 de setembro em Mossoró (1902 – 1983)” de Kycya Oliveira Silva, recentemente defendida no curso de história da UERN. O trabalho mostra que a memória do 30 de setembro foi construída a partir do apagamento da contemporaneidade da atuação de libertos no Clube Spartacus (que atuava para proteger escravos fugitivos) e da Sociedade Libertadora Mossoroense.

Os memorialistas adotaram a versão de que o Clube só passou a atuar após o 30 de setembro, mas Kycya resgata um discurso de Nestor Lima de 1932 publicado como livro em 1938, que indica que as entidades coexistiram e trabalharam em conjunto. “Ademais, vale salientar que, para Lima, embora os grupos agissem juntamente, suas funções eram distintas: a Libertadora Mossoroense era responsável por negociar as alforrias por meios legais e os Spartacus entravam em ação onde o dinheiro não bastava. Lima narra vários momentos em que os espartanos estavam resgatando escravizados e em outro momento tratando de transportá-los para o Ceará – onde os movimentos abolicionistas eram mais fortalecidos e organizados. Portanto, este capítulo deve tratar dos excluídos, mas não tem por pretensão – e não poderia – preencher a enorme lacuna deixada na história de Mossoró”, afirma.

Ainda assim a autora lembra na monografia que pouco ficou registrado da resistência negra ao regime escravocrata em Mossoró.

Outro aspecto discutido no trabalho é a hamornização social a partir da obra de Câmara Cascudo em que os brancos eram tratados como heróis da liberdade negra. “Na narrativa a respeito do 30 de setembro de 1883, por exemplo, Luís da Câmara Cascudo mantém sua escrita voltada à elite branca que compunha os abolicionistas em Mossoró. Em ocasião do capítulo X da obra, ‘Notas e Documentos para a História de Mossoró’, Cascudo discorre a respeito da criação do Clube dos Spartacus, como discutido em outro momento deste capítulo, tal clube era constituído por ex-escravizados (esse ponto parece ser um consenso entre a maioria dos pesquisadores), mas as suas ressalvas se direcionam ao fato de Rafael Mossoroense da Glória, ex-escravizado, estava na liderança desse clube e destaca em narrativa inclinada ao comemoracionismo a ação altruísta desprendido “capitão Alexandre Soares do Couto”, que aceitou o cargo de secretário de Rafael”, avalia.

Ela também analisa o papel do memorialista Raimundo Nonato da Silva em a História Social da Abolição em Mossoró em que ele constrói um cenário de harmonização social minimizando o papel do escravizado colocando-o a partir do perfil econômico da cidade mais como um capataz do senhor do que como um cativo. Outro aspecto é o fato de que Mossoró teria poucos escravos e que isso colaboraria para diminuir o peso da luta dos negros. Mesmo assim, para ela a obra se diferencia do trabalho de Cascudo por apontar a participação dos Negros no processo. “A pouca quantidade de escravizados no município de maneira alguma representa uma retirada da condição de cativo dessa população marginalizada, tanto que se for analisada de maneira cirúrgica a escrita de Raimundo Nonato a respeito, por exemplo, do Clube dos Espartacos se torna inteligível que existia uma consciência negros sobre a escravidão e mesmo a emancipação dos escravizados em Mossoró representasse uma quantidade pequena (86 escravizados) se comparada ao cenário nacional de uma nação que por cerca de 300 anos fez a manutenção do sistema escravista, as movimentações abolicionistas do município repercutiu em outras localidades, de modo que existe uma concordância entre a narrativa de Nestor Lima Câmara Cascudo e Raimundo Nonato da passagem de escravizados por Mossoró com destino ao Ceará que, por ser de fato pioneiro nos movimentos abolicionistas, era destino de muitos escravizados conseguiam fugir de seu cativeiro (NONATO, 1983)”, avalia.

A abolição da escravidão em Mossoró não foi um gesto altruísta, mas fruto de uma conjuntura econômica em que não compensava mais para os senhores manter seus cativos e estes por sua vez precisavam recuperar o dinheiro investido. Nada disso, tira o brilho da luta dos abolicionistas, mas não a ponto de ignorar que o 30 de setembro de 1883 de Mossoró antecipou o 13 de maio de 1888 no Brasil com os negros libertos abandonados à marginalidade e a fome. O próprio caráter festivo que se seguiu nos 140 anos seguintes manteve as manifestações dos brancos e deixou no esquecimento o Baile dos Negros, que era realizado na Câmara Municipal.

Há muito o que ser pesquisado sobre o assunto para o aprofundamento em fontes documentais para encontrar mais dados sobre a participação negra no processo do 30 de setembro e a maior qualificação do curso de história da UERN, que agora conta com mais mestres e doutores, pode mais a frente trazer novos elementos sobre a resistência negra na Mossoró pré-30 de setembro de 1883.

Rafael Mossoroense da Glória é único personagem do 30 de setembro sem registro fotográfico (imagem: reprodução)

A figura de Rafael Mossoroense da Glória, o único negro associado ao 30 de setembro, é permeada de dúvidas sobre o verdadeira atuação pela libertação dos escravos

Em todo processo de narrativa memorialística em torno do 30 de setembro só um negro ficou com o nome registrado nos anais: Rafael Mossoroense da Glória, aquele que Raimundo Nonato em História Social da Abolição classifica como “Negro Liberto. Arrancado das senzalas para a cidadania”.

Repare que no próprio relato, existe uma descrição de passividade em torno da imagem de Rafael. Não há sinal de que ele tenha lutado pela liberdade, mas de que alguma figura oculta (provavelmente algum abolicionista branco) o libertou de forma altruísta.

Consta nos registros, que Rafael teria sido eleito presidente do Clube Spartacus (numa referência ao líder da rebelião de escravos brancos na Roma Antiga) logo após o 30 de setembro.

Segundo Kycya Oliveira, o Clube Spartacus, se inspira no Clube do Cupim do Ceará, cujas características seriam de amparo social aos escravos fugitivos e não de enfrentamento físico.

Rafael é o único, a não ter fotografia nos registros do livro História Social da Abolição. “A representação de Rafael Mossoroense da Glória, presente na sessão intitulada ‘Próceres76 da Abolição’ na obra de Nonato (1983), também denuncia a disparidade socio-racial. Nessa sessão, são homenageadas 39 pessoas que estavam envolvidos nos movimentos abolicionistas mossoroenses que resultaram no 30 de setembro de 1883, entretanto, com exceção de Rafael Mossoroense da Glória que foi representado de modo rudimentar que não se pode perceber os traços de sua face, todos os outros abolicionistas entre homens e mulheres não foram representados, mas, sim, apresentados através de suas fotografias”, frisa.

Nos capítulos 28 ao 30 são feitos registros biográficos dos abolicionistas ficando reservado a Rafael Mossoroense da Glória apenas um curto espaço.

O professor Marcílio Falcão admite ter dúvidas se a figura de Rafael Mossoroense sobre o verdadeiro papel do personagem. “No caso do Rafael Mossoró da Glória, eu não encontro, pelo menos nos arquivos que eu fui, registros de sua existência. A minha leitura está mais voltada para a ideia de uma figura não mitológica, no sentido, mas de uma figura memorável, provavelmente construída, porque veja, é o único que aparece. Me aponte, os libertos que aparecem nomes? Você não encontra, você encontra nos inventários, você encontra em algumas cartas de alforria, mas nas festas, assim, só ele exatamente aparece”, avalia.

No livro “A Abolição da Escravidão em Mossoró: pioneirismo ou manipulação do fato”, Emanuel Pereira Braz avalia que a figura de Rafael Mossoroense da Glória foi construída para representar uma participação mais efetiva dos mossoroenses e forjar um equivalente potiguar ao ícone cearense Francisco José do Nascimento, o “Dragão do Mar”. “A diferença entre esses dois personagens está no contexto de suas participações. Atribui-se a Francisco José do Nascimento coragem e bravura pela iniciativa de acabar com o transporte de escravos, o que causou a interrupção do tráfico interno de escravos no Norte para a região dos cafezais. Este ato projetou este jangadeiro nacionalmente e o destacou como representante principal da luta pela abolição da escravidão no Ceará. Quanto a participação de Rafael Mossoroense no Clube Spartacus, não identificamos nenhuma ação que tenha produzido efeitos sociais capazes de destacá-lo diante do coletivo que atuou”, argumenta.

O verdadeiro papel de Rafael Mossoroense da Glória no 30 de setembro é uma pergunta em aberto na historiografia potiguar.

Celebrações do 30 de setembro são construções das elites locais (Foto: Manuelito/Reprodução/Relembrando Mossoró)

Memória do 30 de setembro é uma construção das elites locais

O professor Emanuel Pereira Braz em “Abolição da Escravidão em Mossoró: pioneirismo ou manipulação do fato” trouxe luz a questão de como a imagem do 30 de setembro foi construída no imaginário local.

No final dos anos1990, Braz resgata todo o papel da família Escóssia através do Jornal O Mossoroense na construção do imaginário de heroísmo da elite local na libertação dos escravos em um processo que teve altos e baixos ao longo do Século XX, mas que ganhou muita força década de 1950 quando os Rosados ascenderam ao poder e passaram a se apropriar do ideal de liberdade de do 30 de setembro.

Ele afirma que administração de Vingt Rosado (1952/56) intensificou o reforço da identidade de Mossoró com o 30 de setembro, chegando a colocar na frente das casas onde viveram os abolicionistas placas com os seguintes dizeres: “esta casa foi vivenda de um abolicionsta”. “Somente durante o decorrer da década de cinquenta foi que esta realidade começou a mudar. Consideramos como causa principal das mudanças as novas formas de valorização dos personagens relacionados com a abolição da escravidão em Mossoró, o que paulatinamente atraiu a comunidade local a participar das comemorações”, afirma

Braz reforça em toda sua obra que o Jornal O Mossoroense foi fundamental como aparato ideológico na formação do imaginário do 30 de setembro.

Em sua monografia, Kycya Oliveira também resgata o papel do jornal na construção de memória idealizada do 30 de setembro a partir da segunda fase do jornal, iniciada no início do Século XX sob liderança de João da Escóssia com o objetivo de incluir a própria família no processo abolicionista. “Ao sacralizar e cristalizar na memória coletiva os abolicionistas pertencentes a elite mossoroense da época, a narrativa do O Mossoroense alcançou o seu objetivo de pôr a família Escóssia na história abolicionista por seu passado liberal e maçom. Tanto que no phanteom dos abolicionistas, presente no museu Lauro da Escóssia, consta o nome de Jeremias da Rocha Nogueira, mesmo não tendo fontes históricas que sustentem a versão de que o patriarca da família Escóssia teria participado ativamente do processo de emancipação dos escravizados, como também contribuiu de modo esmagador para o apagamento do sujeito negro escravizado (ou liberto) da sua própria história de emancipação”, afirma a pesquisadora.

O papel do jornal continuou mesmo sob o domínio dos Rosados a partir de 1975.

As elites também se apoderaram do 30 de setembro por meio de construção de monumentos como Estátua da Liberdade na Praça da Redenção, instituição do feriado em 1913, nomeação de bairros (Abolição, Redenção, Liberdade, 30 de setembro), condução do papel do Museu Lauro da Escóssia (inclusive o panteão dos abolicionistas) e outros espaços até mesmo privados, como Shopping Liberdade.

O objetivo era projetar Mossoró no cenário nacional a partir do pioneirismo abolicionista, mas a estratégia não vingou. “O 30 de setembro no Rio de Janeiro só teve uma notinha. Uma notinha. Para cá é importante, óbvio. Mas dentro daquela dimensão que estava ocorrendo no Brasil, também é importante, mas é apenas uma parte. Essa ideia do pioneirismo é muito mais uma construção”, avalia Marcílio Falcão.

Obras consultadas

“Dia Branco: comemoracionismo e apagamento racial no 30 de setembro em Mossoró (1902 – 1983)” de Kycya Oliveira Silva

“História Social da Abolição em Mossoró”: Raimundo Nonato da Silva;

““Abolição da Escravidão em Mossoró: pioneirismo ou manipulação do fato”: Emanuel Pereira Braz;

“No labirinto da memória: fabricação e uso político do passado de Mossoró pelas famílias Escóssia e Rosado (1902-2002)”: Marcílio Falcão;

Notas e Documentos para a História de Mossoró: Câmara Cascudo;

História Social e História Cultural de Mossoró: métodos e possibilidades: Francisco Linhares Fonteles Neto, Francisco Fabiano de Freitas Mendes e Lindercy Francisco Tomé de Souza Lins (organizadores);

Evolução Econômica do Rio Grande do Norte (do século XVI ao século XX): Paulo Pereira dos Santos;

Breve Notícia sobre a Província do Rio Grande do Norte: Manoel Ferreira Nobre.

 

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Reportagem especial

Há 80 anos Vargas recebia Rooselvelt em Natal para fazer a Conferência do Potengi. O RN ganhava destaque na II Guerra Mundial

Há 80 anos Natal se tornava protagonista internacional com a Conferência do Potengi que decidiu uma série de estratégias envolvendo o Brasil na II Guerra Mundial. Naquele dia a pronvinciana capital do Rio Grande do Norte recebia o Franklin Delano Rooselvelt, o presidente estadunidense.

O ditador Getúlio Vargas, que flertou com os nazistas, acabou se alinhado as potências democráticas e o encontro em Natal, cidade considerada estratégica, formalizou a aliança.

O Brasil rompera relações com os países do eixo (Alemanha. Itália e Japão) em janeiro de 1942 e nos sete meses seguintes 20 navios foram alvos de bombardeios dos alemães, levando mais de 700 brasileiros a morte. A pressão para o país entrar na guerra era grande na opinião pública.

Mas faltava um entendimento com os aliados (EUA, URSS, Franças, Reino Unido e China), o que viria ter como marco a Conferência do Potengi há oito décadas.

Na provinciana Natal, que estava longe do protagonismo nacional desde 1935 quando aconteceu o fracassado levante comunista (saiba mais AQUI), ninguém imaginava que naquele 28 de janeiro dois dos maiores líderes da história estariam na capital potiguar.

Nem o então governador do Rafael Fernandes imaginava.

Ele foi convocado para ir sozinho a base naval e quando chegou lá teve um susto ao se deparar com os dois chefes de estado. “No encontro foi confirmada a utilização de Natal como base para a conexão de tropas americanas e discutido o plano de prevenção de prevenção quanto a um possível ataque nazista no Hemisfério Sul a partir de Dakar, no Senegal. Também foi acertado o envio de tropas brasileiras ao front”, diz trecho do livro Natal do Século XX de Carlos Pinheiro e Fred Rossiter.

Assim foi montado na capital do Rio Grande do Norte o principal quartel general do Hemisfério Sul durante a Segunda Guerra Mundial.

Natal foi escolhida por conta de sua localização geográfica, sendo uma das cidades brasileiras mais próximas da África. Na época eram “apenas” oito (atualmente são três) horas de voo até Dakar levando soldados e armas para lutar no Norte do continente.

O movimento era tão grande que Natal que no dia 28 de janeiro tinha 36 mil habitantes dobrou de tamanho ao longo da participação na Segunda Guerra.

O papel de Parnamirim

A principal base área do Brasil na Segunda Guerra Mundial estava na cidade hoje conhecida como Parnamirim. Não é por acaso que a cidade da Região Metropolitana de Natal é conhecida como “Trampolim da Vitória”.

Em 1943 a cidade tinha um dos aeroportos mais movimentados do mundo com pico de 800 pousos e decolagens por dia.

Em um curtíssimo período foi construída uma estrada ligando Natal e Parnamirim e a base aérea, conhecida como “Parnamirim Field”. Mais de 6 mil trabalhadores fizeram o serviço.

Natal e Parnamirim foram palcos de atos de espionagem alemã entre 1943 e 1944. Foi necessário instalar um escritório do FBI em Natal que formulou mais de 400 relatórios para Washington identificando mais de uma centena de potiguares e estrangeiros que mantinham simpatia com os nazistas e colaboravam como espiãs.

PS: Esta reportagem é apenas um recorte do fato histórico, mas uma vasta bibliografia sobre a presença estadunidense na capital para quem quiser conhecer mais sobre o período. Parte dela foi consultada para este material.

Bibliografia consultada:

Contribuição Norte-Americana à Vida Natalense. Autor: Protásio Pinheiro de Melo.

Natal do Século XX: memória, fatos e fotos marcantes. Autores: Carlos e Frede Sizenando Rossiter Pinheiro

Natal, USA: II Guerra Mundial: a participação do Brasil no teatro de operações no Atlântico Sul. Autor: Lenine Pinto.

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Reportagem especial

Bordadeiras que fizeram traje de Janja na posse se preparam para entrar no mercado internacional

O sonho das bordadeiras que fazem parte da Cooperativa das Mãos Artesanais de Timbaúba dos Batistas (Comart), localizada na região do Seridó, no município Timbaúba dos Batistas (RN), é levar o seu bordado para o mundo.

Uma importante oportunidade para ganhar visibilidade global foi bordar as roupas que a primeira-dama Janja usou na posse do presidente Lula, e também em seu casamento. O trabalho foi fruto da parceria que a Comart tem com a estilista gaúcha Helô Rocha, que assinou os trajes de Janja.

O bordado das mulheres do Seridó levou beleza ao conjunto de blazer, colete e calça na cor champanhe usado pela primeira-dama Janja no dia da posse do presidente Lula. Os bordados eram de plantas e flores douradas. Além da palha de junco, foram usadas peças em capim dourado, feitas pela Associação de Artesãos de Dianópolis, do Tocantins, e em capim colonião confeccionadas por artesãos de Novo Gama, em Goiás. Segundo a análise de especialistas da moda, a escolha demonstrou preocupação em valorizar a moda nacional, a brasilidade e a sustentabilidade.

No PEIEX

Em 2021, as mulheres da Comart já tinham dado um passo fundamental em direção ao mercado externo ao participar do Programa de Qualificação para Exportação (PEIEX) da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil), com o qual começaram a se preparar para internacionalizar seus produtos.

O PEIEX é o principal programa brasileiro gratuito voltado para a capacitação e qualificação de empresas brasileiras, de todos os portes e setores, para exportação. É realizado pela ApexBrasil em parceria com entidades executoras de todas as regiões do país. No Rio Grande do Norte, de 2020 a 2022, o programa foi executado pela Universidade Potiguar (UnP), que atendeu 191 empresas de 48 municípios, entre eles Timbaúba dos Batistas. Das empresas participantes, 15 já começaram a exportar. As demais, como o caso da Comart, participaram de rodadas de negócio com possíveis compradores e seguem em negociação.

Para a presidente da cooperativa, Valdineide Dantas, o PEIEX trouxe muito conhecimento, organização e a tranquilidade de estar pronta quando a oportunidade de vender para fora do país chegar. “Foi muito enriquecedor e estimulante participar do PEIEX. Nosso bordado no traje da primeira-dama foi como uma vitrine para nós, pois o mundo todo viu. Ficamos emocionadas, orgulhosas e ainda mais animadas de buscar outros mercados”, afirma.

Além da parceria com a estilista Helô Rocha, a Cooperativa também trabalha com outros estilistas de São Paulo e Brasília. Além disso, vendem pela internet os produtos de cama, mesa e banho, que são o carro-chefe da Comart. Segundo ela, bordar roupas foi uma inovação. Ela conta que aprendeu no PEIEX que inovar gera competitividade e que isso faz a diferença no mercado internacional.

A Cooperativa hoje é responsável pelas criações de muitas peças encomendas pela Janja e outras personalidades brasileiras. Segundo Valdineide, os pedidos internacionais também são cada vez mais frequentes. No plano de exportação desenvolvido durante o processo de qualificação para exportação, o mercado-alvo selecionado pela empresa foi a Espanha.

“Este caso é um exemplo do trabalho da ApexBrasil de ampliação da cultura exportadora no país e de capacitação de empresas de todos os portes para que elas ganhem competitividade e exportem de forma segura e planejada e, como consequência, alavanquem seus negócios e contribuam com o desenvolvimento das suas regiões”, afirma a gerente de competitividade da ApexBrasil, Clarissa Furtado.

Ela explica que a Agência apoia empresas e cooperativas de vários setores e um dos que se destaca é exatamente o da moda. Segundo ela, o segmento conta com uma enorme quantidade de produtores de pequeno porte que trazem o design, o artesanato, as culturas e a história do país para dar vida às suas criações e, com isso, se diferenciam e podem conquistar cada vez mais novos espaços no comércio internacional.

O bordado é tradição na região do Seridó. Valdineide Dantas borda desde os 11 anos e conta que aprendeu o ofício com a mãe, também bordadeira. Um terço do sustento da população de Timbaúba dos Batistas vem do bordado. O pequeno município tem 2,4 mil habitantes, segundo o IBGE, e 800 bordadeiras, segundo a Comart. A cooperativa existe desde 2003 e tem 23 mulheres associadas, com idades que variam entre 30 e 70 anos. Com a oportunidade de conquistar o mercado internacional, elas querem ser exemplo para as demais bordadeiras da região, valorizando e estimulando ainda mais a tradição local.

Sobre o Peiex

O PEIEX é oferecido pela ApexBrasil com o intuito de preparar as empresas brasileiras para iniciar o processo de exportação de forma planejada e segura. Ao longo do primeiro semestre de 2022, o Programa atendeu e qualificou 2.417 empresas, por meio da execução de 24 convênios, nas 5 regiões do país.

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Eleição começa no RN pela primeira vez sem o protagonismo das oligarquias desde o pós-redemocratização

Desde a redemocratização, em 1985, as oligarquias familiares que se estabeleceram na política potiguar antes de depois do regime militar estiveram no protagonismo eleitoral indicando candidatos ou tendo seus membros disputando a eleição.

Entre 1986 e 2010, as oligarquias Alves, Maia e Rosado estiveram no topo da cadeia alimentar da política do Rio Grande do Norte ganhando ou perdendo.

Alves e Maia estiveram em embates pelo Governo do Rio Grande seja com membros das famílias seja com indicados. Assim se elegeram Geraldo Melo (apoiado pelos Alves) em 1986 e Garibaldi Alves Filho em 1994 e 1998. Os Maias, oligarquia que se fortaleceu nos anos 1970 sob as bençãos da ditadura militar, elegeu José Agripino Maia em 1990 e disputou contra os Alves com João Faustino (1986), Lavoisier Maia (1994) e o próprio Agripino em 1998.

Curiosamente em 1990 houve um embate Maia x Maia com Agripino derrotando no segundo turno Lavoisier, que tinha a chancela dos Alves.

A quebra do confronto Alves x Maia ocorreu pela primeira vez em 2002 quando Wilma de Faria (na época no PSB) deixou a Prefeitura do Natal para se tornar a primeira mulher governadora do Rio Grande do Norte.

Ela ajudou a tirar o candidato dos Maia (Fernando Bezerra) do segundo turno e depois abateu o nome indicado pelos Alves (Fernando Freire) no segundo turno.

Wilma transitou pelas duas oligarquias sendo integrante por casamento com Lavoisier, da família Maia, e ocasionalmente aliada dos Alves nos pleitos de 1990 (quando seu então marido foi apoiado pelos antigos adversários) e 2000 (quando foi reeleita prefeita do Natal no primeiro turno).

Wilma contou com o apoio dos Maias no segundo turno em 2002, mas logo rompeu com os antigos familiares.

Enfraquecidos com a ascensão de Wilma, os Alves e os Maias deixaram as disputas dos anos 1980 e 1990 no passado se juntando (com uma parte dos Rosados) para derrotar Wilma em 2006.

Wilma acabou impondo a primeira derrota da carreira de Garibaldi Filho, apelidado de “Governador de Férias”, naquele ano, no episódio que ficou conhecido como “surra de saia”.

Detalhe curioso: Wilma não costumava usar saia em suas aparições públicas. Valeu mais pelo simbolismo.

Seria também a última reeleição para o Governo do RN.

Em 2010, a oligarquias deram sua última demonstração de força e passaram como um trator elegendo Rosalba Ciarlini governadora e renovando os mandatos no Senado e Garibaldi e Agripino. De quebra, o “Garibaldi Pai”, como ficou conhecido no fim da vida, herdou o mandato de Rosalba na Alta Câmara.

Alves, Rosado e Maia juntos em 2010: o último suspiro das famílias (Foto: reprodução)

Em 2014, a oligarquias ficaram ainda mais juntas, mas sofreram uma derrota duríssima mesmo montando o maior palanque já visto no RN em torno de Henrique Alves que terminaria derrotado por Robinson Faria para o Governo.

De volta ao ninho das famílias tradicionais, Wilma perderia o Senado para Fátima Bezerra (PT).

Em 2018, a oligarquias sofreriam o seu maior baque: perderam todas as cadeiras para o Senado. O eleitor potiguar escolheu Styvenson Valentim (Rede) e Zenaide Maia (PHS). O sobrenome da hoje parlamentar do PROS, é mera coincidência. De quebra, Fátima Bezerra bateria Carlos Eduardo Alves para o Governo impondo uma vitória com 269.875 de maioria.

Hoje as oligarquias pela primeira vez não ocupam os cinco cargos mais importantes: governador, vice-governador e as três vagas do Senado.

A consequência disso em 2022 é a apresentação de um quadro diferente. As oligarquias perderam protagonismo. Os oligarcas não tiveram o peso do passado na montagem das chapas, ocupando posição secundária nas articulações.

Sem a Prefeitura de Mossoró em mãos e coadjuvantes na oposição ao prefeito Allyson Bezerra (SD), Rosados só possuem uma candidatura competitiva: a tentativa de reeleição de Beto Rosado. Os Maias só não estão fora do pleito porque Márcia Maia, filha de Wilma e Lavoisier, tenta uma vaga na Câmara dos Deputados, com chances remotas.

Quem ainda respira por aparelhos são os Alves que precisaram aderir ao grupo de Fátima Bezerra. Carlos Eduardo disputa o Senado numa situação de completa dependência da petista, principalmente na busca do voto no interior enquanto Walter Alves foi colocado como vice dentro de uma conjuntura nacional de aproximação entre PT e MDB. O pai dele, outrora maior eleitor do Estado, Garibaldi Filho terá uma eleição duríssima para deputado federal e poder sair das urnas derrotados para a Baixa Câmara como Agripino em 2018.

Henrique Alves, senhor absoluto das articulações políticas no passado, está cuidando da candidatura a deputado federal no PSB, com chances reduzidas de eleição.

Os Alves se tornaram coadjuvantes dependentes de uma chapa liderada pela esquerda.

Agripino vinha esquecido das articulações na oposição e só passou a ser lembrado por um acaso do destino: a fusão entre DEM e PSL que gerou o União Brasil, maior partido do país. Com muito tempo de TV e recursos do fundo eleitoral ele passou a ser mais ouvido.

Ainda assim não reuniu condições de apresentar uma candidatura. Em 2018 acabou ficando na segunda suplência de deputado federal.

Tudo é muito pouco se comparado com o passado. Alves, Maias e Rosados não escolheram os candidatos ao Governo e Senado, foram tangidos por outras lideranças como Fátima, Rogério Marinho, Fábio Faria e dentre outros.

A perda de influência também passa pela ascensão do bolsonarismo que mudou a paisagem da direita no Rio Grande do Norte, com outras lideranças emergindo e pela escolha de Jair Bolsonaro de colocar dos políticos, Fábio Faria e Rogério Marinho, potiguares na condição de ministros.

Eles acabaram assumindo o protagonismo da oposição ao governo petista de Fátima. O eleitor que rejeitou os sobrenomes tradicionais não sentiu falta dos antigos líderes.

O ano de 2022, consolida um processo de mudança em que o ar de “nobreza” está desaparecendo da elite política.

 

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Reportagem especial

Irmã bolsonarista e irmão petista disputam vaga de deputado federal no RN

Nos últimos anos o Brasil vive uma triste realidade da divisão entre as famílias por causa da política após a ascensão do bolsonarismo que radicalizou o debate no país.

As crises familiares se tornaram comuns. Alguns sabem lidar, outros não. Há os que deixam as disputas para as urnas e mantém o respeito interno ainda que saiam candidatos.

É o caso do médico Alexandre Motta (PT) e da bioquímica e capitã da Polícia Militar Carla Câmara (PL). Eles são irmãos que serão candidatos a deputado federal.

Em conversa com o Blog do Barreto os dois demonstraram um profundo amor um pelo outro e o cuidado em colocar a família acima das diferenças políticas.

Alexandre já foi candidato ao Senado em 2018 obtendo 242.465 votos, ficando na sexta colocação. Em 2020 ele perdeu as prévias do PT para ser candidato a prefeito do Natal para o senador Jean Paul Prates. Carla Câmara, ou Capitã Carla, como se apresenta, é estreante em disputas eleitorais.

Alexandre disse ao Blog que as integridade familiar está preservada mesmo com as candidaturas e diferenças políticas. “A integridade da família pra mim precisa ser mantida. Ela continua, e continuará, sendo minha irmã, apesar das visões de mundo diferentes”, disse. “E continuará merecendo meu respeito e meu carinho, mesmo defendendo o que defende”, frisou.

Carla não escondeu a admiração que tem pelo irmão. “Tenho o maior carinho pelo meu irmão, grande homem e profissional, uma das melhores pessoas que conheço. Entretanto, os posicionamentos pertencem a cada um”, disse.

Ela disse ser candidata para defender a maior participação feminina na política e a valorização dos policiais. Também destacou a defesa da democracia e liberdade de expressão. “Como cidadã, tenho minhas convicções, assim como meu irmão tem as dele. Como defensora da democracia plena entendo como salutar o contraditório, ou melhor, o direito ao contraditório. Acredito, acima de tudo, no estado democrático de direito e defendo a pluralidade das ideias, a maior participação das mulheres e a valorização contínua dos policiais em busca de mais segurança para todos”, disse.

Alexandre teve a candidatura a deputado federal pelo PT confirmada no sábado. Carlos terá o nome aprovado em convenção no próximo domingo.

 

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Reportagem especial

De Província à Estado: o RN no contexto do golpe republicano de 1889

Há 132 anos o Brasil deixava de ser a única monarquia do continente americano e passava a ser uma República como seus vizinhos.

Nesta data o Rio Grande do Norte deixava de ser uma Província pobre para se tornar um Estado na mesma condição econômica.

O que mudou foi o poder que passou para uma nova elite que se misturou com uma parte da que dominava o RN nos últimos anos do Império.

As primeiras notícias sobre o golpe republicano chegaram através de telegramas assinados José Leão e Aristides Lobo, potiguares que residiam no Rio de Janeiro onde a história era descrita.

Todos pegos de surpresa ficaram meio sem saber o que fazer nas primeiras horas até que o último presidente provincial Antônio Basílio Ribeiro Dantas formou uma junta composta por chefes republicanos que indicou Pedro Velho de Albuquerque Maranhão chefe do governo provisório no RN no dia 17 de novembro. Nesta etapa de transição ele ficaria pouco tempo no cargo.

A mudança de regime ocorreu de forma pacífica no Rio Grande do Norte, sem a necessidade de envolvimento de militares, inclusive. “A República na província potiguar nascia tranquilamente, como se fosse a transmissão formal de cargo de um partido para outro, de acordo com a praxe imperial, e não uma mudança radical de um regime por outro, por definição, totalmente diferente”, afirma o professor Almir Bueno no livro Visões de República: ideias e práticas políticas no Rio Grande do Norte (1980-1895).

Diferente do que ocorreu em nível nacional, a chegada da República no Rio Grande do Norte teve protagonismo dos civis.

A costura política foi feita através de acordos entre elementos dos antigos partidos Liberal, Conservador e Republicano, inclusive com o acolhimento de ex-monarquistas.

A principal autoridade militar no RN era Felipe Bezerra Cavalcanti, que segundo Câmara Cascudo, em citação de Almir Bueno, teria recebido ordens de Benjamim Constant para empossar elemento local de confiança na chefia do governo.

Ele teve a oportunidade de assumir o governo provisório no Estado como aconteceu em outras unidades, mas não nutria ambições políticas e se julgava incapaz para o cargo.

“O fato é que no Rio Grande do Norte desde o início, os civis, republicanos e adesistas, controlaram a transição política para a República, confirmando a tradição civilista predominante na elite política imperial”, frisa Almir Bueno.

A seguir alguns tópicos da construção do Estado do Rio Grande do Norte Republicano.

Movimento republicano do RN nasce em Caicó

Nas vésperas do golpe republicano, o Rio Grande do Norte era uma província frágil, economicamente dependente e uma sociedade agrária e conservadora. Nada muito diferente dos seus vizinhos do que na época era chamado de “Norte”.

Somente 3.941 potiguares tinham direito ao voto, o que correspondia a apenas 1,4% da população na época.

As eleições nos tempos do imperador no RN eram marcadas pela corrupção e clientelismo.

Foi nesse contexto que surgiu o movimento republicano por estas bandas. Forjado no país a partir do manifesto republicano de 1870 e depois em 18 de abril de 1973 durante a Convenção de Itu, o Partido Republicano nunca foi dominante nas eleições. A agremiação estava concentrada nos atuais estados dos Sul e Sudeste enquanto que no “Norte” (que congregava os atuais Norte e Nordeste) só havia Partido Republicano formalizado no Rio Grande do Norte e em Pernambuco no dia do golpe republicano.

Ainda assim o movimento no RN era fraquíssimo se comparado com Pernambuco, que tinha uma tradição republicana que remonta as primeiras décadas do Século XIX.

Mossoró, protagonista no movimento abolicionista, teve participação apagada na defesa da mudança de regime. No interior do Estado esse protagonismo ficou com a então cidade de Vila do Príncipe, atual Caicó.

A cidade estava em decadência econômica nos anos 1880, mas detinha muita força política através dos grupos rivais lideradas pelas famílias Batista (Conservadores) e Medeiros (Liberais).

O protagonismo caicoense no movimento republicano pode ser representado na figura do jornalista Janúncio da Nóbrega Filho, redator da primeira coluna republicana em jornal monarquista no RN. Ele escrevia nas páginas de “O Povo”.

O peso do movimento republicano na então Vila do Príncipe se deu através da influência de fazendeiros seridoenses que estavam insatisfeitos com a decadência econômica da região.

A antecipação do republicanismo de Caicó em relação à capital também se deu pelo investimento que a elite agrária fez na educação dos filhos que eram enviados para estudar em grandes centros urbanos onde conheciam as ideias republicanas como explica Almir Bueno:

“Aparentemente surpreendente, dentro dos marcos dessa sociedade tradicional, foi a decisão de alguns fazendeiros da região, que teria uma importante consequência no desenvolvimento republicano seridoense, a ponto de fazê-lo antecipar-se ao próprio republicanismo da capital. Com efeito, apesar de serem constantemente criticados pela falta de iniciativa e pelo espírito rotineiro e infenso ao progresso e à modernização, esses sertanejos tomaram uma atitude à primeira vista  contraditória com a imagem de conservadorismo que tinham: em meados da década de 1880, enviaram seus filhos para estudar fora, não apenas nos seminários de formação religiosa, como era comum, mas principalmente nas faculdades de direito do Recife e medicina na Bahia”.

Entre esses jovens estava Janúncio da Nóbrega que fundou o primeiro núcleo republicano no Rio Grande do Norte em 1886 quando tinha apenas 17 anos. Mais tarde esse grupo seria chamado de Centro Republicano Seridoense.

Para Almir Bueno o pioneirismo do Seridó em relação a Natal se deu também pela falta de tradição de independência da capital, bem diferente dos coronéis sertanejos.

A influência dos potiguares emigrados no movimento republicano

Como demonstramos no caso de Janúncio Nóbrega foi através do envio de jovens da elite para estudar nos grandes centros do país que as ideias republicanas chegaram ao Rio Grande do Norte.

Em Recife, o Janúncio conheceu o natalense Braz Mello e os dois integraram o movimento republicano na capital pernambucana, inclusive assinando um manifesto.

Eles conheceram e se tornaram discípulos do líder republicano incendiário Silva Jardim, que pregava a execução da família imperial.

No Rio de Janeiro, João Avelino e José Leão eram os contatos com os republicanos do RN. Eles faziam parte de uma pequena colônia de 2.104 potiguares que habitavam a corte.

A eles se juntavam Daniel Ferro Cardoso e Tobias do Rego Monteiro, que se tornaria braço direito de Rui Barbosa e opositor da oligarquia Maranhão nos primeiros anos da República.

Mas o mais famoso republicano potiguar seria Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, que se formou em medicina no Rio de Janeiro de 1881. Primeiramente ele se dedicou à causa abolicionista e só depois se entregou ao republicanismo. Somente no final de 1888 e após hesitar bastante ele decidiu se colocar a frente do movimento republicano no RN.

Ele fundaria o Partido Republicano do Rio Grande do Norte em janeiro de 1889, seria o primeiro governador do Estado e líder da oligarquia Albuquerque Maranhão que ficaria a frente dos destinos dos potiguares por quase 30 anos.

Os primeiros anos da República no RN e a primeira oligarquia

A chegada da República alterou a forma como os representantes políticos se elegiam. O novo regime acabou com o voto censitário que se baseava em critérios de renda.

Passavam a votar todos os homens alfabetizados com idade acima de 21 anos. O voto de cabresto foi a fórmula encontrada pela elite agrária para se manter no poder.

O comando do RN ficou nas mãos de políticos do Seridó e da capital. Seria Pedro Velho de Albuquerque Maranhão o maior beneficiário da troca de regime, mas para se consolidar e fundar a primeira oligarquia familiar no RN republicano foi necessário enfrentar alguns percalços.

O primeiro governador do Rio Grande do Norte assumiu a função de forma provisória de curta duração. Foi acusado de perseguir adversários pelo jornalista Hermógenes Tinôco na Gazeta do Natal.

Pedro ficaria na chefia de governo por apenas 20 dias sendo substituído pelo paulista Adolfo Gordo, mudança que foi considerada um ato de desprestígio do Governo Provisório com a elite política potiguar. Essa passagem pelo cargo foi tumultuada e ele seria substituído em 8 de fevereiro de 1890 pelo também paulista Joaquim Xavier da Silveira Junior que embora viesse de fora era afinando com Pedro Velho.

Silveira Junior soube fazer acomodações políticas nomeando Pedro Velho 1º vice-governador ficando no cargo até o mês de setembro. Foi nesse período que ele conseguiu formar a chapa vencedora para compor a Constituinte. Passada a eleição, Silveira Junior deixou o Governo para o vice, Pedro Velho, até que um novo governador fosse nomeado. O escolhido foi João Gomes Ribeiro, um sergipano com atuação política abolicionista e republicana em Alagoas. Ele tomou posse em novembro de 1890 para concluir o processo de transição. A relação política dele com a elite política potiguar não foi das melhores e ele montou uma equipe com adversários de Pedro Velho.

O líder político potiguar conseguiu virar o jogo menos de um mês depois obtendo a troca de João Gomes pelo juiz Manuel do Nascimento Castro e Silva.

Em menos de um ano, Pedro Velho derrubara dois governadores, mas ele passaria os meses seguintes em situação de desprestígio com o poder central por ter votado em Prudente de Morais na eleição que manteve Deodoro da Fonseca pela via indireta no poder.

Somente em 12 de julho de 1891 o primeiro governador constitucional do RN seria eleito. Miguel Castro, um deputado federal, foi escolhido pelos deputados estaduais em um pleito indireto.

A queda de Deodoro da Fonseca permitiu a ascensão de Pedro Velho que liderou um golpe para derrubar Miguel Castro em 28 de novembro de 1891 com a ajuda de tropas militares e correligionários armados.

Foi montada uma junta governativa liderada pelo Coronel Lima e Silva que permaneceu no poder até a eleição indireta de Pedro Velho pela Assembleia Legislativa em 31 de janeiro de 1892. A posse ocorreu em 28 de fevereiro daquele ano.

“O período em que Pedro Velho esteve a frente do governo estadual, porém não foi fácil, como poderia parecer à primeira vista. A oposição, normalmente dividida em correntes irreconciliáveis por motivos que vinham do Império, constatando não ter chances eleitorais reais, passou a apostar que só uma solução golpista, ao sabor das alterações da conjuntura nacional, poderia proporcionar-lhe a volta ao poder”, afirma o pesquisador Almir Bueno.

Ainda assim Pedro Velho elegeria o sucessor Joaquim Ferreira Chaves 1895. Este seria o primeiro governador do RN eleito pelo voto direto. Pedro Velho permaneceria no Senado até morrer em 9 de dezembro de 1907. Ele fundou a primeira oligarquia familiar do Estado elegendo o irmão Alberto Maranhão e o genro Tavares de Lyra governadores.

Por 16 anos Fabrício Gomes de Albuquerque Maranhão, um de seus irmãos, foi presidente da Assembleia Legislativa, então conhecida como Congresso Estadual.

A oligarquia Albuquerque Maranhão dominaria o RN por quase 30 anos quando foi sucedida pela liderança política de José Augusto Bezerra de Medeiros, do Seridó, região pioneira no movimento republicano. Ele ascendeu ao poder turbinado pela força da economia algodoeira.

Para saber mais sobre o nascimento da República no Rio Grande do Norte sugerimos a leitura das fontes pesquisadas para esta reportagem:

BUENO, Almir de Carvalho. Visões de República: ideias e práticas no Rio Grande do Norte (1880/1895). Natal: Edfurn – editora da UFRN, 2002.

MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à História do Rio Grande do Norte – 4 Ed. – Natal, RN: Flor do Sal, 2015.

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Reportagem especial

Quem era Luan? Conheça a história e os sonhos do rapaz que foi brutalmente assassinado pela PM de Mossoró

Luan era técnico em eletrotécnica formado pelo IFRN e estudava C&T na Ufersa (Foto: Cedida)

Por Claudio Palheta Jr. 

“Extrovertido”,“sorridente”,“batalhador”, “cheio de sonhos” … Esses são alguns dos adjetivos que recorrentemente são dados ao jovem Luan Barreto, estudante universitário e técnico em eletrotécnica de 23 anos que foi brutalmente assassinado na noite de 1º de julho, na Avenida Lauro Monte, em Mossoró

O caso, que chocou todo o Rio Grande do Norte, e segue rodeado de mistérios e dúvidas, permanece sem respostas claras. Todos os indícios levam a crer que Luan foi vitimado após uma ação desproporcional e completamente atabalhoada da Polícia Militar de Mossoró. Até o momento os três PM’s foram afastados das funções enquanto caso é apurado, mas os questionamentos permanecem.

Quem matou Luan? De que arma partiu a bala que acertou sua cabeça? Onde estão as imagens das câmeras de segurança que rodeavam a cena do crime? Porque essas imagens não foram solicitadas imediatamente? Sob quais circunstâncias um motociclista, às 20h30 da noite, em uma das avenidas mais movimentadas da cidade levaria um tiro em cheio na cabeça? Todas essas questões permanecem povoando os noticiários, o imaginário popular e também o pensamento dos familiares e todos àqueles que amavam Luan Barreto.

Passados 17 dias do crime bárbaro, e de uma investigação que ainda não apontou os responsáveis pela tragédia, o Blog do Barreto conversou com exclusividade com familiares, amigos e a namorada de Luan, buscando conhecer melhor quem era esse rapaz, quais eram seus sonhos e esperanças e de que forma aqueles que o amavam estão lidando com luto e a sensação de injustiça. Parte do bate papo com os familiares foi registrado em vídeo e pode ser conferido ao final dessa reportagem

Lucas Barreto conta que um dos sonhos de seu irmão mais velho era o de garantir que a mãe não precisasse mais trabalhar e que eles pudessem, no futuro, ter uma vida mais confortável. Para que isso se realizasse, Luan trabalhava em dois empregos e também fazia faculdade de Ciência e Tecnologia na Universidade Federal Rural do Semi-árido.

“Desde cedo ele começou a trabalhar, já aos 12 anos. Seu primeiro trabalho foi numa oficina de carro e moto. Depois disso, meu irmão trabalhou como servente, marceneiro, padeiro, vidraceiro e por último estava trabalhando como eletrotécnico, após ter concluído o curso de Eletrotécnica no IFRN. Ele tinha a fama de trabalhador justamente por isso. Estava se dando super bem no emprego atual, pois era exatamente na área que ele buscava e se formou. Uma coisa que ele falava muito para nossa mãe era sobre o desejo de reformar a nossa casa e também conseguir fazer com que ela não precisasse mais trabalhar tanto”, comentou Lucas.

O amigo Neemias Marinho reforça o caráter honesto e trabalhador de Luan. Para ele, o jovem era exemplo de superação e empenho, uma vez que dava conta de todas as suas atividades cotidianas sem esquecer de dedicar tempo aos amigos e a namorada. Para Neemias mesmo com suas inúmeras responsabilidades, Luan nunca deixou de pensar naqueles que estavam próximos.

“Luan é uma pessoa muito importante na minha vida. O que mais vai ficar na lembrança é a sua honestidade, sua força de vontade e capacidade de se superar. Mesmo não tendo tempo livre ele decidiu fazer uma faculdade. Ele trabalhava até as 18h, saia e ia estudar. Acordava cedo para ir à academia, depois já ia para o trabalho e ainda arrumava tempo para os amigos, para a família e pra namorada”

A tia de Lucas, Andreia Lígia, ressalta a alegria de Luan em viver e a felicidade que ele trazia a todas as pessoas que estavam ao seu redor. Ela foi uma das primeiras pessoas a chegar à cena do crime e os questionamentos que ela fez foram fundamentais para impedir que o caso de Luan fosse engavetado sem uma maior investigação.

“Tem um ditado que diz que para a pessoa ser elogiada precisa morrer. Pode até parecer que com Luan está acontecendo isso, mas não é. Ele sempre foi muito querido e isso transparece nas manifestações nas redes sociais e também nas ruas. As pessoas fazem questão de nos dizer que ele era muito alegra e querido. Gente que conhecia ele há muito tempo, gente que conhecia há pouco, era um consenso de como ele era um bom rapaz. Luan não havia completado sua missão aqui na Terra, que era de dar uma vida melhor para a mãe dele, infelizmente isso foi interrompido”, afirmou a tia

A prima de Luan, Lara Lívia, afirma que a vida de Luan sempre foi cheia de atividades e responsabilidades. “Ele conseguia conciliar tudo. Ele era o provedor da casa, mas sempre tinha tempo para tudo, para o trabalho, para os amigos… Há dois ele havia me falado que tinha o sonho de entrar n faculdade, mas sempre foi empurrando isso pra frente pois precisava prover as coisas dentro de casa e isso era a prioridade. Ele sempre falava que precisava trabalhar para que no futuro pudesse ter uma vida mais confortável, mais tranquila”, comentou.

 “Não consigo acreditar nem aceitar que isso aconteceu. Para mim ele vai voltar a qualquer hora” afirma namorada da Luan.

A namorada de Luan, Myrla Rodrigues também conversou com exclusividade com Blog do Barreto e contou como têm sido os primeiros dias após o bárbaro crime cometido contra o rapaz.

De acordo com as informações da própria Myrla, Luan foi baleado quando ia buscar a namorada no trabalho, por volta de 20h30 da noite. Ela narra como foram os momentos antes de descobrir que o rapaz havia sido alvejado e estava no hospital:

“Eu estava aguardando por ele, fiquei esperando até umas 21h20, 21h30 e comecei a perceber uma demora incomum. Comecei a ligar e tentar contato, mas sem nenhum retorno. Quando ele ia se atrasar ele sempre me avisava, mas como ele trabalhava a noite achei que ele estava ocupado, por isso decidi pegar um Uber para ir para casa.  Pouco tempo depois de chegar em casa comecei a receber as fotos que estavam circulando nos grupos de notícias e nessa hora fiquei desesperada. Ao chegar no hospital nos deram a notícia, mas eu não consegui acreditar”, afirmou a namorada.

A notícia da morte de Luan ainda não foi completamente processada por Myrla, que tem apenas 18 anos. Ela conta que tinha muitos planos e projetos com Luan e que admirava a sua força de vontade, alegria e coragem para enfrentar os desafios.

” Ainda não acredito nem consigo aceitar que isso aconteceu. Para mim ele vai voltar a qualquer hora. Saber que ele saiu de casa e que nunca mais vai voltar é algo que eu ainda não processei completamente. Ele me disse um dia que íamos vencer na vida e conquistar tudo o que sonhávamos. Isso infelizmente foi arrancado de nós”, concluiu.

Sonhos destruídos. Vida roubada. Uma tragédia e muitas marcas.

 Com a morte de Luan, também foram embora os planos e esperanças do jovem sonhador. Conhecido por sua humildade e gentileza, o rapaz que trabalhava em dois empregos e almejava dar um futuro melhor para a mãe, sem dúvida, marcou positivamente todos os que o conheceram em sua tão breve jornada nessa vida.

O irmão de Luan, Lucas, afirma que a mãe dos rapazes tem sofrido muito. “Nunca vi minha mãe tão triste quanto agora. Tenho feito de tudo para tentar manter ela animada e feliz, mas isso é difícil porque eu também não consigo parar de me sentir triste. O que desejamos é que esse crime seja apurado, os responsáveis paguem por ele. Só assim poderemos ficar um pouco mais tranquilos com tudo isso”, ressalta.

A prima de Luan, Lara, comentou a importância das investigações como forma de garantir que a justiça seja feita e que os responsáveis pelo crime sejam punidos. Dessa forma a família encontrara algum amparo em meio a essa tragédia.

“É impossível para a família e para os amigos seguirem em frente sem ter respostas sobre esse crime. A gente precisa disso. Não significa que vai passar, mas pelo menos vamos aos poucos aceitar a situação. Temos que ir atrás de saber quem foram os responsáveis por isso, como isso ocorreu. Só assim vamos poder desencasar nosso coração” afirmou Lara.

Neemias também ressaltou a importância da busca por justiça. “Luan foi um cara muito importante pra mim, a gente só quer saber quem foi que fez isso, que a justiça seja feita e a gente possa ter um pouco mais de conforto”, afirmou Neemias

Confira a seguir o bate papo na íntegra com a família de Luan. Nesse material exclusivo os familiares falam sobre a vida sem o rapaz, os sonhos que não poderão ser realizados e também sobre o processo de investigação do crime, as mobilizações em defesa de uma apuração justa e a rede de solidariedade entorno da família e amigos.

 

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Reportagem especial

A comuna do RN: como um sapateiro, um estivador, um sargento e um servidor público transformaram Natal na primeira capital comunista das Américas

Por Bruno Barreto

O governador do Rio Grande do Norte Rafael Fernandes Gurjão caminhava para mais uma solenidade maçante (no caso a formatura dos contabilistas do Colégio Santo Antônio) daquelas cheias de bajuladores, que os políticos só vão por obrigação, no Teatro Carlos Gomes (atual Alberto Maranhão).

Era por volta das 19h30 do dia 23 de novembro de 1935 e o governador nem fazia ideia do que estava por vir até que surge no vácuo o som dos estampidos. Começava naquele momento o que para a direita se convencionou chamar de Intentona Comunista de 1935 e para a esquerda se tenta dar o nome de Levante ou Insurreição no lugar da palavra que significa “cometimento temerário” ou “plano insensato”.

No quartel do 21º Batalhão de Caçadores do Exército um grupo de sargentos tomou o controle, quebrou a hierarquia e prendeu oficiais em nome de Luís Carlos Prestes, conhecido como “Cavaleiro da Esperança”, líder da Aliança Nacional Libertadora (ANL).

No Rio de Janeiro e em Recife também teríamos sublevações, mas as duas cidades não foram tão longe quanto Natal. A capital dos potiguares tornava-se naquele 23 de novembro a primeira cidade comunista das Américas.

A revolução, intentona, levante ou insurreição espalhou pelo Rio Grande do Norte e quase metade do Estado foi tomado de assalto.

À frente do movimento estavam tipos populares como sapateiro José Praxedes que proclamou a instauração de uma Junta Governativa Popular Revolucionária. Mossoró estava representada pelo funcionário do Colégio Atheneu João Galvão. Além de João Francisco Gregório, presidente do Sindicato dos Estivadores que assumiu o controle do cais do porto.

O líder militar do movimento era o Sargento Quintino Clementino Barros, um músico. Ele tomou o quartel do 21º BC do Exército em poucos minutos com a ajuda do soldado Raimundo Francisco de Lima (“Raimundo Tarol) e o cabo Giocondo Dias (“Cabo Dias”).

Os oficiais rendidos não aceitaram aderir à revolução e ficaram presos no cassino do quartel. Coube ao “Cabo Dias” pronunciar a voz de prisão: “os senhores estão presos em nome do capitão Luiz Carlos Prestes!”.

Enquanto isso o governador e seu séquito fugiam. Primeiro Rafael Fernandes se escondeu no consulado improvisado do Chile. Depois no da Itália e por fim foi parar em um navio mexicano ancorado no porto de Natal onde ficou até ter o poder restabelecido com ajuda de forças policiais da Paraíba. Foram três asilos políticos em três dias.

Durante pouco mais do que três dias, ou 82 horas como apontam alguns historiadores, ocorreram saques, ou expropriações, todo o dinheiro do Banco do Brasil foi raspado e parte dele distribuído entre os pobres. O bonde passou a funcionar com preços das passagens reduzidos e a revolução se espalhou por quase metade das 41 cidades potiguares naquela época.

Com a chegada de forças militares da Paraíba e com o fracasso do levante no Rio de Janeiro e em Recife os sublevados decidiram por evitar um banho de sangue e fugiram no dia 27 de novembro.

A seguir mostramos uma série de fatos que você não conheceu na escola quando estudou a respeito da “Intentona Comunista de 1935”.

 

Disputas entre oligarcas deram condições políticas para o movimento

Há menos de um mês Rafael Fernandes tinha tomado posse no cargo em tumultuado processo eleição indireta. Era primeiro (e seria o único) governador sob a égide da liberal constituição de 1934.

A confusão se dava pela eleição de 1934 que manteve os padrões da República Velha (1889/1930) com fraudes, violência e voto de cabresto, três elementos que findam sendo uma coisa só: o desrespeito à vontade do eleitor.

Foi neste pleito que escolheu os deputados que elegeriam o Governador do Rio Grande do Norte de forma indireta. As forças políticas que davam as cartas no Estado estavam divididas entre o Partido Popular (PP) que reunia os oligarcas derrotados no Golpe de 1930 e o a união dos grupos de Café Filho e do ex-interventor Mário Câmara que formavam a Aliança Social.

Na primeira contagem a dupla Café Filho e Mário Câmara levou a melhor, mas o PP denunciou fraudes e o recém criado Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou novas eleições.

Novamente o tripé voto de cabresto, violência e fraudes estava posto lado a lado. No fim o PP venceu elegendo três deputados federais e 14 estaduais contra dois federais e 11 estaduais de seus adversários.

Rafael Fernandes virou governador, mas teria que lidar com o ranço dos adversários que passaram a conspirar diariamente. Não era uma conspiraçãozinha de gabinete. Era algo aberto e provocador.

Assim relata Natanael Sarmento em “Às Armas Camaradas!” (pág.30)

“As tramas conspiratórias à deposição de Rafael Fernandes eram públicas, os conspiradores não davam importância à confidencialidade. A movimentação dos chefes políticos interioranos, prefeitos, ligados ao interventor Mário Câmara, e as confabulações dos partidários de João Café Filho, ocorriam à luz do dia”.

A disputa entre duas pontas da elite política acabou aproximando membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e da ANL aos derrotados da eleição de 1935.

Era uma situação que enfraquecia politicamente o governador e contribuiu para o levante comunista.

Para piorar a situação, Fernandes tinha demitido 300 guardas-civis que estavam indignados e prontos para aderir à revolução.

Tudo isso em um contexto do mundo entre guerras (1918/39) em que a polarização entre nazifascimo e comunismo esmagava a democracia liberal. Isso, claro, se refletia num Brasil que dali a dois anos sofreria com o Golpe do Estado Novo.

As tensões no Rio Grande do Norte eram reflexo da disputas entre a ANL e a Ação Integralista Brasileira (AIB) – de orientação fascista- em que o próprio Getúlio Vargas tentara se equilibrar entre os polos para, ao golpear a frágil democracia brasileira em 1937, colocar os dois grupos na ilegalidade,

A revolução se espalha pelo interior

Revolução é notícia pelo pais e chega ao interior do RN

Com o controle em Natal a fase seguinte seria espalhar a revolução para o interior. Assim foram formadas três colunas: a primeira rumou ao litoral sul até a divisa com a Paraíba. A segunda saiu pelo litoral norte com o objetivo de alcançar por esse trajeto Macau e Mossoró até a divisa com o Ceará. A terceira rumou para as regiões Central e Seridó.

O objetivo era depor prefeitos, assumir o controle administrativo e soltar os presos políticos. Além de confiscar dinheiro e armas.

Aliciar novos revolucionários era outro plano.

Essa estratégia se repetiu em quase metade dos 41 municípios existentes no Rio Grande do Norte naquela época. Os governos populares com lideranças ligadas ao PCB, Aliança Social e ANL.

Foi tomado o controle nas cidades de Santa Cruz, Nova Cruz, Currais Novos, Acari, Ceará-Mirim, São Gonçalo, Taipu, Baixa Verde (atual Campo Redondo), Macau, São Miguel, São José de Mipibu, Arês, Canguaretama, Goianinha, Lajes e Angicos.

A Guerrilha do Vale do Açu

 

Imagem de Manuel Torquato:  Guerrilha surge antes do levante e termina em 1936

No Vale do Açu, antes mesmo da revolução, já estava em uma guerrilha rural sob o comando de Manuel Torquato. Natanael Sarmento em “Às Armas Camaradas!” (Pág. 83) o descreve como um homem de leituras, convicções políticas e, sobretudo, de ação.

Ele chegou a ser preso em Mossoró, mas conseguiu fugir. A sua atuação foi um ensaio do que estava por vir.

A guerrilha surgiu antes do levante de 35 e seguiu após o fracasso. Eram ataques surpresas em que o líder conclamava os camponeses à luta contra a exploração e o monopólio da terra.

Por conta da estratégia que se assemelhava ao cangaço, os jornais de forma proposital faziam os leitores crerem que o militantes da Guerrilha do Vale do Açu eram cangaceiros.

A guerrilha só caiu em 1936.

Mossoró teve papel discreto

Praça Rafael Fernandes nos anos 1930. Mossoró ficou em compasso de espera (Foto extraída do site Memória Fotográfica)

Nos anos 1930 Mossoró já era a segunda cidade em importância do Rio Grande do Norte, mas curiosamente a terra da resistência ao bando de lampião oito anos antes ficou em compasso de espera.

E olhe que a cidade tinha um PCB organizado e em permanente contato com a guerrilha de Assú.

Brasília Carlos Ferreira em “O Sindicato do Garrancho” (Pág. 137) é quem melhor narrou o quadro na capital do Oeste.

“Em Mossoró, estranhamente, não aconteceu nada. Além de toda preparação anterior e da combinação prévia de não resistência por parte das corporações ali sediadas, havia a ‘guerrilha’, homens armados, experientes e dispostos, esperando apenas o sinal para saírem das matas e começarem a luta”.

A expectativa seria de Mossoró ser dominada sem um único tiro, mas faltava um sinal para deflagrar o movimento. Equipes se revezavam nos Correios à espera do telegrama até que chegou a mensagem: “Zeca baixou o hospital”. Era a senha para abortar a missão.

A revolução tinha fracassado.

O único feito prático do levante comunista em Mossoró foi a libertação de presos políticos da Cadeia Pública para se juntar à “Guerrilha”.

Dinarte, o “general” fanfarrão e o monsenhor integralista  

Dinarte e Walfredo: futuros governadores do RN que tentaram aparecer na resistência (Fotomontagem: Blog do Barreto_

Um dos fatos mais emblemáticos do Levante Comunista de 1935 no interior do Rio Grande do Norte foi a batalha da Serra do Doutor. A ela dois futuros governadores do Estado estão atrelados de forma, digamos, pitoresca.

A começar por Dinarte Mariz que foi governador e senador (pelo voto e biônico) e se forjou politicamente com base numa narrativa que se não foi inventada foi bem aumentada.

Dinarte, oligarca do Seridó, empolgado adesista de 1964, gabava-se de ser um anticomunista que pegou em armas. “Não sou anticomunista de gabinete. Sou anticomunista de fuzil na mão”, disse em discurso no Congresso Nacional (Às Armas Camaradas, Pág. 92).

Ele se colocava como um “general da batalha da Serra do Doutor”. Os jornais alinhados aos oligarcas reproduziam esse suposto heroísmo dando-lhe a patente de “General da Serra”.

No entanto, a badalada Batalha da Serra do Doutor, ocorrida na atual cidade de Campo Redondo, região do Trairi, não passou de uma troca de tiros sem vítimas cujo prejuízo se limitou a explosão com uso de dinamite em um caminhão abandonado no local. Os combates de ambos os lados fugiram.

Dinarte estava distante e só chegou quando o confronto tinha encerrado.

O ex-comandante da Polícia Militar e ex-prefeito de São Gonçalo do Amarante José Paulino de Souza conta que esse tal heroísmo de Dinarte não passou de uma busca por apoio logístico (informação extraída de “O Comunismo: as lutas políticas do RN na década de 30”, pág. 125).

“Dinarte foi para Santa Luzia, na Paraíba, a procura de meios de defesa. Depois que tudo terminou ele voltou com uma tropa da Paraíba, segundo soube, para cooperar na reorganização da resistência. Mas general ele não foi”.

O delegado Enoch Garcia, responsável por relatórios sobre o movimento, também descarta o heroísmo em campo de batalha atribuído à Dinarte (informação extraída de “O Comunismo: as lutas políticas do RN na década de 30”, pág. 132):

“Todo mundo queria que Dinarte tivesse tomado parte da Serra do Doutor. Ele não tomou parte da Serra do Doutor, como eu não tomei, como Humberto Gama não tomou. Lá tomaram parte Pedro Graciliano, José Epaminondas, Genésio Cabral, Antonio de Castro… e, inclusive, muitos civis (…)”.

Se a fanfarronice de Dinarte foi pitoresca neste episódio a do Monsenhor Walfredo Gurgel, outro futuro governador, não deixa por menos.

Seguidor na época do integralismo, ele largou a batina, pegou um revolver e colocou na cintura para combater na Serra do Doutor para onde também levou bombas no carro. Ele foi ao local, não entrou em combate e voltou.

Consta que nas imediações faltou remédio para dor de barriga para atender os que fugiam da batalha. Não ficou claro se Monsenhor Walfredo Gurgel foi um dos que recorreu aos serviços da medicação.

Mas tanto em tanto em “Ás Armas Camaradas” (Pág. 96) como em informação extraída de “O Comunismo: as lutas políticas do RN na década de 30” (Pág. 128) a citação sobre o surto de dor de barriga vêm logo após a história da participação relâmpago do religioso/político na resistência.

O “dinheiro achado” e “os observadores de engorda de tatu”

Cofre do Banco do Brasil em Natal foi esvaziado pelos insurretos (Imagem: Wikimedia Commons )

Após tomar o poder, os revolucionários ocuparam a casa oficial do governador, controlaram os rádios dos quarteis e os correios e telégrafos assim como o cais do porto.

Agora o que fazer? O objetivo era implementar uma reforma agrária e distribuir dinheiro para a população. Outra ação importante foi o pagamento dos salários atrasados da extinta Guarda Civil.

O dinheiro foi recolhido no Banco do Brasil e na Recebedoria de Rendas. No primeiro foram expropriados dois mil, novecentos e quarenta contos, centro e quatro mil réis e no segundo oitocentos e oitenta e seis contos, cento e vinte e quatro mil réis. Os revolucionários tinham uma fortuna em mãos.

Para tirar o dinheiro do Banco do Brasil foi necessária uma escolta levando o mecânico Manoel Severino que arrombou o cofre com o uso de um maçarico.

Após o fim do levante, em telegrama enviado à Vargas, Rafael Fernandes relatou um “confisco” de mais de cinco mil contos de réis.

De fato, a história registra a recuperação de apenas 800 mil réis, ficando pelo menos mais de dois terços da fortuna sem dono.

Várias lendas surgiram na capital. Uma delas é a dos “achadores de dinheiro”. Quatro décadas antes do nascimento do bordão “Follow the money” (“Siga o dinheiro”) ficar conhecida durante a investigação feita pelos jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein do caso “Watergate” que derrubou o presidente estadunidense Richard Nixon, a sabedoria natalense já tinha percebido essa como a melhor estratégia para identificar quem se deu bem com o “dinheiro achado”. A frase comum era: “se o tatu está gordo, alguma coisa ele come”.

De fato, do nada surgiram novos ricos. Casas foram reformadas. Empreendedores improváveis estavam posando de cidadão de bem, gerador de empregos e pagador de impostos.

“A Liberdade” que não circulou

“A Liberdade” não teve tempo de circular (Foto: reprodução)

Um dos problemas para a revolução dizia respeito à comunicação. Logo que tomaram o poder os revolucionários requisitaram duas belonaves da Companhia Aérea Condor para distribuir informativos à população.

Mas era necessário por um jornal nas ruas.

Com a imprensa oficial sob controle revolucionário, foi instituído o jornal “A Liberdade”, que nas palavras de Natanael Sarmento em Às Armas Camaradas (Pág. 65) mais parecia uma obra de ficção:

A Liberdade, o jornal oficial revolucionário, mais parece uma obra de ficção. Um artigo sobre A Marcha da Revolução Libertadora traz afirmações apologéticas e inverídicas da revolução no país. Um amontoado de notícias sobre levantes, greves e vitórias do movimento Nacional Libertador, inverídicas”.

A edição de “A Liberdade” ficou sob responsabilidade de Raymundo Reginaldo da Rocha. Na primeira e única edição foi apresentado o programa da revolução que previa reforma agrária, democracia, proteção aos trabalhadores e moratória da dívida externa.

Houve publicação de artigos sobre arte e uma pitoresca publicidade do Sal de Frutas Eno, um produto estrangeiro em uma publicação de um Governo Popular Revolucionário Nacional Libertador.

Mas “A Liberdade” sequer chegou a circular com seus mil exemplares. A tiragem foi apreendida pelas tropas da reação que retomaram o poder na capital em nome do governador Rafael Fernandes e do presidente Getúlio Vargas.

Mulheres também estiveram no Levante Comunista

A VERDADEIRA HISTÌRIA DO BRASIL
Infelizmente atuação das mulheres foi minimizada, mas elas estiveram presentes (Imagem: reprodução)

 

É lógico que na terra de Nísia Floresta, Celina Guimarães, Alzira Soriano e Maria do Céu Fernandes haveria uma intensa participação feminina em seu maior levante popular.

Houve uma tentativa de apagar da memória a participação feminina no movimento, mas não há como negar nos relatórios os trechos sobre as “mulheres vestidas de homem” que vestiram as fardas militares e pegaram em armas.

Eram integrantes da União Feminina. Algumas delas donas de casa. Outras lavadeiras. Gente da periferia de Natal que se colocou na luta por uma sociedade mais justa.

Leonina Félix teve intensa atuação no processo enfrentando ataques da mídia reacionária que lhe atribuía insultos como os apelidos de “amante”, “amásia” ou “mulher vestida de homem”.

Junto à ela estiveram Chica Pinote, Chica da Gaveta, Maria da Cruz Nunes e Raymunda Pires.

Foram ao todo 33 mulheres indiciadas e denunciadas pela participação no levante de 1935 ao Tribunal de Segurança Nacional. Contando a movimentação em todo o Brasil naquele mês de novembro 42% das mulheres denunciadas estavam no Rio Grande do Norte.

O herói fake da PM

PM rende homenagens a um herói forjado em fraudes em documentos (Foto: Mateus Ângelo)

Um dos episódios mais lamentáveis do pós-35 foi a manipulação de documentos públicos para a criação do mito do Soldado Luiz Gonzaga, herói da resistência à intentona comunista.

Por décadas ele foi peça de propaganda anticomunista no Rio Grande do Norte, inclusive sendo objeto de uma mausoléu no Cemitério do Alecrim erguido nos anos 1970 pelo então governador Tarcísio Maia.

Tudo não passou de uma falsificação desmascarada pelo desembargador João Maria Furtado no livro “Vertentes”, publicado em 1976.

Gonzaga era um morador de rua, considerado uma pessoa com problemas de sanidade mental que filava comida no quartel da Polícia Militar e fazia alguns serviços para os soldados. Durante a fuga de alguns policiais no cerco ao quartel da PM lhe deram um fuzil.

Furtado conseguiu comprovar que o major Luiz Júlio forjou o alistamento de Gonzaga e adulterou os relatórios que originalmente ignoravam a história da figura conhecida como “Doidinho” com o apoio do Dr. João Maria Medeiros.

A desconfiança sobre a farsa persistiu por vários anos pela ausência de citações sobre a morte dele em depoimentos e reportagens nos jornais. Também permaneceu sob mistério a autoria do assassinato.

Somente nos anos 1990 o autor do homicídio apareceu. Trata-se de Sizenando Filgueira da Silva que aos 75 anos decidiu confessar numa entrevista à Tribuna do Norte, publicada em 12 de dezembro de 1995. Extraímos o depoimento do livro “O Comunismo e as Lutas Políticas no RN na Década de 1930” de autoria de Luiz Gonzaga Cortez.

Confira a fala de Sinzenado (Pág. 91):

“Ele não era herói nem militar na época. Ele apenas era um débil mental, menor de idade, e deram-lhe um fuzil para acompanhar os que fugiam do quartel em procura da base naval. Depois que fiz a prisão do major Luiz Júlio (comandante do Batalhão da PM), e de um coronel do Exército, eu olhava para a direita e vi quando ele estava procurando pontaria para atirar. Antes que atirasse eu atirei, só dei um tiro e ele caiu. Ele estava por trás de uma moita no mangue (…)”.

O livro Às Armas Camaradas (Pág. 82) traz a informação de que João Medeiros Filho escreveu uma carta a O Poti em 13 de outubro de 1985 admitindo a adulteração de documentos feita pelo pai para forjar o mito classificando-a como “alteração de boa-fé”. “No entanto, esse episódio da fraude do Soldado Luiz Gonzaga está longe da boa-fé. Fraude é fraude”, avaliou o autor Natanael Sarmento.

Até hoje muitos setores da PM potiguar celebram a figura de um herói forjado para uma propaganda anticomunista.

Bibliografia consultada:

BRASÍLIA, Carlos Ferreira: O Sindicato do Garrancho. Mossoró: Coleção Mossoroense, 2000.

CORTEZ, Luiz Gonzaga: O Comunismo e as Lutas Políticas na Década de 30. Natal: Sebo Vermelho, 2015.

SARMENTO, Natanael: Às Armas Camaradas! A insurreição comunista e o Governo Popular de 1935 em Natal. Mossoró: Sarau das Letras, 2016.

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Reportagem especial

O Golpe Militar no RN: quem aderiu, quem resistiu e as consequências políticas

Por Bruno Barreto

A madrugada que separou os dias 31 de março e 1º de abril de 1964 foi marcada pela ruptura do Estado Democrático de Direito no Brasil levando o país a 21 anos de ditadura militar.

Tudo isso há exatamente 55 anos.

Entre historiadores renomados é unanime que foi um Golpe de Estado com direito a tanques nas ruas, inclusive.

No Rio Grande do Norte os efeitos da ruptura com a democracia foram sentidos de forma imediata. O Estado vinha de uma eleição acirrada e marcada pelo radicalismo em 1960 quando Aluízio Alves, após romper com Dinarte Mariz, derrotou Djalma Marinho e se tornou governador do Estado.

Aluízio deu apoio ao golpe e foi um aliado de primeira hora dos militares.

O prefeito de Natal era Djalma Maranhão, político abertamente de esquerda que atuava como terceira via entre as oligarquias comandadas por Aluízio e Dinarte. Djalma possui fortes divergências públicas com Aluízio.

Maranhão entraria para história também por ter feito a campanha de alfabetização “Pé no Chão Também se Aprende a Ler”, baseada nos métodos do pedagogo Paulo Freire.

Com deflagração do golpe, ele faria da Prefeitura de Natal o principal foco de resistência no Rio Grande do Norte. O Palácio Felipe Camarão se tornaria o “QG da Legalidade e da Resistência”. No entanto, o entorno de Maranhã era frágil por se limitar a lideranças sindicais, estudantes e assessores.

Enquanto isso, Aluízio publicava na Tribuna do Norte uma nota em que pedia ao povo potiguar para se conservar calmo evitando manifestações que aprofundem divisões.

Apesar do discurso apaziguador caberia ao governador encaminhar as primeiras ações de repressão política no Rio Grande do Norte perseguindo lideranças sindicais e políticos adversários.

Djalma foi deposto do cargo em 2 de abril de 1964 quando tropa militares invadiram o Palácio Felipe Camarão e o prenderam enviando para o 16º Regimento de Infantaria, o conhecido 16 RI.  Os militares ainda propuseram que ele renunciasse ao mandato conquistado nas urnas em 1962, mas o prefeito preferiu resistir.

Mas não seria Maranhão o primeiro preso político do novo regime. Durante as negociações para tirar o prefeito do poder o líder sindical Evlim Medeiros (Sindicato da Construção Civil de Natal) seria preso após ser reconhecido por um oficial do exército sendo levado para o 16 RI antes do desfecho que culminou com a prisão do líder da resistência ao golpe no RN.

Após ser posto em liberdade, Djalma Maranhão se exilou em Montevidéu onde morreu em 30 de julho de 1971, segundo seu companheiro de exílio Darcy Ribeiro, a causa teria sido saudade.

Aluízio que comandava as perseguições logo seria convertido de vilão a vítima.

Os dias seguintes ao Golpe seriam marcados no Rio Grande do Norte pelo fechamento de sindicatos e prisões de lideranças políticas.

Enquanto isso, o golpe reunia formalmente ferrenhos adversários. Aluízio e Dinarte estaria alinhados dentro do sistema governista e fundariam juntos a Arena no Rio Grande do Norte em 1965 embora a convivência não fosse boa.

Mossoró no contexto do Golpe

Cesário Clementino: resistência em Mossoró

 

Na época do Golpe Militar Mossoró era administrada por Raimundo Soares, aliado da família Rosado, que comandava a política local.

Os principais líderes políticos da cidade, Vingt e Dix-huit Rosado, logo aderiram ao regime e fariam parte das articulações alinhados à liderança de Dinarte Mariz.

Em Mossoró não há muitos estudos sobre o que aconteceu na cidade na madrugada entre 31 de março e 1° de abril.

O único político mossoroense a organizar alguma forma de resistência foi o deputado estadual eleito em 1958 Cesário Clementino que fora líder sindical dos ferroviários. Em 1964 ele era suplente, mas teve esta condição política cassada pelo regime.

O período militar foi de hegemonia rosadista e de disputas pelo comando do Palácio da Resistência. A única quebra dessa sequência aconteceu em 1968 quando o ex-aliado dos Rosados Antônio Rodrigues de Carvalho derrotou Vingt-un por 98 votos.

O relatório Veras

 

Nos primeiros dias pós-Golpe, Aluízio Alves mandou buscar em Recife os delegados da Polícia Federal José Domingos da Silva e Carlos Moura de Moraes Veras que produziriam o “Relatório Veras” identificando os “subversivos” do Estado.

Eles produziram um trabalho de 67 páginas em que apontaram cujos alvos preferidos eram servidores da rede ferroviária, da Prefeitura de Natal, estudantes, artistas e sindicalistas.

Na lista constam o professor Moacyr de Góes, o médico Vulpiano Cavalcanti, o jornalista Ubirajara de Macedo e o pastor José Fernandes Machado. Além de, claro, Dajalma Maranhão.

No mesmo período, Aluízio Alves efetuou a demissão de 82 servidores públicos estaduais acusados de “subversão”.

A política no RN durante a Ditadura Militar

 

Aluízio Alves acabou punido pela ditadura que ajudou a instalar (Foto: reprodução/Youtube)

Nos primeiros dias pós-Golpe o processo de união das oligarquias Alves e Mariz se deu no campo formal com os dois grupos organizando a Aliança Renovadora Nacional (ARENA).

No campo político o confronto entre os dois continuava ainda que estivessem alinhados com o regime. Apoiado por Aluízio, Walfredo Gurgel foi eleito governador derrotando Dinarte. O troco foi dado no ano seguinte quando Dinarte conseguiu vetar a candidatura de Aluízio ao Senado. Foi feito um acordo entre a Arena Verde e a Arena Vermelha que fez do mossoroense Duarte Filho senador. Isso não garantiu a pacificação do partido.

Estava claro que a força eleitoral de Alves não seria forte o suficiente diante de Mariz no plano nacional. Isso se materializou em 1969 quando uma articulação de Dinarte Mariz junto ao presidente Costa e Silva resultou na cassação do mandato dos direitos políticos de Aluízio Alves que ficaria dez anos impedido de candidatar-se.

Isso definiria os rumos da política potiguar nos anos seguintes com Aluízio se alinhando ao MDB e lançado o filho Henrique Alves e o sobrinho Garibaldi Alves Filho na política.

A partir de 1970, os governadores de todo o Brasil passariam a ser escolhidos de forma indireta e com influência dos ditadores de plantão. Nas escolhas de 1970, 74 e 78, mesmo no ostracismo Aluízio mantinha a popularidade e consultado em todas as definições dos governadores.

Assim, foram escolhidos governadores pela ordem: Cortez Pereira, Tarcísio Maia e Lavoisier Maia. Nas três disputas o mossoroense Dix-huit Rosado tentou sem sucesso se tornar governador do Estado, mas sempre fora preterido.

A escolha mais dramática aconteceu em 1974 quando estava tudo acertado para que o empresário Osmundo Faria (pai do ex-governador Robinson Faria) seria anunciado e na madrugada do dia que seria feito o anúncio, o padrinho político da escolha, o general Dale Coutinho sofreu um infarto e morreu. A fatalidade zerou as articulações levando Tarcísio Maia a ser escolhido.

PAZ PÚBLICA

Na eleição de 1978 foi forjada a primeira aliança entre as oligarquias Alves e Maia por meio da paz pública quando Aluízio Alves e Tarcísio Maia se juntaram em torno da candidatura ao Senado de Jessé Freire, da Arena. Aluízio chegou a indicar nomes no Governo de Lavoisier Maia.

A tal paz se desfez com o processo eleitoral de 1982 quando os estados voltaram a eleger seus governadores. Aluízio seria derrotado por 106 mil votos de diferença para o jovem ex-prefeito de Natal José Agripino.

Os perseguidos políticos e desaparecidos no RN

Anatália de Melo Alves morreu torturada (Foto: reprodução)

Após os primeiros dias do regime como já citado nesta reportagem a repressão voltou a se intensificar no Estado a partir do Ato Institucional número 5.

Em 1968, foram presos os estudantes Ivaldo Cartano, José Bezerra Marinho e Jaime de Araújo Sobrinho. O padre marista Emanuel Bezerra.

Gileno Guanabara também foi preso.

Um dos primeiros potiguares assassinados pela repressão foi Emmanuel Bezerra dos Santos, líder estudantil e liderança do Partido Comunista Revolucionário (PCR).

No Governo Médice, a repressão ainda foi mais intensa.

Um dos casos mais marcantes envolveu o casal mossoronse Luiz Alves e Anatália de Melo Alves. Ele foi preso e torturado, inclusive ouvindo gemidos de dor enquanto sua esposa também era seviciada.

Ela não resistiu e morreu em 22 de janeiro de 1972 após sessão de tortura em Recife se tornando uma mártir da resistência ao regime no Rio Grande do Norte. Os militares tentaram abafar o caso por meio de censura, mas os testemunhos de outros presos ajudaram a provar que ela foi executada por torturadores.

Em 17 de janeiro de 1973, outro potiguar  atingindo pelo regime foi José Silton Pinheiro dos Santos foi outro potiguar assassinado pelo regime. Ele era estudante de pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e membro do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR).

SEQUESTRO

Um dos momentos mais tensos da ditadura militar foi quando os grupos de esquerda que aderiram a lutar MR8 e ALN sequestraram o embaixador americano Burker Ellbrick em 4 de setembro de 1969.

A ação contou com a participação do potiguar Virgílio Gomes da ALN que seria morto após espancamento por parte de membros da Operação Bandeirantes em 29 de setembro daquele mesmo ano.

Vítima do “Cabo Anselmo”

Uma das figuras mais controversas da ditadura militar foi José Anselmo dos Santos, conhecido como “Cabo Anselmo” que se infiltrou dentro das organizações paramilitares de esquerda como a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).

Neste agrupamento ele encontrou o potiguar Edson Neves Quaresma que foi assassinado após delação do “Cabo Anselmo”.

Bibliografia consultada

O golpe militar no Rio Grande do Norte e os norte-riograndenses mortos e desaparecidos: 1969-1973.

Autor: Luciano Fábio Dantas Capistrano

1964: Aconteceu em abril.

Autora: Mailde Pinto Galvão

Como se Fazia Governador Durante o Regime Militar: o ciclo biônico no Rio Grande do Norte.

Autor: João Batista Machado.

História do Rio Grande do Norte

Autor: Sérgio Luiz Bezerra Trindade

 

Subversão no Rio Grande do Norte: relatórios dos inquéritos realizados por José Domingos da Silva e Carlos Moura de Moraes Veras a mando do governo Aluízio Alves.

 

Autor: Comitê Estadual pela Verdade/RN.

 

Bastidores do Poder: memórias de um repórter.

Autor: João Batista Machado.

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Reportagem especial

EXCLUSIVO! Por dentro do acampamento dos sem teto em Mossoró: virando os clichês pelo avesso

Ao fundo o símbolo do fracasso da tentativa de industrialização em Mossoró. No primeiro plano, a tragédia social.
Ao fundo o símbolo do fracasso da tentativa de industrialização em Mossoró. No primeiro plano, a tragédia social.

Reportagem: Bruno Barreto

Fotos: Fernando Nícolas

 

Ao lado do “elefante branco” materializado no prédio da Porcellanati, símbolo do fracasso da tentativa de industrialização em Mossoró, encontra-se o acampamento conhecido como Comuna Urbana do MST.

A visão da foto acima contrasta a necessidade e o desperdício. Enquanto muitos precisam de um lugar para morar, terra para plantar ou um emprego para se sustentar a Porcellanati teve todos os incentivos do Governo do Estado e da Prefeitura de Mossoró e fechou as portas, gerando desemprego e deixando dívidas milionárias no comércio local.

A seletividade de setores fica evidenciado ainda mais quando se percebe que o calote dado em Mossoró não gerou a mesma revolta que o acampamento na entrada do Conjunto Nova Mossoró. Foram três atentados à bala e muitas ameaças que se encerraram com o slogan “Bolsonaro 2018”. A polícia está investigando.

O caso gerou um debate sem fim nas redes sociais a respeito do caráter e origem das pessoas envolvidas no acampamento. Clichês sempre dão a tônica. “São vagabundos”. “Conheço um que tem casa própria”. “Sei de um que tem uma Hilux”. “É tudo bandido!”.

O Blog do Barreto virou os clichês pelo avesso e foi ao acampamento conhecer quem são as pessoas que estão lá, como vivem e as histórias de vida de algumas das 300 famílias que estão se revezando em grupos de 50 pessoas, a maioria chefiadas por mulheres desempregadas. Quem trabalha não recebe o suficiente para pagar a moradia e garantir a alimentação adequada. São trabalhadores braçais que vivem de “bicos”, empregadas domésticas e pessoas que fazem serviços esporádicos no comércio por hora trabalhada.

‘Quero um lugar para morar. Não para vender’thumbnail_E IMG_0581

Moreno, baixa estatura, mãos calejadas e olhar sofrido. Tenilson Melo, aos 58 anos, segue a vida do trabalho pesado como pedreiro. Sua história é sofrida. Dos 8 filhos, um morreu no ambiente de filme de terror da saúde pública. “Tinha um casal de gêmeos que adoeceram. A menina sobreviveu. O menino não resistiu. Só tinha cinco anos”, encerra em tom resignado.

Tenilson, demonstra tristeza quando provocado a comentar a respeito dos comentários das redes sociais que acusam o movimento de ser permeado por “vagabundos” e “bandidos”. “Eu acho errado pegar um terreno para morar e vender. A gente luta por um lugar para morar”, avisou.

Desde os 12 anos Tenilson trabalha. Sem muito tempo para estudar ele ajudava o pai na roça. “Quando meu pai faleceu fui para a cidade trabalhar como pedreiro”, disse. “Eu me incomodo com essa história de chamarem a gente de ‘bandido’. Só entrei numa delegacia para tirar documentos. Quero um lugar para morar. Não para vender”, reforça.

Tenilson nunca morou em casa própria. Acumula uma vida pagando aluguel. “Todos nós sabemos que precisamos batalhar para ter o que quer. Estamos aqui sem querer fazer baderna e aqui só tem pai de família muitos desempregados. Fico triste quando fico sabendo que atacam a gente na Internet”, lamentou.

‘Não sei o que é morar em casa própria, mas sei o que é pagar aluguel que consome tudo que ganho’

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Baixa estatura, braços fortes e semblante que mistura o bom humor com a angustia de quem tem três filhos e o quarta está na barriga. Lunne Rafaela aos 25 anos sobrevive com um bico em uma lanchonete aos finais de semana onde trabalha como monitora no espaço kids.

Ela recebe R$ 80 reais por final de semana trabalhado. “Não sei o que é morar em casa própria, mas sei o que é pagar um aluguel que consome tudo que ganho”, frisa.

A vida de Lunne não é fácil. O marido sofreu um acidente de trabalho que esmagou o pé direito deixando-o inválido para o trabalho pesado. Ela mostra resignação com as histórias que contam nas redes sociais. “Eles nos julgam pela aparência. Somos trabalhadores de bem. Se a gente não tivesse essa precisão não estava aqui. Se eles vivessem a vida que a gente vive não falariam isso. Para a gente é tudo mais difícil”, disse. “Falam que a gente tem carro do ano, mas eu não tenho dinheiro nem para botar gasolina numa moto velha”, completou.

‘Com três hérnias de disco entrego água para pagar o aluguel”

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Aldeci Fonseca, 59, carrega no rosto as marcas de quem dedicou a vida ao trabalho pesado nas salinas de Mossoró. Nas costas estão as dores e as consequências disso. Com três hérnias de disco está aposentado por invalidez. O benefício de um salário mínimo foi corroído por um empréstimo para sair do sufoco. “Só recebo R$ 640 por causa dos descontos”, lamenta o sem teto que paga R$ 350 de aluguel.

Para conseguir pagar o aluguel ele complementa a renda entregando água mineral e gás de cozinha quando as dores permitem. “Ganho um real por água vendida. Se eu vender dez garrafões eu ganho dez reais. Ganho cinco reais por gás vendido, mas a gente vende uma vez na vida”, frisa.

Num barraco em que se reveza com uma das noras no acampamento, ele conta que nunca morou em casa própria e sonha diariamente em se livrar do aluguel. “No dia que eu receber as chaves da casa eu quero ir para dentro morar. Tem gente que vende e é errado, mas a maioria aqui quer um lugar para viver”, avisou.

No momento em que fala sobre a vida dura as acusações de que “só tem bandido” é interrompido pela esposa, Francisca Martins, merendeira em uma escola pública. “Bom não é, mas a gente não vai revidar o que eles dizem da gente. Queremos a nossa casinha e um dia vamos conseguir”, declarou.

Magra, baixa estatura e o rosto com as marcas do trabalho duro, Francisca avisa que não perde a chance de reforçar a boa índole dos que lá estão: “Não queremos tomar a casa de ninguém. Queremos um lugar para morar”.

‘Estou aqui para ajudar”

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Cheiro de comida cozinhada no fogão a lenha improvisada e o prédio da Porcellanati ao fundo, Francisco Vieira, 63, se perde olhando para o “elefante branco” onde trabalhou como soldador elétrico por dois anos. “É uma tristeza muito grande. A gente trabalhava noite e dia e produzia muito. Mesmo na época do trabalho a gente percebia uma coisa estranha porque todo o dinheiro ia para Tubarão (cidade catarinense, sede da Porcellanti). Eles usaram o dinheiro para recuperar a empresa de lá e quebraram aqui. Tenho 28 mil para receber deles, mas vou passar uma procuração para meu filho porque não acredito que esteja vivo quando esse dinheiro sair”, disse.

Atualmente aposentado, Vieira, como é conhecido no acampamento fala que tem casa própria graças a luta dos sem-terra. “Sempre fui um militante da causa. Ter onde morar não é suficiente para mim. Preciso estar aqui ajudando essas pessoas. Preferi segui no movimento porque é melhor do que ficar em casa sem fazer nada”, explicou.

‘Só não estou dormindo aqui por medo dos tiros’

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Sentada ao lado do fogão a lenha Verônica Cordeiro, 37, está cabisbaixa. Rosto de quem parece ser mais velha do que indica a certidão de nascimento, ela conta que está desempregada e vive com a pensão de R$ 250 paga pelo ex-marido e pai de seus dois filhos. O dinheiro é usado para pagar o aluguel. Não sobra mais nada. Para se alimentar ela conta com ajuda do antigo companheiro que lhe entrega um cartão de um supermercado da cidade. “Para pagar água e luz eu me viro com as faxinas que aparecem”, conta.

Para fazer os bicos sempre precisou deixar os filhos pequenos sozinhos em casa. Hoje a situação se tornou menos arriscada. “A luta é antiga. Agora eles estão grandes, um já tem 18. Só não estou dormindo aqui por medo dos tiros. Foi assustador”, frisou.

Veronica relata que comprou fiado as tábuas para fazer o barraco. “Quando conseguir uma faxina para fazer eu pago”, avisou.

‘O jornalismo elitista tem um caráter fortemente ideológico e conservador’, diz jornalista

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Ex-editor dos jornais De Fato e Gazeta do Oeste, William Robson Cordeiro tem dedicado os últimos anos à pesquisa em comunicação. Graduado em jornalista pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e mestre em comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), atualmente faz doutorado em estudos da mídia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Parte do curso ele fez na Universidade de Barcelona de onde voltou recentemente.

Ao analisar o papel da mídia na construção de uma imagem negativa dos movimentos sociais ele critica o caráter elitista da mídia nacional. “Os meios de comunicação no Brasil são, em sua natureza, elitista e assim, na questão mais profunda que envolve a luta de classes, tende a operar em favor dos mais ricos (até porque, eles que são os donos da mídia). Não há a prática de um necessário jornalismo popular, que observe as necessidades de toda a comunidade com seriedade e justiça. O jornalismo elitista tem um caráter fortemente ideológico e conservador, de manutenção das castas. Assim, qualquer ação popular que venha enfrentar o establishment será propagada para a audiência como algo criminoso, horrendo, condenável”, avaliou.

Para William Robson, a mídia posa de imparcial, mas exatamente o inverso do que prega ao combater movimentos sociais. “A mídia também exerce um papel de domesticação e controle desta audiência neste quesito, pois ao criminalizar movimentos sociais que lutam por igualdade e direitos e, do mesmo modo criminalizar a pobreza, tenta passar a imagem de uma sociedade pacífica e trabalhadora que não pode ser incomodada com protestos e ações energéticas que venham a emergir das massas. Além disso, vendem isto como jornalismo isento, o que é uma tremenda desonestidade”, criticou.

O jornalista e pesquisador explica que há uma diferença de comportamento no Brasil em relação ao restante dos países na abordagem sobre protestos. “A mídia tem dois olhares quando movimentos sociais atuam no Brasil e no resto do mundo. No Brasil, invariavelmente, os protestos são realizados por ‘vândalos’. No resto do mundo por ‘manifestantes’. Estes marcadores de expressão tem um poder simbólico muito importante, visto que estabelecem status diferentes para situações que se assemelham apesar dos lugares diferentes: a luta popular.  Trata-se, portanto, de elemento de construção simbólica que permeia a narrativa e induz as pessoas a odiar os movimentos dos quais também serão beneficiados e, ao extremo, a levá-las a reagir, como o que ocorreu nos acampamentos do MST em Mossoró, por exemplo. O poder do jornalismo está na capacidade simbólica de agir no pensamento e estimular ações”, explicou.

‘Movimentos sociais e populares são parte necessária da dinâmica política dos sistemas democráticos’, afirma sociólogo

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O professor Dr. João Bosco de Araújo Costa, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) explica que os movimento sociais são fundamentais em países com desigualdade social brutal como o Brasil. “Os movimentos sociais e populares são parte necessária da dinâmica política dos sistemas democráticos. Da democracia, portanto. São os movimentos sociais, a exemplo do MST (sem terras) e MTST (sem tetos) que colocam nas agendas pública, política e governamental,

as demandas e reivindicações legítimas dos segmentos das classes sociais excluídas e privadas de acesso a bens e serviços. Também com sua atuação forçam sua entrada na agenda governamental e pressionam por políticas públicas que respondam a essas demandas justas e legítimas dos excluídos”, explicou.

Para o professor João Bosco, é preciso compreender o que está em jogo no país e entender a necessidade de se apoiar os movimentos sociais. Ele entende que existe parte da elite disposta a reduzir as desigualdades. “A brutal desigualdade social existente no Brasil é a razão de existir esses movimentos legítimos e imprescindíveis para a conquista de direitos pelos pobres e excluídos socialmente. Tem gente da elite que gosta de distribuir sopa e fazer caridade, outros optam por serem agentes organizacionais das lutas dos pobres por diretos proclamados na constituição e não acessados pela maioria da população”, lembrou.

No entanto, ele lembra que quando o assunto é governo a elite tem facilidades para ter suas reivindicações atendidas, restando aos movimentos sociais o recurso da pressão política. “Empresários e as elites endinheiradas reivindicam e pressionam os gestores públicos através das relações simbióticas e de compadrio com os agentes do Estado. Os pobres e excluídos fazem isso através da organização política em movimentos sociais e populares”, explicou.

‘As propriedades rurais ou urbanas que não cumpram de forma eficaz e plena sua função social, deverão ser objeto de desapropriação em função da coletividade e dos que dela necessite’, explica presidente da OAB/Mossoró

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O presidente da subseccional de Mossoró da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Canindé Maia, está escrevendo um livro sobre a função social da propriedade privada. “A CF 88, não define somente esta Função Social da Propriedade na ordem econômica, mas também como direito e garantia do homem, sendo direito fundamental do povo brasileiro. Portanto pelo princípio fundamental da dignidade de pessoa humana, vinculado ao direito fundamental de acesso à moradia e produção, as propriedades rurais ou urbanas que não cumpram de forma eficaz e plena sua função social, deverão ser objeto de desapropriação em função da coletividade e dos que dela necessite”, explicou.

Canindé Maia explica que a Constituição Federal estabelece a função social da propriedade privada como forma de conter as desigualdades sociais. “A função Social da Propriedade veio com o direito de propriedade, ou seja, para se manter o direito de propriedade é essencial cumprir a sua função social, sendo esta um conjunto de regras constitucionais visando colocar a propriedade nas trilhas normais, como forma de evitar desigualdades pelo uso degenerado exclusivamente egoísta, merecendo a tutela jurídica para o atendimento dos interesses sociais, mesmo contra a vontade daquele que a possui, devendo se revestir a propriedade de caráter economicamente útil, produtivo, canalizando as potencialidades residentes no bem em proveito da coletividade, deixando de cumprir pode perder a proteção por parte do ordenamento jurídico”, relata.

O foco da propriedade privada com função social é estabelecer harmonia social. “A propriedade usada de maneira socialmente útil, no benefício geral, tornando-o instrumento de riqueza e felicidade para todos, isso é cumprir a Função Social da Propriedade. O Estatuto da Terra conceituou a Função Social da propriedade quando diz que esta favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias, mantendo a produtividade, conservação dos recursos naturais, além de observar a justa relação de trabalho entre proprietários e os que a cultivam”, acrescenta Canindé.

No entanto, o presidente da OAB/Mossoró pondera que ocupar é ilegal, mas cabe ao Governo desapropriar propriedades que não cumprem função social. “A ocupação não é legal, pois o proprietário pode entrar com ação de reintegração, o governo que tem a obrigação de desapropriar as terras que não cumpram a função”, frisou.

Opinião do Blog

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A sociedade precisa conhecer melhor os movimentos sociais e quem são as pessoas que lideram, assim como compreender as histórias de vida dos que estão na luta. A mídia cumpre um papel fundamental de esclarecer isso, mas quando reforça estereótipos negativos aos movimentos sociais ela reforça o pensamento conservador.

Os movimentos sociais cumprem um papel fundamental na luta para reduzir desigualdades num país como Brasil marcado pelas diferenças sociais profundas de quem foi a última nação do mundo a pôr fim a vergonha da escravidão.

Embora não tenha amparo legal, as ocupações se tornaram o único instrumento dos movimentos sociais para garantir habitação e terra aos menos favorecidos. É uma forma de desobediência civil, uma ação de cunho político. Os meios das camadas populares não são os mesmos das elites que convivem com uma relação de proximidade com os agentes públicos.

O Brasil precisa discutir soluções para a desigualdade social de forma honesta, sem clichês e propagação de estereótipos que denigrem os mais humildes.